Portugal ontem e hoje


                                       No dia 24 de Abril de 1974 os militantes e activistas anti-fascistas faziam “curriculum” numa das mais sinistras e tenebrosas polícias políticas do mundo: a PIDE-DGS. Muitos haviam que tinham enveredado por outras formas de militância, “Make love not war”, slogan do movimento “hippie”, que, como conseqüência da II Guerra Mundial, tinha vindo a descomprimir as agruras das conseqüências de uma guerra que tinha caudado dezenas de milhões de mortos.

No dia 24 de Abril de 1974 a Liberdade não existia. Existiam certas “liberalidades” do regime, que permitia, entre outras “coisas”, como a licença de isqueiro, a existência de “conjuntos” musicais, mas esses conjuntos estavam estritamente fora da luta política, da luta popular.

No entanto, novos ventos estavam a soprar: o programa de cariz, digamos assim, “satírico” do regime (o “Zip-Zip”), a divulgação de revistas estrangeiras e uma poderosa rede de livreiros e alfarrabistas que arriscavam o costado ao vender livros considerados “subversivos” pelo regime, a crítica ao marxismo-leninismo dogmático que então soprava da China, dos trotskistas, dos internacional-situacionistas – cuja posição não é de negligenciar na subversão acadêmica dos anos 70 – aliados às novas tendências da igreja católica surgidas depois do Vaticano II, a criação de uma “ala liberal” na “Assembléia Nacional” fascista – apesar do lápis azul da censura,  adquiria cada vez mais forte projecção mediática – a expulsão do Bispo do Porto e a respectiva carta ao “Príncipe da Beira” (O. Salazar) e a conseqüente revolta dos sectores mais conscientes e progressistas da Igreja – a revolta “activa” dos povos das colônias que tinham desencadeado uma guerra subversiva contra o regime colonial-fascista português – a revolta dos liceais, na qual tenho a honra de me ter incluído, (sobretudo no episódio do “meeting dos coros”) e diversos outros “acontecimentos”. Era este, em súmula, o ambiente do país em 24 de abril de 1974.

 

25-IV-1974

 Surgiram análises lingüísticas sobre as palavras de ordem; construíram-se, a posteriori, tratados sobre a revolução. Mas para mim, como para J.M. Straub,  a Revolução também é um golpe de dados. Não esqueço 48 anos de resistência à ditadura, nem os movimentos sociais que antecederam “o Dia”. Pessoalmente, surpreendeu-me. No dia anterior tinha-me deslocado a Oliveira de Azeméis, e na transição para o Porto, eu não tinha dado por nada. Não vi barreiras militares na ponte D. Luís, cerca das 23:30 do dia 24. Não estava dentro da conspiração militar...

Ao chegar ao Porto, discuti a situação política com o meu amigo Fernando Ribas.

No dia seguinte, 25 de Abril, sou acordado pela minha mãe que, em alvoroço, esperava que os golpistas dessem a cara.

A utopia tinha surgido.

A festa tinha começado.

O Povo/unido/jamais será vencido/

Nesse dia, a utopia havia nascido.

Depois de ligeiras escaramuças, na praça General Humberto Delgado (claro que, nesse dia, ela ainda não se chamava assim) com elementos residuais da PSP, fiéis ao regime, a Revolução mostrava-se em toda a sua força...

“Prevendo-se um possível derramamento de sangue, pede-se aos médicos que acorram aos hospitais”. Foi o comunicado do MFA, que falhei. Estava a dormir que nem um justo.

Mas o que não falhei foi o desenrolar dos acontecimentos em Lisboa.

Em Fevereiro de 74, o meu pai tinha-me oferecido um rádio “Sony” (desculpem a publicidade) que rápidamente levei para a praça (dita “da Liberdade”) e com o qual, graças ao seu sistema de pilhas, fazia ouvir os momentos mais emocionantes, tais como a tomada do quartel do Carmo, às largas centenas de pessoas que estavam na praça. Entre elas, num grupo conciso e circunspecto, estava o Prof. Dr. Oscar Lopes e outros membros da direção do PCP.

