TEORIA DO TRABALHO FILOLÓGICO OU LINGUÍSTICO NA ÁREA ROMÂNICA

Por Ariel Castro

 

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1 - ORIGEM DAS ATITUDES PRECONCEITUOSAS DE LINGÜISTAS E FILÓLOGOS NO ESTUDO DAS LÍNGUAS, EM GERAL, E DOS IDIOMAS ROMÂNICOS, EM PARTICULAR

1.1 - A história do pensamento humano, no campo do estudo da linguagem, caracteriza-se por dois fatos fundamentais: continuidade e recorrência. A continuidade pode ser encontrada em todos os domínios da investigação lingüística ao longo da história e consubstancia-se na oposição sempre encontrável nas manifestações intelectuais do homem, que é a do idealismo contra o realismo.

1.2 - Os dois vocábulos têm sido usados, em diversas épocas, em vários sentidos, ora convergentes, ora divergentes. O sentido atual e predominante é o de que o realismo "maintains that the universe is composed of a larger or smaller number of "reals" that exist in and for themselves, independently of any relation to mind."(1) Ao encarar o mundo como composto de realidades que existem em si e por si mesmas, o realismo opõe-se ao idealismo que "ïnterprets the reality with which it deals as having a meaning, an idea appart from its sensible appearence and assuming that in this inner significance its truth and ultimate essence consists".(2)

1.3. A tradição européia, no campo do estudo da ciência da linguagem, tem-se caracterizado pela preferência dada a cada uma dessas atitudes filosóficas. Os lingüistas e filólogos, nesse aspecto, não diferem de qualquer outro cientista. Têm uma opinião sobre o mundo e, coerentemente, subordinam sua visão do fenômeno lingüístico a ea. A continuidade e recorrência são constantes em seu pensamento mas, levando-se em conta as diversas direções que têm seguido, sua atividade não tem deixado de manter-se sensível a situações externas e desenvolvimentos internos. O contato com abordagens feitas independentemente, como é o caso da gramática hindu ou dos estudos dos antropólogos americanos, tem levado a lingüística e a filologia européias a reformular ou a intensificar suas atitudes. (3)

1.4. No Ocidente, cabe aos gregos, basicamente a primeira opinião clara sobre os fenômenos lingüísticos. No Cratylus, Platão, sem deixar sempre muito explícito o seu ponto de vista, esmera-se em apresentar as duas concepções básicas que, através dos séculos, têm correspondido à natureza da linguagem. Uns têm sustentado a tese de que a linguagem humana é convencional e não há relação direta entre signo e referente, entre representação e realidade. Outros têm assegurado que tal relação existe e, portanto, a realidade, em última análise, está sempre presente em sua representação. (4) É muito ilustrativa do problema a proposição feita por Hermógenes a Sócrates, diante de seu amigo Crátilo, a propósito de uma discussão que, com este, tivera antes:

"Hermógenes - Sócrates, o nosso Crátilo sustenta que cada coisa tem por natureza um nome apropriado e que não se trata da denominação que alguns homens convencionaram dar-lhes, com designá-las por determinadas vozes de sua língua, mas que, por natureza, têm sentido certo, sempre o mesmo, tanto entre os Helenos como entre os bárbaros em geral. Perguntei-lhe, então, se, em verdade, Crátilo era ou não o seu nome, ao que ele repondeu afirmativamente, que assim, de fato, se chamava. E Sócrates? perguntei. É Sócrates mesmo, respondeu. E para todos os outros homens, o nome que aplicamos a cada um é o seu verdadeiro nome? E ele: Não, pelo menos o teu, replicou, não é Hermógenes, ainda que todo o mundo te chame desse modo. E como eu inistia em interrogá-lo, desejoso de apanhar o sentido do que ele diz, não me dá resposta clara e ainda usa de ironia, como querendo insinuar que esconde alguma coisa de que tenha conhecimento, que me obrigaria, no caso de resolver-se a relevar-ma - a concordar com ele e a falar como ele fala". (5)

1.5. Aristóteles foi, na verdade, o primeiro filósofo a tomar partido diante do problema e sua atitude clara foi responsável pelas posições posteriores no mundo Ocidental. Para ele, a linguagem é convenção:

"Language is by convention, since no names arise naturally... Speech is the representation of the experience of the mind, and writing is the representation of speech" (6)

A posição de Aristóteles teve como conseqüência o surgimento de pensadores conhecidos na história da ciência da linguagem, como analogista e anomalistas. Se considera a convenção como traço básico da linguagem humana, a atenção do estudioso deve voltar-se para o que é regular no uso dela. Assim pensam os analogiastas. Se a convenção não é traço básico, o uso da linguagem, em toda a sua amplitude, deve ser a metade daqueles que se interessam pelo fenômeno lingüístico. Assim pensam os anomalistas.

Depois de Aristóteles, dois grupos de filósofos, interessados nos problemas da linguagem, notabilizaram-se: os estóicos e os alexandrinos.

1.6. Os estóicos eram de parecer que os nomes são naturalmente formados, tendo os primeiros sons imitados as coisas que eles designavam. (7)

Não tem sido fácil para os historiadores da filosofia a distinguir, na primeira fase do esteicismo, que pensamentos devem ser atribuídos a cada um dos filósofos do grupo. De alguns, como Ariston de Quio, Denys de Heraclea ou Persaios, nada ficou a não ser referências indiretas. Dos da primeira fase, Zenon de Kition, Cleantes de Assos e Crisipo de Soloi, este último, embora discípulo do primeiro, é o que deixou para a posteridade a maior parte do que se conhece da doutrina da Escola. Posidônio de Apanea e Panetio de Rodes, estóicos da segunda fase, deixaram bem explícita a doutrina que defendiam, principalmente Posidônio. (8)

Como bem acentua Robins,(9) é nas tendências contrastantes de estóicos e alexandrinos que se pode configurar a oposição entre considerações filosóficas, de um lado (estóicos) e considerações literárias (alexandrinos), de outro, como o principal fator para o desenvolvimento da lingüística a partir de então. Nota-se, em conseqüência, que, com os alexandrinos, opositores dos estóicos, a gramática grega atinge pleno desenvolvimento e, por isso mesmo, com eles, o interesse pelo fenômeno literário passou a predominar, estendendo, por toda a antigüidade e toda a Idade Média.

