A edição de Serro Hoje de Novembro/97 trouxe matéria sobre a retomada do garimpo de diamantes na região do Serro, causando euforia na comunidade garimpeira e apreensão na comunidade ambientalista. Ainda, a edição de Dezembro/97 trouxe matéria sobre a extração ilegal da candeia (Gochnatia Polymorpha Less. Cabr. - família das Compositae), espécie vegetal nativa do cerrado e encontrada com certa abundância no Alto Jequitinhonha. O quê estes assuntos têm em comum? ÁGUA, MUITA ÁGUA.
A extração da candeia é ilegal e predatória. A atividade está destruindo o pouco que resta da vegetação no Alto Jequitinhonha, próximo à sua nascente e dos rios Araçuaí e Doce, entre outras áreas. Esta atividade compromete mananciais importantes e o futuro dos recursos hídricos da região. O garimpo - cuja tolerância pelas autoridades extrapola a razão - é igualmente predatório e ilegal, não observadas as exigências legais para seu funcionamento. O garimpo age diretamente no leito de córregos e rios e em suas cabeceiras, devastando a vegetação das margens. Provoca erosão e assoreamento dos cursos d'água. O Alto Jequitinhonha vive uma estranha catástrofe ambiental que não se dá a devida importância.
Segundo Fetter, 1980 (1), do total de água encontrada no planeta Terra, 97,2% são águas salgadas depositadas nos oceanos e mares; 2,14% equivalem às águas depositadas nas calotas polares e geleiras; 0,61% de águas depositadas nas profundidades de até 4.000 m.; e apenas 0,0221% de águas depositadas nos rios e lagos de água doce, ou seja, de utilização para o ser humano e demais criaturas. Com percentuais de disponibilidade de água tão pequenos, nenhuma região do planeta pode se dar ao luxo de destruir seus mananciais. Trata-se de uma questão de vida ou morte.
Cerca de um ano e meio atrás, a FUNIVALE iníciou uma via crucis de denuncias sobre a extração ilegal da candeia, começando pela Policia Florestal em Diamantina (Boletim de Ocorrência N. 1793 de 20-07-96), passando pelo IEF-MG, IBAMA, INTERNET (campanha S.O.S. Jequitinhonha - www.geocities.com/Baja/3224/sosjequi.htm) e no Congresso Nacional através do Deputado Fernando Gabeira - P.V./R.J. O que de positivo aconteceu? Muito pouco. Na ocasião, o então prefeito do Serro, Dr. José Monteiro, admitiu que os garimpeiros, sem outra fonte de subsistência, partiram para a extração da candeia como alternativa econômica. A omissão das autoridades na repressão desta atividade é criminosa.
Persistindo os problemas do garimpo e da candeia, o futuro da região é incerto.
GARIMPO
Aspectos Históricos
A descoberta e consequente extração de ouro e diamantes no alto Jequitinhonha deu início à ocupação da região no século XVIII. Como consequência da grande e importante descoberta no novo mundo, a coroa portuguesa decretou o Distrito Diamantino, uma área extensa e segregada, cujo contato com o resto da colônia e do mundo era rígido. Com isto, a região teve impressa em sua história características únicas, não observadas em outras partes do Brasil. O garimpo de diamantes é o drama desta história e o garimpeiro seu ator principal.
Em função do extrativismo imperante e da segregação
imposta desde aquela época, poucas ou nenhuma foram as iniciativas
para promover na região outras atividades produtivas, que
gerassem trabalho e promovessem o bem estar da população.
A região chegou a ser o maior produtor de diamantes do mundo, mas
nenhuma iniciativa forte para instalar na região uma indústria
de lapidação foi levada adiante. Com exceção
do turismo hoje, que mal ou bem traz alguma receita para a região,
sua população tem fracas alternativas de sustento.
Há quase dois séculos, boa parte do alto Jequitinhonha
vive direta ou indiretamente do garimpo.
Aspéctos legais
O Código de Mineração, Decreto-Lei N° 227/67
em seu artigo 70, considera a garimpagem como
O que aconteceu por todos estes anos de ilegalidade era um festival de omissão e um espetacular jogo de interesses: o que por um lado protegeu o trabalho predatório dos garimpeiros, por outro lado protegeu também o comércio de diamantes, que é milionário e pouco transparente. Basta a simples pergunta: Qual foi o volume de impostos gerados para os municípios, estados e União pela extração e comércio de diamantes nas últimas décadas? Além das migalhas deixadas aos garimpeiros, quem ficou com o "filé"? Quem foram os maiores beneficiários da atividade garimpeira do diamante? Uma coisa é certa: não foi o meio ambiente do Alto Jequitinhonha. Este necessitará muitos anos, quiçá centenas de anos para se recuperar. Em comparação grotesca, o garimpo é como um prato de comida em que se escarra após cada garfada.