Não quero com isto dizer que com o meu “Sony” eu tenha tentado interferir no decurso dos acontecimentos. Não podia. Estava fora do código do complot militar. Tinha tentado, meses antes, infiltrar-me na conspiração militar – que sabia que existia – no dia do “congresso dos combatentes”. Sem sucesso.

Depois, foi a Revolução. Vou fazer uma pequena/grande comparação. Quando era criança, muito antes de 25 de Abril, (no 25 eu já era estudante universitário) andava sempre cabisbaixo à procura de qualquer tipo de propaganda política, que nesse tempo se resumia ao autocolante EU (Europa Unida) nos automóveis e à sigla STP nas motos.

A partir de 25 de Abril de 1974, a abundância de propaganda, novos tipos de liberdade, a proliferação dos comunicados dos diversos partidos, uns bem estruturados (como o PCP), outros em embrião (como o MES), davam às ruas um caráter que, confesso, vi pela última vez no S. João (não é o teatro, é a festa) do Porto em 1976. Tanta fartura de jornais e comunicados só veio trazer a tristeza e a miséria do 25 de Novembro.

Nunca tinha aberto assim o meu coração, e, como tal, dado largas à minha pena (no duplo sentido de “caneta” e “sofrimento”). No entanto, valeu a pena. A normalização do 25 de Novembro, aliada à independência das colônias, veio trazer um fenômeno novo à sociedade portuguesa - a droga.

É na droga que está a chave dos males deste país. Não me refiro às drogas leves, mas a toda a parafernália de drogas duras que, mais ou menos “em voga” vão transformando os jovens em mendigos profissionais.

A repartição da riqueza, os sem-abrigo, os iletrados ou os simplesmente indigentes são o sinal de que a democracia burguesa, pela qual tantos lutaram, está a transformar-se num novo feudalismo em que as famílias mais poderosas agrupam em seu torno toda uma cohorte de pobres, lacaios, indigentes e marginais.

 

                                                             JH Von HAFE PEREZ

                                                                      II.7.2004  

 * * *

 

         Mais, gastaram-se rios de dinheiro com a integração de Portugal à Comunidade Européia. O dinheiro era barato, a maior parte vinha de fora. Quando vier a conta, alguém vai pagar, mas isso, só no futuro! Vamos aproveitar!... A iniciativa privada logo se beneficiou, formando-se uma nova casta de oportunistas, sequiosos por lucrarem. Ei-los indo para o escritório de Ferrari, às 11 da manhã! Enquanto isso, com a desculpa das modernas técnicas de administração, vamos priviligiar a cúpula da hierarquia, afinal, o executivo tem que ser muito bem pago, além de fortemente motivado. A classe alta, como sempre, cada vez mais rica. Só que agora, dizem que nada têm. E é verdade! A maior parte de sua riqueza, rende juros enquanto dormem -  no “over night”, mas lá, bem longe, em lugar seguro, nalgum paraíso fiscal. O restante não pode ser investido, pois, quem nos dá garantia? É melhor que fique guardada a sete chaves, até porque nunca se sabe o dia de amanhã! Quando alguém lhes pergunta sobre a situação do país, sorriem e dizem – com esta crise na economia, não se pode mais trabalhar!