"... this conflict of principal, know tacit now explicit argued (which) can be observed as a recurrent feature of the history of lingusitc thought and pratice". (10)

1.7. "A vitória, com os alexandrinos, do ponto de vista formal sobre o ponto de vista filosófico na abordagem do fenômeno lingüístico configurou a supremacia do pensamento realista, na linha de Aristóteles, sobre o pensamento idealista, na linha de Platão. Como resultado, durante todos os séculos seguintes, na antigüidade e durante praticamente toda a Idade Média, predominou o espírito gramatical, do qual muitos poucos se afastaram ligeiramente (Varrão, na época romana e escolásticos, como Peter Helias, na Idade Média). Predominou o pensamento gramatical ortodoxo, na linha dos alexandrinos, de Donato a Prisciano. As Institutiones gramaticae, de Prisciano, ajudaram a estabelecer a gramática como "the foundation of the medieval scholarship, both as a liberal art itself and a necessity for reading an writing Latin correctly". (11)

1.8. As escolar de Port Royal, fundações francesas, religiosas e educacionais que, em meio a lutas políticas e religiosas, de 1637 a 1661, difundiram uma doutrina gramatical mais baseada em Descartes e na razão, e menos em Aristóteles, e difundiram as bases de uma gramática geral, ou seja, um conjunto de princípios que pudesse referir qualquer estrutura lingüística. Scaliger, Beauzée e, principalmente Arnauld, apesar de situados na corrente analogista, procediam recorrentemente como anomalista ao buscar princípios capazes de lhes configurar universais lingüísticos. Os escolásticos, na Idade Média, e os gramáticos de Port Royal, no início da era moderna, desenvolveram, na verdade, uma linha de ação que tendia, obviamente, a questionar o espírito gramatical em vigor há tantos séculos. Foi essa linha que levou, no século XVIII, à atenção, por parte dos estudiosos do fenômeno lingüístico, pela estrutura em si das línguas, o que acabou resultando, ainda nesse século, na comparação como instrumento de compreensão da realidade lingüística. Os monumentos literários continuaram ainda a ser usados, porém não mais, gradativamente, como puros instrumentos da cultura, mas como indicadores da diversidade lingüística dos veículos de expressões literária.

1.9. A retomada gradual de uma estratégia anomalista acarretou a busca de termos que representassem adequadamente os interesses de cada um no estudo da linguagem. Passou a não mais satisfazer o termo filologia, que vinha dos tempos de Platão, e termos outros ou expressões, como filologia comparada, glotologia, glótica e lingüística passaram a ser usados.

Max Müller, por exemplo, dizia:

"La filologia clásica ú oriental, ocúpese de las lenguas antiguas o modernas, cultas o bárbaras, es una ciencia histórica, y no trata el lenguaje más que como un instrumento. El helenista se sirve del griego, y el orientalista del hebreo, del sánscrito o de qualquier otra lengua, como de una clave para la inteligencia de los monumentos literarios que nos ha legado la antigüeda, y como de una ómula mágica para evocar de la tumba los pensamientos de los grandes hombres que han honrado países y siglos diferentes; por el estudio de esos idiomas y de los monumentos que nos han conservado, se proponen poneral historiador en situación de trazar de una manera definitiva la marcha social, intelectual, moral y religiosa de la humanidad... En la filología comparada el caso es muy distinto: aqui el lenguaje no se considerava ya como un medio, sino como el objeto mismo de la investigación científica; dialectos que jamás han preducido una obra literaria, las jergas de tribus salvajes, los chasquidos de lengua de los hotentotes y las modulaciones vocales de los indo-chinos, son tan importantes que la poesia de Homero o la prosa de Cicerón. Tenemos que estudiar el lenguaje, y no las lengua; queremos saber lo que es y como puede servir de órgano al pensamiento; queremos conocer su origen, su naturaleza y sus leyes; y con la mira de llegar a ese conocimiento, reunimos, para ordenarlos y clasificarlos, todos los hechos del lenguaje que están a nuetro alcance".(12)

O mesmo lingüista, ao refletir a preocupação, entre os estudiosos, pela busca de nomes adequados que pudessem designar a nova ciência, na linha anomalista, que, segundo ele, surgira no começo do século, assinalava:

"La ciencia del lenguaje es de fecha muy reciente: no se remota mucho más allá del comienzo de nuestro siglo... La oímos llamar Filología comparada, Etimologia científica, Fonología y Glosología. En Francia se conoce bajo el nómbre cómodo, pero un poco bárbaro, de Lingüística". (13)

Na mesma época, meados do século XIX, George Perkins Marsh esclarecia: "In linguisties... language itself, as one of the great characteristics of humanity, is the end, and the means are the study of general and comparative grammar". (14)

1.10. O contexto científico de meados do século XIX favorecia a colocação da abordagem lingüística, em termos anomalista, dentro de uma comparação do que chamavam de nova ciência com as ciências naturais. Whitney, organizador do The Century Dictionary and Cyclopedia, serve de exemplo para ilustra a hesitação que então existis, por parte dos lingüistas na colocação da ciência da linguagem entre as ciências naturais, na linha de influência de Charles Darwin ou sua classificação entre as ciências humanas. Em 1875, em seu livro Life and growth of language dizia:

"Não há ramos da história que se aproxime tanto das ciências naturais quanto a Lingüística... uma aglomeração de sons que chegam a formar uma palavra é quase uma entidade objetiva tanto quanto um pólipo ou um fóssil. Pode-se depositá-la sobre uma folha de papel, como uma planta num herbário, para examiná-la à vontade". (15)

Já em 1880, porém, o lingüista norte-americano, em sua obra Language and its study, defendia posição oposta, dizendo:

"Language the, is neuther an organism, nor a physical product; and its study is not a physical, but a moral science, a branch of the history of human institutions". (16)

1.11. O ambiente de hesitação, no campo da ciência da linguagem, como foi acima assinalado, favorecia a busca de nomes, para a nova ciência, que pudessem individualizá-la. Em Portugal, assinala Leite de Vasconcelos:

"A palavra Lingüística, a par de lingüista e lingüístico, é já usada em 1884 por Herculano no Panorama, VIII, 392-4. Ignoro se antes dentam há exemplos do uso dela entre nós. É imitada do francês. A palavra Glótica, importada diretamente da Alemanha (Schleicher), suponho que fez a sua aparição em Portugal, em 1868 na Língua Portuguesa de Adolfo Coelho, pág. VII; em seguida figura num opúsculo que o mesmo A. publicou com o título de Sobre a necessidade do ensino da "Gloattica" em Portugal, Lisboa, 1870, e no livro de Manoel de Mello, Da "Glottica" em Portugal, Rio de Janeiro, 1872-(1889)... Quanto a Glotologia, data talvez só de 1881: nesse ano publicou Gonçalves Viana os seus Estudos glottologicos, separata do Positivismo, nos meses de Fevereiro a Agosto; do mesmo ano, ou do seguinte, é A língua portuguesa, noções de "Glottologia", de Adolfo Coelho, Porto, s.d. (o prólogo tem a data de Outubro de 1881)... A diferença, se alguma se quer achar, entre Glotologia, e História de uma língua, não é pois grande. Ordinariamente emprega-se Glotologia, falando-se da ciência em geral, e História falando-se de uma língua em especial: Glotologia de uma língua é a História dessa língua". (17)

Com a agudeza que lhe era peculiar, Leite de Vasconcelos percebeu que a busca de novos nomes resultava, antes de tudo, da perda de rendimento dos mais antigos, como conseqüência das novas idéias:

"Tamanha variedade de nomenclatura provém de serem muito velhos alguns dos vocábulos, como Gramática e Filologia, já usados pelos Gregos, que no-los transmitiram por intermédio dos Romanos, e de ter havido o desejo de expressar com eles idéias novas; ao mesmo tempo a ciência progrediu e alastrou-se tanto, que se tornou urgente criar outras expressões, como Glotologia e os seus sinônimos, que foram cruzar-se e lutar com as expressões anteriores. Daqui resultou certa confusão... Nas minhas preleções entendo de ordinário Filologia Portuguesa o estudo e no espaço, e acessoriamente o da literatura, olhada sobretudo como documento formal da mesma língua". (18)