Com a Constituição Federal de 1988, o artigo 225 - que trata do meio ambiente - estaria afogado na hipocrisia se continuasse a tolerar o garimpo na sua forma tradicional. Isto motivou a adequação de leis, como a Lei 7.805/89 que alterou o Código de Mineração aludido acima. Todos lembram os eventos de meados de 1989 quando os garimpos foram fechados à força, trazendo para o Alto Jequitinhonha um cenário de guerra com a presença de tropas do exército e efetivos da Polícia Federal. O estardalhaço foi grande, teve conotações políticas, mas no fundo, serviu apenas para diminuir a atividade garimpeira. O garimpo - em realidade - nunca foi contido.
O artigo 3° da Lei 7.805/89 é suficiente para inviabilizar o garimpo, pois a permissão de lavra garimpeira somente poderá ser outorgada se contempladas as exigências ambientais. Estas exigências, para serem atendidas, além de uma peregrinação burocrática, em alguns casos poderá ser necessário um E.I.A. / R.I.M.A. - Estudo e Relatório de Impacto Ambiental, que deve ser elaborado por profissionais especializados, implicando em viagens, estudos, testes, projetos etc. e que pode custar bem mais caro do que o diamante pode pagar. Além disto, mesmo após todo o dispêndio de dinheiro e tempo, o R.I.M.A. pode ser derrubado nas Audiências Públicas, que podem ser obrigatórias no correr do processo.
Ilustrando, o artigo 225 da Constituição Federal vigente,
em seu parágrafo segundo, expressa:
O parágrafo terceiro do artigo 225 coloca:
Licenciar o funcionamento de garimpos atualmente sem um diagnóstico ambiental minucioso e um zoneamento específico contemplando expressamente as áreas de proteção ambiental (mananciais, córregos e rios, matas, campos etc.) pode ser um erro fatal. Ao licenciar nos termos da lei uma área para a garimpagem, incorre em exigir do garimpeiro um plano de recuperação da área degradada. Isso incluirá a recuperação dos 200 anos de destruição? Sem uma política ambiental, uma efetiva implantação dos Comitês de Bacia Hidrográfica (conforme Art. 37 da Lei 9.433/97) ou sem um Conselho Municipal de Meio Ambiente atuante pode ser muito arriscado.
Na opinião de Hans Liebman (2) "embora a preservação do meio ambiente seja um conceito que só agora está fazendo parte do nosso vocabulário cotidiano, há séculos ela constitui uma exigência objetiva, presente em todas as civilizações". Estas exigências para proteção do meio ambiente não aparecem gratuitamente para prejudicar o garimpeiro porque ele é mau ou bonzinho. Surgem para proteger o meio ambiente para as presentes e futuras gerações. Afinal de contas, o que está em jogo é a vida na região, refletida na água. "Antes de ser recurso hídrico no sentido utilitarista, a água é um elemento vital" (3) que deve ser protegido sempre, a qualquer custo e em qualquer circunstância.
Portanto, dado às exigências múltiplas para o funcionamento do garimpo e considerando ainda, a inegável degradação que ele causa, melhor mesmo é considerar o garimpo algo desnecessário e incompatível com a atualidade. Da mesma forma que a escravidão foi banida por seus motivos óbvios, o garimpo também pode ser interrompido por motivos não menos óbvios. Os tropeiros que um dia cortaram o país por todos os caminhos possíveis e imagináveis também desapareceram por circunstâncias outras. Nada dura para sempre.
Garimpeiros e alternativas para o garimpo
O impacto sócio-econômico no alto Jequitinhonha com o suposto fechamento dos garimpos, mas que na verdade foi apenas uma diminuição das atividades, pode ser verificado - como se alega - através da queda de faturamento no comércio das cidades da região. Pode ser fato e é parte do preço que todos acabam pagando. Isto porém não tornam as medidas restritivas ao garimpo vilã de todos os problemas de planejamento micro e macro-econômicos na região, se é que existe algum e se é que a atividade garimpeira está inserido neste planejamento.
O garimpeiro é um personagem folclórico. Existe aquele que trabalha duro de sol-a-sol - o autêntico garimpeiro, sindicalizado, com carteirinha e tudo mais; existe aquele envolvido na atividade - o dono da bomba e equipamentos - mas que não necessariamente trabalha com a mão na lama com a mesma intensidade do que o nosso autêntico garimpeiro; e existe o comprador de diamantes na cidade: o diamanteiro (pedrista).
Seria ingênuo acreditar que o garimpeiro (autêntico) só saiba trabalhar no garimpo. Vale lembrar que o garimpeiro é também lavrador, senhor de terras, dono de criação, colhe flores no campo ou é mestre em alguma arte e, de alguma forma, busca sustento digno em algum outro trabalho produtivo e sustentável. Tem também o garimpeiro que vaga de cata em cata, de serviço em serviço, que bebe e "escorna" em qualquer canto de estrada; não tem uma casa para voltar, não tem lar, mal tem família.
