Somos uma espécie de computador rebelde e criativo que está sempre a reprogramar-se, a reconstruir-se. Damos sequência às cenas anteriores que recriamos constantemente. Temos sempre tendência a dar um significado à nossa existência. A realidade profunda das coisas é muito mais violenta, muito mais cruel, no sentido trágico do termo, do que a que nos é revelada. Na nossa fantasia, ou nos sonhos nocturnos, andamos sempre a fazer montagens de filme. Os sonhos a preto e branco aproximam-se muito mais da verdade do que a cores. A vida não tem qualquer sentido, nós improvisamos a nossa história ou o nosso filme como podemos. Os loucos vêem o que os outros não vêem, a realidade, e não apenas fracções da realidade. É terrível descobrir em nós certas coisas que desconhecíamos ou que julgávamos que nos era alheio, o desejo, a violência, construímos uma imagem que julgamos ser a nossa, vamos montando essas sequências e de repente vemos em sonhos o nosso próprio rosto. É terrível. Andámos ao longo do nosso filme a caminhar nesse sentido, de desmontar essa realidade, e chegamos a um deserto, a incomunicabilidade. E isso ainda é mais terrível. Tudo nos é adverso. Já imaginei por exemplo um filme em que o protagonista se vê de repente confrontado com o absurdo da sua existência, qualquer coisa que lhe acontece que o leva a abrir os olhos e a ver o que poucos chegam a ver durante toda a vida, que tudo em volta se organiza para se defender da própria realidade e que essa organização transcende o nosso protagonista e está disposta a pulverizá-lo se ele começar a falar da sua experiência. Não consigo deixar de pensar que também nós somos manipuladores da realidade. Tentamos desmontar, desvendar, mas o que dizemos também é uma determinada forma de ver, é a nossa realidade. Ninguém é inocente. Nem mesmo as personagens que coloquei nesse deserto do absurdo são completamente inocentes. Fazemos todos parte dessa realidade. Essas personagens e eu próprio à procura de um significado para este absurdo.
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