Mendigos quase não os há! E os pobres? Esses continuam como sempre estiveram, com o cinto apertado no último buraco!... Só faltam os remediados, aqueles que vão da classe média baixa até à média alta. Bom, esses, passaram da ginástica ao malabarismo. Os da alta, passaram para a média, os da média, passaram para a baixa e os da baixa, passaram para a classe mais abaixo – a dos pobres! Ninguém faz nada. Uns porque não querem, outros porque não podem!  Na “coisa” pública, não foi muito diferente. Precisamos inovar! Vamos fazer desta cidade, a capital européia da cultura. Mas como? É fácil, para tanto, vamos ter que lhe mudar a arquitetura! Cava-se o solo e alargam-se ruas, interrompe-se o trânsito, os pobres vão a pé, os ricos de táxi. Tudo pelo progresso! Engenheiros da elite dominante, quase recém-formados, são contratados ou encaixados, e se não der tempo, esticam-se ruas de borracha, que além de disfarçarem o que não foi feito, ainda têm a côr como opção e os turistas vão adorar!... E os políticos? Esses, que deveriam fazer da profissão uma das mais belas do mundo, na melhor das hipóteses, nada mais são que pura utopia! Na falsidade, até ganham dos ricos. Não importam os meios, mas sim os fins. Não interessam as questões de fundo, mas as de superfície. Não interessa o porquê ou para quem, mas o por quem, que invariavelmente é a projeção da imagem que fazem de si mesmos, e com ela, garantir o voto, uma e outra vez mais. O importante são os grandes monumentos, e sobretudo, as fachadas dos grandes empreendimentos, ainda que seja só a fachada, sem nada por dentro, nem para ninguém. Depois, é só falar que foi feito. Vale tudo! É toda uma vida de exponencial crescimento para a absurda e egoísta utopia! Pura loucura! Pior, só acreditar neles! Ao se falar de políticos, cuidado com o voto e com a vontade das maiorias – foi assim que Cristo morreu crucificado. A democracia pode ser comparada a uma faca – há que usar o gume certo! No entretanto, estado e empresas, empenhadas na nova cultura, vão-se endividando. A casta dominante, entediada com o pouco que fazer, entrega-se ao jet set gastronômico, não tanto pela comida, mas pela marca do lugar. Mas antes disso, vamos à baixa. Lá, esperam-nos as lojas “in”, ou quem sabe, o shopping mais caro. Temos de nos enfarpelar com a grife da moda, ainda que de mau gosto ou extravagante; não importa. Neste caso, melhor ainda, porque dá mais nas vistas! É lá que estão os nossos amigos, pessoas como nós! Já os que não vieram, é porque não puderam. Enquanto suas mulheres, na cozinha de casa, fabricavam comida para vender, os maridos tentavam a sorte no carteado do clube mais próximo de casa, ora ganhando, ora perdendo, aquilo que suas mulheres ganhavam. Mas neste mundo de aparências, que mal há nisso? Nem sempre se pode ganhar, mas, pelo menos tenta-se! É chegada a hora do terrível dilema! – O que vamos comer agora? Coitado do menu! De tão manipulado que é, mais parece papel higiênico amassado que um belo escrito de couro encadernado... Como a escolha está difícil, não vamos arriscar – o melhor é o mais caro! Na falta de uma boa conversa, alguém arrisca – que prato estarão comendo agora, os coitados do lado de fora? Algum engraçado lá do fundo responde: o que sobrou; liberdade, claro está! Agora, com a barriga cheia e patenteada, precisam de viajar para lugares distantes, tanto quanto possível, que lhes faça esquecer a vida vã e aquela gente triste, pobre e lamurienta, que não tiveram nem o berço, nem a educação, que deveriam.

Passaram-se trinta longos anos. E o pior – chegou a conta! Estou exausto.

         De tão cansado que estava, adormeci e sonhei. Nesse sonho, havia ido para lugares longínquos, perdidos no tempo e na História e sonhava com a terra deixada para trás. Esboçava-se então, uma terra de gente feliz! Trabalho, habitação, saúde, educação, justiça, igualdade de oportunidades, liberdade, humanismo, cultura, arte, desenvolvimento pleno e integral, individual e coletivo; era a expressão estampada no rosto daquela gente. O céu era o limite! Quando acordei, estava em Portugal. E o que vejo? Uma nova paisagem, que em nada lembrava o sonho de ontem – enormes viadutos, novas auto-estradas, arranha-céus nunca vistos, casinhas de metal no meio das praças, que afinal eram retretes, metro, máquinas, que acionadas davam: cigarros, café, refrescos, bilhetes de transporte e até preservativos, esplendorosas casas de música, arquitetadas por estrangeiros, que além de mais caras, são também mais chiques. Afinal não somos racistas! Em troca disso, ganha o desemprego e aumenta a falta de oportunidade para os jovens talentos da gente infeliz. Museus subterrâneos, parques de estacionamento em forma de caracol, elevando-se até ao céu, e, desemprego, filhos casados morando na casa dos pais, saúde só para ricos, ensino seletivo, corrupção, falta de oportunidades, indiferença, estagnação individual e raquitismo coletivo. E, desfilando pelos viadutos e auto-estradas, bólidos caríssimos, ainda por pagar, arranha-céus quase vazios, metros com uma pessoa aqui e outra ali, casas de música inacabadas, por falta de dinheiro, faraônicos estádios de futebol pelo país afora,  esperando que os turistas incrementem o comércio local,  justificando o investimento irracional, museus sem gente, o jovem sem preservativo, o trabalhador sem emprego, o país sem governo e aquela gente muito triste!

