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Um ano depois do referendo e a meio caminho da independência prevista para 2001, os timorenses saram as suas feridas e lutam pela normalidade. Cada dia é uma mistura única de incertezas e esperanças |
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Em Viqueque um ex-quadro da Resistência
clandestina monta-se numa motorizada e visita povoações quase isoladas para avaliar a
possibilidade de instalação de professores portugueses. Esta é uma viagem a um país de
chão destruído, onde cada dia continua a ser uma mistura única de incertezas e
esperanças. Um ano depois da tragédia de Setembro de 1999, reconstrução continua a ser a palavra-chave. Acções de emprego temporário financiadas pela ajuda internacional de emergência permitiram remover quase todo o entulho, destroços e barrotes queimados de que ficou coberto o território. Permanecem agora as ruínas nuas, não menos aterradoras: têm, talvez, um ar mais definitivo do que nos dias que se seguiram à violência. Em qualquer sentido que se percorra o país, de Díli para Liquiçá ou Baucau, ao longo da costa norte, nos cafezais de Ermera ou Ainaro no interior, nos arrozais do Leste, na estrada de fronteira entre Batugadé e Bobonaro, nas aldeias de montanha onde populações debilitadas sobrevivem nos limites mínimos, a mesma visão de pesadelo contamina paisagens de beleza sufocante. |
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Neste cenário destruído, é visível o esforço de regresso à normalidade. Milhares de habitações queimadascontinuam a ser reerguidas ou reparadas graças à distribuição gratuita de traves de madeira, chapas de zinco, cimento e ferramentas; contudo, ainda só foram entregues metade dos 35 mil «kits» de reconstrução que se julgam necessários. Iniciaram-se obras em algumas estradas intransitáveis, limpam-se valas de água, foi reposto o fornecimento de energia eléctrica em 85% do território - embora, por regra, de apenas algumas horas por dia. Todos os dias abrem pequenas oficinas e estabelecimentos de comércio ou serviços e há um programa de microcrédito para esse fim. Os principais hospitais foram reconstruídos e reequipados, 25 clínicas vão ser construídas até ao final do ano e dezenas de organizações não-governamentais (ONG) internacionais dinamizam projectos de apoio à produção agrícola e de desenvolvimento local. |
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Todos os domingos de manhã, a população de Dilore reúne-se na igreja para rezar em conjunto. Mulheres de um lado e homens do outro, entoam cânticos e repetem as orações que alguém puxa, à vez, porque padre não há. Depois das milícias, vieram as chuvadas torrenciais que deixaram a região quase isolada. E em seguida, como se não houvesse medida para os desastres, uma praga de ratos que destruiu quase 70% das culturas de arroz e milho, a base da alimentação. A situação continua precária, o sagu (farinha de troco de palmeira) tornou-se a base alimentar de muita gente e as orações são bem sentidas. |
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E também de jornais, o último que chegou foi em Maio.» Como na maior parte do território, ainda não é possível captar a rádio de Díli e televisão só há por parabólica; sabe-se demasiado pouco do país que está a nascer, embora se saiba o essencial. No distrito de Viqueque, onde fica Dilore, foram mais de mil as casas destruídas pelas milícias, mas a reconstrução está quase parada. As várzeas de arroz em que a zona é rica também estão em boa parte desaproveitadas, porque escasseiam os búfalos para as trabalharem - foram mortos pelos indonésios - e, para agravar a situação, as enxurradas destruíram os canais de irrigação. No suco (aldeia) de Uma-Uain-Craic, o ex-liurai (chefe tradicional) Martinho Sarmento senta-se numa cadeira de bambu, em pose digna, descalço e de calções, e diz: «Em nome da população, peço um tractor antes da época das chuvas. E peço que o Governo português dê facilidades aos nossos jovens para estudarem na universidade em Portugal.» |
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Uma-Uain-Craic, as escolas foram destruídas pelos indonésios em retirada. As crianças aprendem sentadas no chão, enquanto está atrasado o programa de recuperação de 2100 salas de aula |
