BARROSO, Gustavo (Da Academia Brasileira). Segredos e revelações da História do Brasil. Rio de Janeiro, Edições O Cruzeiro, 1958, 287 p.

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O Brasil já se chamou América

Sob os auspícios do Duque da Lorena, Renato II, o famoso Cônego Vautrin de Lud fundou, em fins do século XV, na cidade de Saint Dié, um gin sio científico, o Ginásio Vosgense, o qual se tornou célebre na Europa inteira pelos nomes dos sábios que o compunham e pelas obras saídas de sua oficina de impressão. Fizeram parte desse erudito cenáculo o escritor Jean Bazin e os geógrafos Matias Ringmann e Waldseemüller.

Ao Duque Renato fora enviada a carta que, no início do século XVI, corria a Europa, atribuída a Américo Vespúcio, na qual esse navegador narrava suas quatro aventurosas viagens nas rotas do Novo Mundo achado por Cristóvão Colombo. Segundo o Cônego Vautrin de Lud, em sua obra Speculi Orbis Declaratio, aparecida em Estraburgo em 1507, essa carta viera em francês de Portugal, sendo traduzida em latim por Jean Bazin. Todavia se verifica que tal tradução foi feita do italiano, e mesmo malfeita. Essa descrição das 4 viagens de Vespúcio ao Novo Mundo, datada de 4 de setembro de 1504 em Lisboa, foi impressa primeiro em italiano sob o título "Lettera di Amerigo Vespucci delle isole nuovamente trovate in quatro suoi viaggi". Esse opúsculo é hoje em dia raríssimo e só se tem notícias de cinco exemplares, dos quais dois extraviados. Os três restantes se encontram na Biblioteca do British Museum, na Palatina de Florença e na da Universidade Princeton, nos Estados Unidos. Depois, foi editada em latim.

Tal carta tem sido considerada apócrifa por muitos críticos e por outros uma compilação, cujos elementos essenciais foram tirados das cartas verdadeiras de Américo Vespúcio dirigidas a seu amigo e protetor Lourenço de Pier Francesco de Medici.

A 25 de abril de 1507, Vautrin de Lud fazia sair das prensas do Ginásio de Saint Dié a "Introdução à Cosmografia de Ptolomeu", de autoria de Martinho Hylacomylos ou Martin

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Waldseemüller, sob o título "Cosmographiae Introductio: cum quibusdam geometriae ac astronomiae principii ad eam rem necessariis".

Tratava-se dum folheto de 52 páginas, dividido em duas partes. Na primeira, vinham as definições e princípios gerais da Cosmografia. Na segunda, as quatro viagens de Vespúcio, "Quatuor Americi Vesputii Navigationes", recebidas de Lisboa pelo Duque Renato. Essa publicação destinava-se a justificar o que se dizia em outros capítulos: a existência de grande extensão de terras descobertas por Américo Vespúcio com as seguintes afirmações: Nunc vero et hae partes sunt latius lustratae et alia quarta pars Americum Vesputium (ut in sequentibus andietur) inventa est, quam non video cur quis iure vetet ab Americo inventore sagacis ingenii viro Amerigen quasi Americi terram sive American dicendam; cum et Europa et Asia mulieribus sua sortita sunt nomina. O que em vernáculo desta sorte se traduz : "Agora, no entanto, que essas terras foram totalmente exploradas (as partes já conhecidas do mundo), e uma outra parte, a quarta, foi descoberta por Américo Vespúcio, segundo adiante se verá, nada sei que possa impedi-la de denominada de pleno direito Amerigen ou América, vale dizer, terra de Américo, em homenagem ao seu descobridor, homem inteligente, sagaz, visto como tanto a Europa como a Ásia receberam nomes de mulheres".

Foi essa a primeira vez que se imprimiu o nome AMÉRICA, que, em pouco tempo, denominaria todo o continente, o qual, pela lógica, deveria chamar-se Colômbia ou Colúmbia. Quais as razões que levaram um geógrafo como Waldseemüller a propor o nome próprio de Vespúcio para, com forma feminina, designar a quarta parte do globo considerando-a descoberta por ele? Na sua Histoire Critique de la Grande Entreprise de Colomb, Henry Vignaud nos oferece estas explicações:

"Waldseemüller e seus colegas do Ginásio Vosgense conheciam todas as descobertas de Colombo, quando propuseram dar o nome de Vespúcio a uma parte do Novo Mundo. O que é provável ou, antes, evidente é que eles não tinham compreendido a verdadeira significação do feito do grande genovês. Ainda não de todo informado sobre o assunto, Waldseemüller podia e devia crer que, mesmo após ter tocado em vários pontos da terra firme, Colombo não descobrira senão um arquipélago, enquanto Vespúcio assegurava ter verificado a existência de nosso continente, sito ao sul das ilhas achadas pelo genovês Colombo, com as quais não podia ser confundido. Vê-se que, para Waldseemü-

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ller, o Novo Mundo não era aquilo que ora compreendemos como tal; mas somente essa parte da América do Sul, cuja existência Vespúcio revelara e cujos limites exatos ainda se não conheciam". A carta da América de Waldseemüller prova o que aí está.