1.12. O advento do estruturalismo propiciou bem a divisão dos campos, ficando o filólogo como um trabalhador de base humanística e o lingüista como o cientista interessado no fenômeno da linguagem em si mesmo, sem extrapolações. Bloomfield e Bolling colocam o problema segundo a perspectiva típica do século XX:

"To be sure, we get our information about the speech of past times largest from written records - and for this reason we shall, in another commection, study the history of writing - but we find this to be a handicap. We have to use great care in interpreting the written symbols into terms of actual speech; often we fail in this, and always we should prefer to have the audible word... The interest of the philologist is even broader, for he is concerned with the cultural significance and background of what he reads. The linguist, on the other hand, studies the language of all persons alike; the individual features in which teh language of a great write differs from the ordinary espeech of his time and place, interest the linguist no more than do teh individaul features of any other person's speech, and much less then do the features that are common to all speakers... A student of writing, of literature or philology, or of correct speech, if he were persistent and methodical enough, might realize, after some waste of effort, that he had better first study language and then areturn to these problems". (19)

"The term philology, in British and in older American usage is applied not only to the estudy of cuture (especially through literary documents), but also to linguistics. It is important to distinguish betweeb philology (German Philologie, French Philologie) and linguistics (German Sprachwissenschaft, French linguistique) since the two studies have little in common". (20)

1.13. A retomada do pensamento anomalista, com a conseqüente busca de um termo apropriado para designar essa visão recorrente da essência da ciência da linguagem, acabou por dividir os investigadores em dois campos que, gradativamente, passaram a se opor, na teoria e na prática. O resultado dessa oposição tem sido o ambiente de desconfiança que existe entre eles, caracterizador, principalmente, de atitudes preconceituosas.

"No campo da filologia hispânica, a situação pode ser bem compreendida quando se observam as primeiras reações, no início do século, dos filólogos à lingüística geral, o triunfo da escola de Madrid, a atitude dos filólogos frente à diactologia e o advento da grande crise: o conflito entre a filologia românica e o estruturalismo". (21)

2. CONSTATAÇÃO DA OPOSIÇÃO ENTRE FILÓLOGO E LINGÜISTA

2.1. O problema da oposição

2.1.1. Afirmação e definição da oposição

Há lingüistas e filólogos. Depreendemos este fato do estudo do pensamento humano sobre a linguagem. Fizemos um levantamento das definições feitas por pensadores, desde a mais alta antigüidade até o século XX, e verificamos, já em nosso século, que o conceito de filólogo existe em oposição ao de outro, o de lingüista. Em nossa época, tal oposição tornou-se nítida.

Como resultado dessa constatação, não podemos, formalmente, negar a existência da oposição. Temos, contudo, um problema de definir cada um dos estudiosos e verificar até que ponto o antagonismo entre ele é real. Pode ser até que não exista ou que, talvez, seja simplesmente definidor de campos de trabalhos complementares.

Do ponto de vista da história da lingüística, a oposição existe de fato e tem resultado do interesse muito grande na apresentação de um termo indicador de atividades específicas. Tal atitude precisa ser colocada segundo seu devido grau, porque só assim será possível dizer que importância tem cada um.

Não formulamos a oposição aprioristicamente. Através do pensamento dos gregos, dos romanos, dos tomistas e de todos aqueles que caracterizarem a época eminentemente gramatical dos estudos lingüísticos, procuramos verificar - e, na verdade, constatamos - que todos eles situaram-se em dois campos correspondentes a dois conceitos básicos.

Em matéria de uso lingüístico, alguns expressaram a opinião de que há coisas que devem existir; outros acham que existem certas coisas. Assim pensando, caracterizam as posições analogistas e anomalista, respectivamente. (22)

Na primeira, o estudioso está atrás dos que deve haver, porque está atrás da regularidade, ou seja, de fatos lingüísticos que tenham, de uma maneira ou de outra, caráter social coercitivo, ainda que isso não se faça através de leis rígidas, como são as leis gramaticais, mas do maior prestígio que se venha atribuir à linguagem de determinadas pessoas.

Não podemos condenar, de antemão, a posição analogista ou a anomalista, porque tudo depende, afinal, do que queremos em matéria de linguagem. Se alguém, por exemplo, quer estabelecer universais para que tenha melhores condições de formular regras e, depois, gramáticas de sua língua, temos de considerar as razões que o levam a assim proceder. Seu interesse há de justificar sua posição.

As ciências, afinal, não são de um tipo só. Existem, por exemplo, ciências sociais e ciências humanas. O direito é uma ciência social. Podemos todavia, questionar: a lingüística é uma ciência social ou humana? (23) A resposta depende do que depreendemos do pensamento de cada investigador. Seu objetivo último há de justificar sua posição em relação ao anomalismo ou ao analogismo. Cada estudioso, ao defender seus procedimentos, poderá justificar-se assinalando que considera a lingüística uma ciência social, pôr exemplo. Ou uma ciência humana. Na verdade, devemos chegar a dizer que a ciência da linguagem tem um determinado caráter, a partir do qual certas posições podem ser melhores do que outras.

A posição analogia é a da regularidade; a posição anomalista é, não a da irregularidade, mas a de não se preocupar com a regularidade.

Quando o analogista quer afirmar sua posição, procura o apoio de alguém porque, sendo partidário do que deve haver, tem a tendência a buscar respaldos. O apoio que busca se manifestar na base de uma tradição ou de um prestígio literário. É, porém, uma tradição que ele julga existir e um prestígio que ele confere a alguém. O problema, então, começa a existir. Se o analogista leva em consideração uma determinada tradição, está obrigado, ao se apoiar nela, a verificar se existem outras e, daí, através de um processo dialético, a fazer com que sua escolha se justifique. Se procura apoio no prestígio literário desta ou daquela pessoa, também deve proceder de maneira crítica. Trata-se, então, o problema de ter ele de optar entre várias tradições e entre vários escritores. Não havendo critérios que o levem à opção, reveste automaticamente seu trabalho de caráter subjetivo. Ao contrário, se tem consciência dessa possibilidade, inicia-o apresentando suas razões para esta ou aquela escolha, os critérios para sua seleção. Terá, então, como resultado a valorização adequada do testemunho.

2.1.2. Conseqüências teóricas da definição das posições.

É preciso considerar que a técnica não tem acompanhado para passar a elaboração intelectual humana. O pensamento humano tem sempre estado muito além das habilidades específicas do homem. A teoria de que o mais pesado do que o ar podia voar foi equacionada muito antes de certas técnicas terem tornado tal fato realidade. Isso tem também acontecido como os lingüistas, o que se pode provar com a prática dos analogistas de contrariar os anomalistas buscando justificativas para suas opiniões no testemunho. Buscavam abonar suas afirmações da maneira mais fácil e menos crítica possível porque não tinham desenvolvido uma metodologia do trabalho realmente científico.