Outros no entanto, impedidos por força da lei de trabalhar no garimpo tradicional, atraídos por circunstâncias e oportunidades, optaram por migrar, abandonando a região. Outros, garimpeiros ou não, lamentavelmente, encontraram alternativas de sustento em atividades não sustentadas, como na extração ilegal da candeia.
Os donos de bombas e os "diamanteiros" (pedristas), que não deveriam ser considerados garimpeiros, muitas vezes nem vivem na região. Muitos têm outras atividades. São comerciantes, profissionais liberais, políticos etc. É praticamente uma falácia achar que estes personagens estão sendo prejudicados com as restrições impostas ao garimpo.
No fundo o garimpo é um jogo ganancioso de sorte e de azar para todos os envolvidos, já que se investe tempo e dinheiro para buscar algo que não se sabe se vai ser encontrado em quantidade e qualidade que compensem os riscos e investimentos. Para atingir o objetivo deste jogo, não são levados em consideração quaisquer práticas de proteção do meio ambiente. Pelo contrário, a destruição é apenas parte do jogo
CANDEIA
O caso da candeia é um problema sério e serve como bom exemplo para comprovar que não é só com relação ao garimpo que as autoridades são omissas. Com a extração predatória acontecendo, resta a pergunta: Quem está comprando a candeia? Para que utilização? Fica comprovado que existe uma demanda comercial para esta espécie, que já foi bastante abundante na região. Sendo assim, o que impede plantá-la em escala comercial? Com a cooperação técnica da EMATER e do IEF, que aliás, são órgãos governamentais de comprovada eficiência e compromisso com o fomento de atividades e projetos sustentados, estes empreendimentos seriam perfeitamente possíveis. Os rescursos para alavancar projetos desta envergadura podem ser "garimpados" aqui (Belo Horizonte), alí (Brasília) e acolá (no exterior). Lembrando, "when there is a will, there is a way" (quando existe a vontade existe um jeito).
A FUNIVALE elaborou em 1994 o Projeto Berço da Flora, cujo escopo principal é a produção de 1.000.000 de mudas de essências nativas do Alto Jequitinhonha para reflorestamento de áreas degradadas pelo garimpo e pelo uso irracional do solo, além da criação de um banco de sementes e de informações relativas às espécies nativas da região, visando a formação de bosques de frutíferas (nativas) e produção de madeiras nobres, de espécies para utilização racional de lenha, contenção de erosão entre outros usos.
À despeito da nobreza deste projeto e de seu caráter prioritário como alternativa econômica e de utilização de mão-de-obra, bem como sua integração com as escolas rurais na região, nenhuma organização financiadora ou órgão governamental a quem o projeto foi encaminhado sinalizou por sua aprovação. Lamentável!!
Finalizando, é com tristeza que se verifica o baixo compromisso dos detentores do poder e das elites pelo futuro do meio ambiente no Alto Jequitinhonha. A preocupação com o futuro da população da região - em especial a dos garimpeiros - demonstra que as autoridades não visualizam alternativas econômicas para a região, visando fixar o garimpeiro e o homem do campo à sua terra. Talvez seja melhor manter o garimpeiro - herdeiro principal da mentalidade extrativista dos nossos colonizadores - refém de sua própria miséria e fantoche de interesses estranhos. O descaso das autoridades é imoral.
Resta a esperança de que a parcela mais esclarecida da população da região, aquela que arregaça as mangas e faz acontecer, possa, dando as mãos, viabilizar projetos, exigir do legislativo e do executivo as medidas que minimizem a miséria, e mais que tudo, exigir que as leis sejam cumpridas. A Ouvidoria do Povo, prevista na Lei Orgânica do Serro (Art. 94) deve ser acionada sempre que existirem dúvidas quanto a idoneidade desta ou daquela decisão. Resta ainda aos cidadãos e às Organizações Não-Governamentais - O.N.G's - Associações, Sindicatos etc. - pressionarem e provocarem concretamente o Ministério Público e o Judiciário via Ação Popular e Ação Civil Pública, de forma a trazer a discussão da ilegalidade do garimpo e da extração da candeia para o foro competente, a fim de identificar e denunciar criminalmente os que se omitem no cumprimento das leis, sejam estes do povo ou autoridade pública.
(1) Uriel Duarte e Everton de Oliveira, in A Questão Ambiental,
São Paulo, Terragraph, 1994, pg. 161;
(2) Liebman, Hans - Terra um planeta inabitável?, Rio de Janeiro,
Biblioteca do Exército, 1979, pg. 9;
(3) Informativo do Movimento de Cidadania pelas Águas
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Evandro B. Sathler é do Conselho Deliberativo da FUNIVALE; Diretor
de Marketing da THE QUEST - Ecoturismo & Aventura; e graduando em Direito
pela Universidade Salgado de Oliveira - Universo - Niterói - R.J.
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