Equivale isto a dizer, desde que se conheça o teatro das viagens de Vespúcio, que o nome América designou algum tempo, em verdade, o nosso Brasil. Generalizou-se todavia, esse nome com incrível rapidez. Voou da parte meridional do continente para a setentrional, por cima da denominação Índias Ocidentais, que se localizou na região das Antilhas, onde Colombo julgara dar com as Índias. A opinião pública na França, na Ing1aterra, na Alemanha, na Itália, nas Flandres, na Dinamarca e na própria Espanha, de onde Colombo partira, aceitou sem dificuldade o nome América, primeiramente aplicado só à do Sul, sobretudo à região brasílica. Confundiram-se, então, as designações América e Brasil, como a cartografia do século XVI nos demonstra.

Assim, a América, nascida a 12 de outubro de 1492 sob o signo de Colombo, foi batizada a 25 de abril de 1507, data da publicação da "Introdução à Cosmografia de Ptolomeu" sob o signo de Américo. Consumou-se com o tempo a injustiça feita ao grande genovês.

O nome do Brasil é mais antigo do que o da América. Aparece na cartografia medieval e renascentista muito antes do descobrimento realizado por Pedro Álvares Cabral, indicando uma ilha de pouso incerto na vastidão ignota do Oceano tenebroso. A América teve nascimento e batismo. o Brasil teve nascimento, dois batismos, apelidos e crisma. Nos batismos foi Terra da Vera Cruz e Terra da Santa Cruz. Como apelidos recebeu o de Terra dos Papagaios e, pouco tempo, o de América. O nome da crisma foi o que se perpetuou: Brasil. O nome do Brasil pode ser considerado um símbolo, vem da lenda antiquíssima duma terra feliz em celta Bressail, Hy-Bressail, 0-Brasil, com a intercorrência da madeira vermelha - Berzino, Berzi, Brasil, e traz consigo uma longa tradição cartográfica. O nome da América representa um roubo, embora involuntário, à glória de outrem e exprime unicamente a figura dum homem, aliás muito discutida.

Na sua origem germânica, o nome era Amalrich, Amalreich ou Amelrich. Passou para o latim como Amalaricus. Desta última forma provieram as variantes neolatinas: Amaury em francês, Amerigo em italiano, Morigo e Monigo em espanhol,

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Amalarico e Américo em português. Também Albericus, como se vê em certos documentos.

O que está escrito na edição de 1507 da "Cosmographiae Introductio", destrói documentadamente todas as teorias tendentes a dar ao nome América origem indígena. Entre elas, as principais são: a do professor da Universidade de Cambridge, nos Estados Unidos, em 1884, Jules Marcou, que afirma vir o nome de Amerrisque, cordilheira existente em Nicarágua; a de Lambert de Saint-Brio, exposta em 1888 na Sociedade de Geografia de New York, encontrando essa origem na região sagrada dos indígenas sul-americanos denominada Can-Amaraca; a de Alphonse de Paris que radica América na denominação duma cidade destruída da Venezuela, Ameracapana; e a da Senhorinha Lecocq, em 1892, a qual assegura que o nome vem de Tamaraque, como era assinalada a Jamaica em velhos mapas.

O texto da "Cosmographiae Introductio" é, no entanto, de meridiana clareza: "América, vale dizer, terra de Américo, em homenagem ao seu descobridor ..." Além desse texto, há o documento cartográfico, o mapa do citado Waldseemüller, no qual vem o nome América indicando a região que hoje é justamente o Brasil. Por esse mapa, datado de 1507, vemos uma América do Sul demasiado alongada, com sua costa ocidental considerada INCÓGNITA. Na parte superior, sob a Linha Equinoxial, tremula a bandeira de Castela e lê-se esta legenda: EST PER MANDATUM REGIS CASTELLE. Da ponta continental mais avançada, Caput Sancte Anas, até a extremidade sul, compreendendo o Rio S. Francisco, a Bahia de Todos os Santos, a terra de S. Tomé, etc., a costa se mostra limitada por duas bandeiras portuguesas. É justamente essa região correspondente ao Brasil que leva o nome de AMÉRICA.

Vemos, desta sorte, que, graças às viagens, fabulosas ou verdadeiras realizadas por Américo Vespúcio ou a ele atribuídas nesta parte do globo, o nome de América, destinado a denominar todo o continente, desde a Groenlândia à Terra do Fogo, designou algum tempo cartograficamente o nosso Brasil. Aliás, ainda os franceses no século XVI mantinham essa denominação, segundo vemos no título do livro de Jean de Léry: Histoire d'un Voyage Faite à la Terre du Brésil, autrement dite de l'Amérique; e no de Thevet: Singularité de la France Antarctique, autrement nommée Amérique. A França Antártica ficava na Bahia de Guanabara.