Valorizar o testemunho escrito tem dado e dará sempre, como conseqüência, alteração no rendimento da comunicação a prazo longo ou muito longo. A dúvida, para muitos, porém, é se a alteração é tolerável em termos de gerações consecutivas. Os defensores da atitude gramatical afirmam que são capazes de manter a unidade de um grupo social, no campo expressional, durante muito tempo. De qualquer forma verificamos, porém, que, sendo a linguagem humana continuamente mutável, a ausência de cuidados fiscalizadores acarreta sempre uma defasagem entre a língua escrita e a falada. Daí o perigo de se impor, através de um código, uma gramaticalidade inadequada à realidade ou que com ela apresente muito pouca relação. (24)

A autocrítica, por parte dos analogistas, constitui um problema sério e consiste na consciência de saber até quando esse tipo de testemunho, que deu origem ao "corpus" consagrado, é válido. Como, porém, a formação do analogista se faz, em grande parte, na base de inércia, só tomará ele consciência disso quando sobrevier um movimento que lhe seja exterior. Este estímulo externo se faz necessário para que ele, apegado à sua idéia, não perca a consciência do que ocorre fora. O que se costuma condenar na atitude do analogista é precisamente isso: perda da consciência da relação entre aquilo que é aceito como algo que deve ser feito e o que, na realidade, é usado.

Não há, aqui, uma intenção prévia de crítica aos analogistas, e eles têm existido em grande número na lingüística românica. Deve-se criticar analogistas e anomalistas, sempre que sejam criticáveis em relação ao que fazem. A crítica depende, antes de tudo, do que depreendemos de sua consciência lingüística.

2.1.3. Conseqüências práticas da definição das posições.

Vimos que a conseqüência da valorização do testemunho escrito foi a generalização da atitude gramatical. No século XX, ocorreu algo muito revolucionário, embora não repentinamente: a afirmação definitiva da atitude filosófica de caráter realista, em contraposição à idealista. Daí o fato de terem surgido as correntes materialistas e positivistas.

A chamada Revolução Industrial foi, em nossa opinião, a causa principal da afirmação, no século XIX, do realismo e sua posterior generalização no século XX. Ela levou a uma certa revolução social porque começou a haver valorização no grupo.

No campo lingüístico, em geral, e na da lingüística românica, em particular, a intensificação da gramaticalidade foi levada a um grau muito alto no século XIX porque, pela primeira vez, não imperava sozinha. A atitude anomalista, baseada no realismo, então em ascensão, contrastou com a atitude analogista, adquiriu adeptos, firmou-se gradativamente em seus princípios e passou a dar valor prioritário à comparação.

A gramática comparada, que foi a base da filologia românica, é, paradoxalmente, uma manifestação de espírito anomalista. Configura, a seu modo, a necessidade de se fazer voltar a atenção para o atual, para o que está em andamento. Como, porém, persistia a tradição do texto, a valorização do literários, essa comparação foi sendo desenvolvida com base na expressão escrita. Por usar o testemunho escrito, e não o oral, o comparatista acabou por penetrar numa atmosfera de preocupação com a expressividade, o que o afastou da meta maior, que seria a de levantar a verdade em termos lingüísticos amplos, realizando, com isso, o paradoxo acima indicado. O gosto de comprar, é preciso que se diga, é mais um gosto anomalista do que analogista porque é, antes de tudo, uma curiosidade pelo que existe em duas ou mais estruturas.

Muitos romanistas têm-se enquadrado em uma postura analogista quando, ao invés de partirem encontrar fenômenos que se conformem a regras, de natureza histórica, principalmente, previamente estabelecidas. Acabam transformando o que pretendem ser ciência em exercício didáticos, com a agravante de partir este de um conjunto de afirmações auto-suficientes.

Como a tradição do texto não deixou de existir, a atividade comparatista, na filologia românica, foi-se fazendo a partir de textos. Isso não foi, de todo, um mal porque, ao fazer comparação, propiciou o romancista o surgimento e desenvolvimento de técnicas que serviram, mais tarde, para o golpe mais forte desferido na corrente analogista. Este resultado não demorou muito a vir, se considerarmos que a gramática comparada surgiu no início do século XIX e logo foi seguida da gramática histórico-comparativa, que desenvolveu rapidamente técnicas, ainda nesse mesmo século, capazes de despertar a atenção dos estudiosos para a língua em termos atuais e não em termos históricos. A dialectologia foi a concretização dessa abertura. Aplicada principalmente no campo românico, passou ela a utilizar técnicas que a gramática comparada desenvolvera e que tinham sido amortecidas pelo enfoque histórico sempre dado, quase desde o início, ao material abordado. Utilizou as técnicas da gramática comparada, saindo, porém, do contexto histórico e penetrando no contexto do atual.

Apareceu, então, o interesse pela língua viva, e foi ele que acabou dando a lingüística do século XX, em oposição à do século XIX. Como essas correntes se antagonizaram e se prenderam às suas posições, aconteceu de procurarem elas auto-identificar-se. Para isso, nada melhor do que a definição e definir significa, antes de tudo, balizar. Quando começaram a se tornar nítidas as definições em relação aos problemas do estudo da linguagem humana em termos de contemporaneidade, foi-se afirmando cada vez mais a tendência no sentido de opor alguma coisa à filologia. Estando esta basicamente apoiada em textos, foi-se tomando consciência, gradativamente, de que era necessário desenvolver algo que definisse uma posição contrária à atitude filológica. "Filologia comparada" foi uma das primeiras expressões usadas para designar o novo conceito. Max Mülher chamava de filologia uma coisa e de filologia comparada, outra. Na verdade, o que ele chamava de filologia comparada era a lingüística, ficando o termo filologia para o estudo baseado em textos e possuidor de uma perspectiva histórica e cultural. À medida que os campos se definiam e o problema acabava sendo o uso do termo filologia para caracterizar um determinado objetivo, terminaram os estudiosos uma outra palavra. O termo lingüística foi sendo consagrado gradativamente em oposição ao outro, filologia.

Os estudos românicos ressentiram-se, porém, dessa tendência à radicalização e seus adeptos procuraram por várias décadas, manter uma atitude conservadora.

Já no fim do século XIX se conseguia distinguir entre filologia e outra coisa, que já era a lingüística. Só no século XX, porém, tornou-se este termo consagrado. Os campos ficaram definidos e delimitados e a simples existência dessa delimitação gerou, naturalmente, o preconceito. A origem das atitudes preconceituosas entre lingüistas e filólogos está nisso: intensificação pelos analogistas de seu ponto de vista no século XIX e intensificação pelos anomalistas do seu, no século XX.