         Os jovens de ontem – do 25 de Abril, hoje velhos! Mas existem ainda os jovens de hoje, e alguns, muito poucos, de ontem também, que acreditam que o mundo pode ser diferente. Daqueles que não têm, nem  uma boa família, nem casa própria, nem carro, nem bom emprego, nem viajam, nem vestem roupas caras, nem têm muita saúde, nem comida cara e ainda assim são felizes. Que gente rica! Pessoas há, que são livres. Usufruem de uma liberdade essencial, da mais sublime; íntima, própria, pessoal, incondicional... Livres consigo mesmos e livres para a vida! Pessoas que para serem livres, tiveram que deixar de fazer aquilo que queriam. À medida que o tempo passava, reflectiam e descobriam a inutilidade de tantas coisas, que há pouco tempo atrás lhes eram indispensáveis. A tal ponto chegaram, que o próprio conforto atrapalhava-os! Apesar de, casa, carro e conforto, serem bens e de direito, nem por isso são tudo.  Não somos só animais! Erguem-se gigantescos potentados; quando não pessoas físicas, que com ar imperialista, determinam e impõem; democracia, liberdade e paz. Fazem-se guerras em nome da paz. Paz que tem petróleo por detrás. Ditam as regras do jogo, como se fossem Deus, mas com prévias condições, como: criar novas necessidades, mercados cativos e massificação de pensamento em profusão. Ou seja, reina a bestialização do ser.

         O problema de Portugal não é mais político, nem tão pouco a solução! É sim, um problema cultural–comportamental, psicó-sociológico. O rico quer mais riqueza, para obter prestígio e respeito (entenda-se admiração), para alcançar o objetivo máximo – o poder. O pior defeito do pobre é querer ser rico - o pobre sonha em ser rico, porque vê neste o seu ideal! Uns e outros correm atrás do mesmo! Como se, prestígio, admiração e riqueza, fossem os bens supremos. Não havendo aqui, nem conhecimento, nem portanto interesse, por amplos e verdadeiros valores universais da vida! É de lamentar que a plenitude política e a vivência histórica em liberdade, acumulada durante tantos anos, despertem os mesmos interesses em camadas sociais tão antagônicas, ou pelo menos, diferentes! Somos levados a pensar, que bem estar social e desenvolvimento da pessoa, se traduzem numa questão puramente “intestinal”!  Quer então dizer, que nada mais existiria para além da satisfação das necessidades essenciais, e também pelas criadas, caso estas fossem plenamente satisfeitas? Que pobreza seria o mundo, caso isto fosse verdade! Senão vejamos: tal como no futebol, fomos da extrema direita para a esquerda ao extremo. Retrocedemos um pouco para a direita, e depois, um pouco mais para a esquerda. Passamos depois para o centro esquerda. Mais tarde, para o centro de direita. Não contentes, chegamos ao centro, nem de direita, nem de esquerda, nem mesmo até de coisa alguma – seus partidários assim dizem “queremos um socialismo nem tão social-democrata, nem tão socialista, queremos sim, o nosso socialismo”. O nosso, deles, é claro! Venha quem vier, tirando os eleitos, continua o hilariante jogo, de direita, de centro e de esquerda. Qual a solução? Uma educação refletida numa consciência humanitarista.

Enquanto o individualismo permanecer e o ser não for capaz de entender, que realizando-se no próximo, a si se realiza, tudo continuará como sempre esteve. A maior felicidade que se pode ter, é, fazer e ver o outro igual, feliz. Mais sublime que a natureza é a arte feita pelo ser. E que maior arte existe, que a obra do ser?

  

Fernando Figueirinhas  


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