No campo românico, o preconceito tornou-se uma atitude nítida e quase permanente. Os que se dedicavam ao estudo de uma língua românica, em particular, o faziam, sendo modernos, aplicando a lingüística geral a fatos particulares do idioma e tardaram a tentar uma visão global, a partir das novas teorias. Os outros continuaram a trabalhar - e ainda há muitos nessa situação - dentro da melhor tradição analogista e histórica. (25)

2.2. Natureza da oposição

2.2.1. Isolamento de filólogos e lingüistas.

Sabemos que há lingüistas e filólogos. Ao tratarmos do problema em si, verificamos que a oposição existe porque eles se isolam. Cada um fica na sua posição e dela não se afasta. Se não é a atitude de todos, é da maior parte. Essa oposição significa naturalmente, que cada um acha que faz algo que o outro não faz. Oposição real é isso: simetria. Alguns fazem questão da oposição porque se julgam donos da verdade lingüística. Ser dono da verdade significa admitir que existe uma verdade. (26)

2.2.2. Objetivos teóricos e práticos de filólogos e lingüistas.

Caracterizada, assim, a posição do filólogo e do lingüista, quando se opõem, torna-se necessário analisar preliminarmente o conceito de verdade lingüística.

Observando-se o problema com cuidado, verifica-se que o conceito de verdade depende basicamente de dois fatores: o sujeito do trabalho lingüístico ou filológico e o objeto desse mesmo trabalho. É possível estabelecer um conceito de verdade em relação a quem faz alguma coisa e um outro em relação àquilo que é feito por alguém. O trabalho científico, de modo geral, é feito com objetivos. A maior parte dos cientistas faz ciência esperando que ela se concretize em algo. Outros procuram fazer ciência pela ciência. Ninguém pode deixar de reconhecer, todavia, que o trabalho científico visa sempre a alguma coisa, sendo, em conseqüência, seus objetivos práticos ou teóricos. Objetivo teórico é o que consiste na busca de estabelecimento da verdade por causa de problemas concretos prévios. A verdade pela verdade caracterizaria uma atitude basicamente filosófica. (27) Seria sempre algo que se colocaria à disposição, e não algo para ser utilizado de imediato. Por isso, a verdade pela verdade, no campo lingüístico, haveria quando se procurasse dizer coisas que ficassem à disposição. O trabalho científico seria considerado como tendo objetivos práticos, no campo lingüístico, toda vez que pudesse ser aplicado em benefício do usuário da língua ou do grupo a que ele pertence. Haveria, em conseqüência, por trás dele, razões sociais. Naturalmente, nem todos dariam prioridade a esses objetivos, tendo em vista que a linguagem humana é um fenômeno de conotação individual, igualmente.

A definição de cada investigador em favor deste ou daquele objetivo o colocará, respectivamente, no campo da sociolingüística ou da psicolingüística, na medida em que puder centralizar o estudo da linguagem no grupo social ou no próprio homem, como indivíduo. Há muitas pessoas que julgam não ser possível encontrar um homem desvinculado do grupo social. Isso, no fundo, já é uma atitude em favor da ênfase sobre o caráter social da linguagem. (28) Tendo a necessidade de colocar a língua em um contexto social, ações organizativas precisam ser desenvolvidas. Não se pode pensar em sociedade humana, sem se pensar, ao mesmo tempo, em organização. Procedendo assim, acabamos sentindo a necessidade de normas, ou seja, a necessidade de consagrar procedimentos a fim de que, colocado o fenômeno linguagem no campo social, possa ele ser analisada como tal.

Onde essas normas seriam buscadas? Tem sido hábito responder que na tradição e no prestígio, em termos de contemporaneidade. Esse prestígio há de ser, naturalmente, literário.

A norma será justificada justamente por ser o contexto de caráter social. O fenômeno linguagem terá de ser equacional em termos organizativos. Também o prestígio tem caráter social. Quando consagra Machado de Assis, aquele que elabora normas não o faz só por gostar do escritor, mas por achar que a maior parte das pessoas gosta dele. Acha que ele deve ser modelo para a maioria. Como gramático, utiliza trechos de obras suas como exemplos para suas regras julgando que ele tem, como escritor, um prestígio de caráter social. Prestígio aí significar julgamento, pelo gramático, do alcance social de seu comportamento lingüístico. (29)

Ao lidar com crianças, o professor que segue a maneira de pensar do gramático realiza não o processo de ensinar a língua portuguesa, mas o de entender a língua que, para ele, transparece da obra de Machado de Assis. Estudiosos da língua, como Rui Barbosa, Ernesto Carneiro Ribeiro, Rocha Lima e outros, têm buscado, antes de tudo, na tradição e no prestígio literário a fonte corroboradora daquilo que têm apresentado como norma. Muitos dos gramáticos que assim procedem revelam, com sua atitude, apenas a preocupação com a unidade. Não se trata apenas, no caso deles, de gostar de Vieira ou de Camilo. Através do código que estabelece procuram contribuir para a unidade lingüística nacional. Sua ação reveste-se, em conseqüência, de um caráter social e o trabalho científico que ela configura há de ser um trabalho com objetivos práticos. Em certos países, essa maneira de ver as coisas e de proceder é perfeitamente natural. O alemão, por exemplo, é apegado à norma, ao gramatical, ao que dever ser dito e exigido e ao que não deve. Isso acontece, igualmente, na Itália e, em grau menor, na França. Tal fato deve ser identificado como manifestação do problema da unidade. Havendo unidade lingüística, tem-se meio caminho para a unidade nacional.

A unidade lingüística significa que todos devem ter um denominador comum. Essa é uma constatação, porque as coisas ocorrem realmente desse modo. Quando uma pessoa prega o normativismo, não o faz só pelo simples amor às regras. Há as exceções, naturalmente e elas se explicam como decorrência da liberdade de imitar sem espírito crítico. Há também os que realizam o normativismo porque acreditam que, não o fazendo, contribuem para um processo de diferenciação de seu idioma incompatível com a realidade em que vivem. No caso brasileiro, por exemplo, seria lícito para eles imaginar que, sem a norma, em duzentos ou trezentos anos haveria problemas de secessão no imenso espaço nacional.

A Itália é um exemplo ilustrativo desse tipo de problema. Sua unidade política só se realizou no século XIX. Cada região, baseada em sua individualidade cultural, dentro da qual a língua é elemento fundamental, recusava-se a aceitar a supremacia de outra. A unidade foi conseguida a duras penas. Quando conseguiram, a partir de Manzoni, retomar a atitude de Dante Alighieri no sentido de fazer com que um determinado dialeto fosse alçado à condição de língua oficial, e convencer disso os líderes de cada região, a unidade resultou. Muitos italianos, em conseqüência, já têm o que os seus antepassados não tinham necessariamente: o fascínio por Florença.

Por trás da atitude normativista está, muitas vezes, o desejo da unidade ou o medo da perda dessa unidade. Se elas são estabelecidas cientificamente, é outro problema. Por isso, dissemos que o trabalho científico há de ter objetivos teóricos e práticos. Sempre haverá normativismo, o qual decorrerá do prestígio, que há de ser sempre um problema. O problema da imitação também existirá. O normativismo poderá não ser feito deliberadamente, mas surgir naturalmente dentro do próprio jogo, da própria efervescência social. Em tese, tal consideração é válida. O que acontece, porém, é que fatores não são contidos. Pode acontecer, então, no seio da sociedade, que as coisas não estabilizem, não voltem ao limite fronteiriço aceito tácita ou concretamente pelo grupo todo. Esse movimento centrífugo assumirá, para a sociedade, um caráter intolerável.

No caso lingüístico, poderão ocorrer situações em que, deixada a linguagem tal como é, ou como se apresenta em cada indivíduo, manifesta-se sem controle, submetida simplesmente ao jogo normal dos entrechoques do campo social. Em determinado momento, poderão caracterizar-se grupos, no contexto social. O surgimento deles não é, normalmente, do interesse daqueles que dirigem a sociedade e que têm a intenção de preservá-la como um todo do ponto de vista nacional. A efervescência, sob a forma de liberdade, poderá intensificar certas tendências, e isso é muito natural. A liberdade há de ter um valor, porém, igualmente, limites. Limites sociais, porque relacionados com a unidade nacional.

Na verdade, os povos têm-se ressentido disso. Casos exemplificativos não faltam. O romano, ao chegar à Península Ibérica, só durante pouco tempo manteve uma divisão administrativa sem relação nítida com a realidade: Hispania Ulterior e Hispania Citerior. Em poucos aos, mudou isso para Bética, Tarraconense e Lusitânia, sendo a Tarraconense enorme e a Lusitânia razoavelmente definida. A razão principal era, provavelmente, o fato de o povo da Lusitânia se distinguir por uma unidade que, possivelmente, se realizava também no plano lingüístico. Isso acabou se tornando o gérmen de uma nacionalidade. Queremos assim dizer que, no ocidente da Península, em uma determinada região, houve uma população que, através dos séculos, manteve suas caraterísticas básicas. A língua teria sido uma delas. É evidente que, mais tarde, os próprios romanos conseguiram substituir essa língua pela sua, o latim. Este latim da Lusitânia é o que falamos, modificado por vinte séculos de erosão.

A unidade lingüística não é condição sine qua non para a unidade nacional, mas é uma das condições. (30)

Por mais que se imponha uma solução lingüística de cima para baixo, estranha ao que é empregado correntemente pela média da população, mais cedo ou mais tarde os que estão fora dela farão sentir a presença de sua expressão lingüística, não com o aspecto da anterior, mas com um novo, que pode até ser, em boa parte, o que foi imposto, enriquecido, porém pelas linhas básicas daquilo que foi vencido.

Essa é uma posição que valoriza a ação do substrato, porque, sem este, a língua imposta a uma região seria a mesma língua de outra dominada pelos que a falassem. Tendo a consciência de que a língua é um dos denominadores comuns, um dos fatores de união da nacionalidade, é do interesse de todos impedir ao máximo a diferenciação. Isso não significa que a língua não poderá ser recriada. Os códigos que vierem a ser feitos deverão ser, inclusive, o resultado da busca da adequação entre o normativismo e a realidade. O distanciamento tenderá sempre a ocorrer. Caberá aos codificadores estar atentos para que, atingindo o distanciamento um grau além do qual começam a ficar comprometidos os objetivos de unidade lingüística, possam proceder à necessária adequação. Em termos lingüísticos, esse procedimento não é algo para ser feito todos os anos. Deve subordinar-se apenas à consciência do limite de coesão acima mencionado. Como a consciência desse limite não pode ocorrer a toda hora, tendo em vista o fato de que a mudança lingüística, no essencial, é lenta, as providências só precisarão ser tomadas de tempos em tempos. O acompanhamento das mudanças, porém, deve ser contínuo e obra daqueles que atuam no campo lingüístico como pesquisadores e não apenas como participantes. (31)

Recapitulando, podemos dizer que o trabalho científico tem, eventualmente, objetivos práticos e teóricos. a causa daqueles é a colocação da língua em um contexto social, o que envolve, naturalmente, atitudes organizativas. Estas teriam as normas como conseqüência, as quais seriam buscadas na tradição ou no prestígio literário, com a finalidade de se afirmar uma unidade lingüística nacional. É preciso que seja decidido se fazer trabalho lingüístico dessa maneira é científico ou não. Antes de ser ele julgado, é preciso verificar se existe alguma intenção subjacente por parte de quem persegue o normativismo. Tal busca, é preciso ressaltar, tem sido não-científica em numerosos casos. Esse julgamento, porém, é apriorístico pois devemos conhecer a intenção de quem está por trás do trabalho de codificar. Se ela é o desejo de se firmar a unidade nacional, a defesa deste ou daquele gramático seria, ao estabelecer normas, a de estar trabalhando com um jurista, ou seja, como um elaborador de um código de leis no campo lingüístico. Não existe nenhuma razão para o fato, por exemplo, de não se poder dirigir automóvel senão aos dezesseis anos. As autoridades convencionais que assim fosse. É evidente que se apoiaram em opiniões de cientistas do comportamento ou de médicos. A determinação precisa da idade, porém, é meramente convencional e atende a objetivos que estão relacionados a outros fatores que não a condição psíquica e fisiológica do ser humano. Assim, colocar o trabalho lingüístico no campo social leva-os a uma situação que se reveste do caráter de código, de coisa convencionada. Teria tanto direito o lingüista, neste caso, de se considerar cientista quanto o jurista. A ciência lingüística se colocaria no mesmo plano da ciência do direito e se tornaria, em conseqüência, uma ciência social.

O outro objetivo, o teórico, teria também causas. A principal delas seria a necessidade de se fixar o fenômeno linguagem humana no campo psicológico. A língua aí é encarada como instrumento do indivíduo e não da sociedade.

Se coloca o problema no campo psicológico, se volta a atenção para o indivíduo, observando-o como centro do problema, que é o fenômeno da linguagem humana, e se só se emite opinião depois de analisar o indivíduo, então o trabalho científico assume um caráter basicamente teórico, já que cada indivíduo é um caso.

Com a sociedade é diferente. A constituição de um país, por exemplo, pode ser aplicada a outro e dar resultados positivos porque a matéria social é diversa da matéria psicológica. Centralizando a atenção do indivíduo, aceitamos, de alguma maneira, o fato de que o fenômeno lingüístico é algo que muda em ritmo mais veloz que o fenômeno social. Sendo indivíduo a origem, é evidente a necessidade de valorização do uso da língua, ou seja, do discurso. O uso da língua varia em tal grau que é possível ter tantos usos quantos sejam os indivíduos observados.

O problema, então, é o seguinte: se o interesse está na sociedade, desemboca-se no normativismo ao se pretender ser prático: se o interesse está no indivíduo, dá-se o testemunho de que se está atento aos processos que se desenvolvem na realidade. Isso, porém, não impede que, com base no indivíduo, não se possa reunir dados que permitam, eventualmente a redação de um código. E essa será uma posição analógica, pois a finalidade é descobrir a regularidade, os denominadores comuns a todos os indivíduos ou, pelo menos, à maior parte deles. Parte-se, porém, de um trabalho que é, em sua origem, indicador de uma posição anomalista, já que se vai de um indivíduo para o outro, procurando-lhes as características até serem obtidas condições de se ver, no conjunto, tendências de indivíduos e tendências de grupos. Apresentadas elas sob a forma de afirmações, acabarão se tornando regras de gramática.

É preciso considerar ainda que, no caso do trabalho científico de finalidade teóricas, deve ser considerado o problema da língua transmitida e da língua adquirida. Isso significa que não se pode dizer que determinado uso lingüístico passe de pai para filho. Ou melhor, passa mas não se realiza da mesma maneira. Dentro desse contexto, é preciso ter sempre a consciência de que qualquer código que se estabeleça há de ter um caráter relativo pois sua existência só se justificará dentro de um certo prazo. A atitude do codificador será científica se tiver a qualidade de, constantemente, configurar o esforço de verificação do grau de distanciamento entre o código e o uso. De tempos em tempos, há a necessidade de estabelecer, em termos, uma adequação entre ambos. Na prática, nunca haverá nivelamento entre eles, mas o trabalho de quem se propõe estabelecer um certo grau de unidade lingüística está em procurar tornar sempre menor a distância entre o código, que deve existir e o uso lingüístico. O uso do código se torna, gradativamente, menos nítido, o que decorre da competência do usuário, em grau menor, e do conseqüente grau maior de seu desempenho.

2.2.3. Caracterização da oposição a partir do objeto trabalhado por filólogos e lingüistas.

O problema da distinção entre lingüistas e filólogos não pode ser resolvido sem que se leve em consideração o objeto do trabalho de ambos.

Pode-se dizer que o objeto comum a lingüistas e filólogos é a linguagem humana. O objetivo comum imediato é compreender essa linguagem. Considerando tal objetivo, é lícito dizer que o objeto considerado são as mensagens que configuram o processo de comunicação entre os homens, em nível lingüístico. Pode-se igualmente dizer, segundo a nova colocação, que o objetivo de compreender a linguagem humana é um objetivo de decodificação, de mensagens. Ora, se objetivo e objetivo vêm a ser os mesmos, há de se procurar a diferença entre filólogo e lingüista na mensagem. Se não se encontrar diferença de natureza na mensagem que um e outro têm de estudar, não haverá porque distinguir um do outro.

Observando bem o problema, vemos que o lingüista decodifica mensagens que lhe chegam diretamente através de canais orais e, indiretamente, através de canais escritos. Se está diante do informante que lhe fornece os dados sobre a realidade lingüística, ao ouvir, emite sua opinião ou passa a tê-la. Nesse caso, formula suas hipóteses ou faz declarações com base em um contato direto. Ele é o receptor, o informante é o emissor e entre eles existe um canal, que é a língua, conjunto de signos que o emissor usa.

Acontece, porém, que muitos poucas vezes o lingüista faz seu trabalho dentro de uma relação direta com o emissor. Na maior parte das vezes a relação é indireta, porém, controlada. O lingüista transcreve ou faz transcrever o que o emissor diz, em um código. Mas é um código escrito do qual ele, lingüista é o autor e do qual é, igualmente, fiscal. Transcreve, segundo critérios por ele previamente estabelecidos e segundo situações que procurou, antes, estabelecer e deixar nítidas. No contato indireto, o lingüista delega poderes a alguém para colher dados que, depois, sob sua fiscalização venham a constituir um "corpus" lingüístico. De qualquer forma, o material final, usado no trabalho do lingüista, foi desenvolvido por ele segundo uma intenção original de individualizá-lo como conjunto de mensagens próprio para análise lingüísticas. A mensagem, para o lingüista, tem como qualidade básica a intencionalidade lingüística. Ela é intencional no sentido de que foi controlada em sua produção, desde o início por alguém do campo lingüístico que, inclusive, estabeleceu os critérios de sua fixação.

Já o filólogo decodifica uma mensagem que lhe chega indiretamente através de um código escrito cuja chave ela não estabeleceu e de cuja concretização não foi fiscal. Em conseqüência, procura dar a essa mensagem escrita, por ação própria ou solicitando ajuda de um crítico textual, um caráter que a aproxime ao máximo da realidade original de produção.

A diferença entre filólogo e lingüista há de estar, então, na mensagem que terão de tratar cientificamente. Tanto o lingüista quanto o filólogo lidam com um "corpus". Pode aplicar a ele uma metodologia de análise que será observada, igualmente, pelo filólogo. O problema, antes de tudo, é de "corpus" de mensagens. O lingüista, porque controlou, porque fiscalizou, porque condicionou o material, em sua formação, à sua intencionalidade, como cientista, tem, realmente, grandes possibilidades de afirmar e suas afirmações poderão estar em adequação com a realidade porque não se ressentirão de imperfeições de material. O filólogo, ao contrário, precisa dar ao material rendimento ótimo. Só depois desse trabalho prévio, estará em condições de fazer afirmações. Mas, mesmo assim, antes de fazê-las, tem de decidir sobre o grau de rendimento, ou seja, sobre até que ponto julga ele ter chegado à realidade original daquela mensagem que encontrou manifestada através de um código escrito de que não foi autor nem de cuja aplicação foi fiscal.

3. O PROBLEMA REAL DA PREEMINÊNCIA.

O problema da verificação da existência ou não de algum tipo de superioridade de resultados entre os trabalhos lingüísticos e filológico é importante para a distinção entre filólogos e lingüistas.

Existe, de fato, uma preeminência de um tipo de trabalho sobre o outro mas ele não decorre do fato de ser o investigador, lingüista ou filólogo, mais cientista do que o outro que seja a ele comparado. Não decorre, igualmente, do fato de uma pessoa lidar com um texto escrito de acordo com um código que ela estabeleceu e outra, com um texto baseado num código que não foi de sua responsabilidade. A preeminência vai resultar do grau de adequação, da mensagem, como algo concretizado, com a realidade. Nisso está, realmente, a diferença entre lingüistas e filólogos.

Por outro lado, é preciso considerar também qual o setor do trabalho científico, no campo lingüístico, que está sendo investigado. Se tratar, por exemplo, do campo fonético-fonológico, o lingüista está sempre numa posição de preeminência. O filólogo pode diminuir a distância procurando, em seu texto, levar em consideração as noções de grafema, sem o fonema. Poderá, em conseqüência, fazer afirmações que correspondam muito à realidade não alcançável diretamente. O grau de aproximação com a realidade, porém, só pode ser avaliado na medida em que pode cotejar seus resultados com os obtidos pelo lingüista ao empreender investigações diacrônicas no campo fonológico, seja através de um "corpus" sincrônico, seja através da reconstrução interna de itens isolados no plano paradigmático. Como a fonologia diacrônica, para o lingüista, é um campo em que as dúvidas se afirmam com mais intensidade, verifica-se que a convergência de trabalhos, lingüístico e filológico, vem em proveito de ambos os profissionais.

Em termos diacrônicos, o filólogo dispõe de dados suficientes para afirmar seu trabalho em níveis de signos como o morfema e o vocábulo.

O lingüista, em geral, leva vantagem. Por mais que o filólogo trabalhe no sentido de fazer restituir seu texto à realidade original, transformando-o em "corpus", sempre o resultado estará sujeito a um certo número de dúvidas, porque não pode afirmar certas dúvidas mas lhe é possível dirimi-las, no todo ou em parte, procurando o contato direto com a realidade representada.

A preeminência, como deixamos subentendido acima, não é constante, por parte do lingüista. Se considerar o campo fonético-fonológico, existirá vantagem. À medida que passamos para os outros campos, ou seja, à medida que saímos dos constituintes das unidade mínimas do discurso e passamos para elas mesma e para os níveis subseqüentes, vemos que o rendimento ótimo pode ser perseguido, com maiores possibilidades de êxito, pelo filólogo. Pode até mesmo acontecer que, em determinados setores da atividade científica, no campo lingüístico, como, por exemplo, no da sintaxe, nada impedirá a formulação de afirmações bem fundamentadas, tendo como base um "corpus" de mensagens lingüisticamente não-intencionais.

O lingüista pode fazer trabalho diacrônico com texto portador de intensionalidade lingüística original. Um exemplo disso é a geografia lingüística. Num determinado território, podemos ter sincronias sucessivas e, até mesmo, não-sucessivas. O lingüista tem condições de estabelecer comparações e avaliar graus, quando considera o território. Pode, em conseqüência, afirmar historicamente.

Há lingüistas que pretendem, mesmo com material de textos comuns, isto é, lingüísticamente não-intencionais, obter resultados apreciáveis no campo da diacronia. Existe, por exemplo, a hipótese glotocronológica, de Morris Swadesh. Acha que, com base em conceitos usados hoje e estabelecidos formalmente também hoje no contexto segmental e prosódico de inventários lexicais, é possível estabelecer afirmações sobre as origens do sistemas, ou seja, quando uma língua surgiu, quando se separou de outra, etc. No caso, as objeções que se fazem ao método da glotocronologia são, antes de tudo de caráter preliminar, ou seja, aos conceitos que Swadesh considera ao aplocá-lo. Haveria, por exemplo, um tempo médio comum às línguas para substituição, no campo do léxico fundamental, de significantes: o significante "caminho" seria usado, suponhamos, durante 800 anos; "estrela", durante 700 anos, e assim sucessivamente, de modo a constituir um ritmo estatisticamente constante par o conjunto do léxico fundamental universal, correspondente a um certo número de significados não-culturais. Trata-se de uma hipótese, na base da qual há certas afirmações que precisam ser auto-justificáveis para que se possa considerar a aplicação do método como algo exeqüível, a partir de um "corpus" inteiramente sincrônico.

Tem sido tentada, também, a fonologia diacrônica, em que, com base em textos e nos resultados da reconstrução interna de seus componentes, se tem procurado estabelecer o quadro de oposições em épocas diferentes.

O fato é que, muitas vezes, o lingüista vai precisar de ter, de alguma maneira, a seu lado, os dados fornecidos e as afirmações feitas pelo filólogo, porque precisará de pontos de referência estabelecidos cientificamente. O problema do dado sincrônico utilizado com finalidades diacrônica é justamente a falta de um ponto de referência porque, sem ele, não se pode julgar, atribuir um grau. Nesses casos, os indicadores serão os fornecidos pelos filólogos ao longo desses decênios de pacientes investigações.

É preciso deixar claro que o problema da preeminência é o da valorização quantitativa e qualitativa do trabalho de filólogos e lingüistas. No geral, o lingüista tem maiores possibilidades de se aproximar da realidade, porém, o filólogo tem também boas chances, tudo dependendo do setor investigado, já que os objetivos, o objetivo e o método de trabalho são os mesmos tanto para um quanto para o outro.

Notas:

1) CREIGHTON, James E. (Late Professor of Logic and Metaphisics, Cornell University). Realism. In: EncyclopEdia Americana, 1953, vol. XXIII, s. v., p. 257.

2) CREIGHTON, op. cit. acima, nota 1 p. 663

3) ROBINS, R. H. A short history of linguistics, London, Longmans, 1967, p. 9

4) ROBINS, R. H. Ancient & mediaeval grammatical theory in Europe, with particular reference to modern linguistic doctrine. London, G. Bell & Sons Ltd., 1951, vi + 104 p. No caso, p. 7.

5) PLATÃO, Diálogos, vol. IX: Teeteto-Crátilo. Tradução de Carlos Alberto Nunes, da Universidade Federal do Pará. Rio de Janeiro, Editora da Universidade Federal do Pará, 1973, 195 p. No caso, p. 119.

6) ROBINS, op. cit. acima, nota 3, p. 19

7) ibidem, p. 19

8) Albert RIVAUD, Las grandes corrientes del pensamiento antiguo, Buenos Aires, Tridente, 1945, 283 p. No caso, p. 205-212, 244-250.

9) ROBINS, op. cit. acima, nota 3, p. 22

10) ibidem, p. 22

11) ibidem, p. 69

12) MÜLLER, Max. La ciencia del lenguaje. Buenos Aires, Albatros, 1944, 377 p. No caso, p. 39-40.

13) MÜLLER, op. cit. acima, nota 12, p. 21-22

14) MARSH, G.P. Lectures on the English language, London, 1861, p. II

15) William Dwight WHITNEY, Life and growth of language, citado por Sílvio ELIA em O problema da língua brasileira, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1961, 180 p. No caso, p. 25

16) William Dwight WHITNEY, Language and its estudy, citado por Serafim da SILVA NETO em Língua, cultura e civilização, Rio de Janeiro, Acadêmica, 1960, p. 20.

17) VASCONCELOS, Leite de. Lições de Filologia Portuguesa, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1959, XXIX + 488 p. No caso, p. 6-7.

18) VASCONCELOS, op. cit. acima, nota 17, p. 8-9.

19) BLOOMFIELD, L. Language, New York, Holt, Rinehart and Winston, | 1961|, VIII + 564 p. No caso, p. 512.

20) BLOOMFIELD, op. cit. acima, nota 19, p. 21.

21) Jakov MALKIEL, Filologia española y lingüística general, p. 107-126.

22) LEROY, Maurice. As grandes correntes da lingüística moderna. Sào Paulo, Cultrix. 1971, 193 p. No caso, p. 18.

23) CARROL, John B. O estudo da linguagem, Petrópolis, Vozes, 1973. p. 148.

24) MATTOSO CÂMARA. Princípios de lingüística geral, p. 42.

25) TERRACINI, Benvenuto. Língua libera e libertà lingüística. Torino, Einaudi, 1970. p. 180-186.

26) HAMMARSTROM, Graphime, son at morphine dans la description des vieux textes. Studia Neophilologica, 31 (1): 5-18, 1959. No caso, p. 17-18.

27) CARROL, op. cit. acima, nota 23, p. 56-61.

28) GRIMSHAW, Allen D. Sociolinguistics. In: FISHMAN, Joshua, edit. Advances in the Sociology of language. The Hague, Mouton, 1971. p. 101.

29) LABOV, William. The study of language in its social context. In: FISHMAN, Joshua, edit. Advances in the sociology of language. The Hague, Mouton, 1971. p. 204-205.

30) FISHMAN, Joshua. The sociology of language: an interdisciplinary social science approach to language in society. In: ________, edit. Advances in the sociology of language. The Hague, Mouton, 1971. p. 312-315. Neste artigo, Fishman trata, com muita profundidade e farta exemplificação, das relações entre nacionalismo e unidade lingüística