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As quatro moedas que circulam (os dólares australiano e americano,a piastra indonésia e, em menor escala, o escudo) animam um florescente câmbio de rua. Sinaleiros timorenses foram formados à pressa para porem ordem nos cruzamentos engarrafados com aproliferação de jipes da ONU e de velhos veículos sortidos, muitos dos quais com matrículas fantasiosas («Nostalgia 2001», «Baby may love», «Escudo», «Maldito amor»). Na praia, ao fim-de-semana,há aulas de artes marciais, enquanto em recantos das ruínas e num terreiro no bairro Bidau se organizam lutas de galos, o desporto nacional, com apostas astronómicas para o nível de vida. Sobrepovoada desde o referendo com uma população de jovens desempregados que gera tensões, a capital fervilha com funcionários das Nações Unidas, soldados da força de manutenção de paz, voluntários das ONG, comerciantes estrangeiros. Os milhares de forasteiros (os «malais») animam algum comércio local e geram emprego, mas também provocaram uma escalada desproporcionada dos preços e os efeitos perversos de uma economia a duas velocidades. Os negócios mais rentáveis, dirigidos aos consumidores estrangeiros, estão nas mãos de comerciantes também «malais», a preços inacessíveis aos timorenses. |
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No centro de Baucau, ao pé das fontes e da cascata onde as mulheres lavam roupa e tomam banho, fica o restaurante Amália Rodrigues, com uma fotografia do Sporting na parede. O dono, Carlos Gonçalves, é o mecenas do Sporting Clube de Baucau, campeão distrital. Foi agente da Polícia Judiciária em Moçambique e em Faro e depois emigrante de sucesso na Austrália, durante 23 anos. Agora quer investir o que ganhou no turismo. Prepara-se para tomar conta do Hotel Flamboyant, o melhor da cidade, e depois planeia abrir hotéis com boa vista e parques de caravanas, para o turismo mais barato, em duas ou três praias. |
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O turismo é alínea obrigatória nos
estudos de viabilização da economia timorense. «Está-se agora a passar da cultura da
emergência para a cultura do desenvolvimento, da cultura de guerra para a cultura de
paz», diz Mari Alkatiri. Os responsáveis do CNRT/Congresso Nacional acreditam que não
será difícil conseguir a auto-suficiência em arroz e milho e duplicar em três anos a
produção de café, o principal produto de exportação. Sérgio Vieira de Mello, o
administrador das Nações Unidas, diz que a economia poderá ser sustentável já em 2004
ou 2005. Para já, os países doadores prometem investir, através do Banco Mundial, 522
milhões de dólares (cerca de 120 milhões de contos) em três anos. A principal garantia da economia timorense, porém, é a exploração do petróleo e, sobretudo, das gigantescas jazidas de gás natural que foram descobertas no mar de Timor. A Austrália está vitalmente interessada nessas fontes de energia. Os dirigentes timorenses dão prioridade à renegociação da fronteira marítima para recuperar a soberania sobre uma vasta área cedida pela Indonésia à Austrália no âmbito do tratado Timor Gap, de exploração do petróleo. «A fronteira marítima deve ser equidistante dos dois países», afirma Alkatiri. |
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O perigo de fracasso, todos o sabem,
poderá espreitar de outro lado: o surgimento de dissenções políticas insanáveis e
violentas entre as diversas correntes que integram o CNRT/Congresso Nacional. A oposição
acesa entre os partidos históricos Fretilin, de Lu-Olo e Mari Alkatiri, e UDT, de João
Carrascalão, não foi disfarçada durante o congresso do CNRT, no final de Agosto, e é
detectável em todo o território, mesmo 25 anos depois da guerra civil. O principal dado
novo é o lançamento do Partido Social Democrata (PSD), do ex-governador Mário
Carrascalão, vice-presidente do CNRT. «Pode absorver uma boa parte da UDT e também uma
tendência da Fretilin, que está dividida em várias correntes», vaticina um observador
português. Quanto aos outros partidos, têm ainda que provar a representatividade ou, até, a viabilidade. Estão previstas eleições para o segundo semestre de 2001, mas nos sucos absorvidos com a sobrevivência diária não se sabe, sequer, que alguns desses partidos existem. |
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Noutro local de Same, amontoados em casas abandonadas, estão mais cerca de 400 refugiados das povoações de Manus e Lurin. A Manus foram os milícias, em meados de Agosto. «Eram 28, armados com espingardas e lança-granadas», conta Paquito Morato. «Ficaram lá duas noites e pediram-nos para os ajudarmos com comida. Eram todos de povoações desta zona. Disseram que não vão fazer mal à população mas que não querem ver os estrangeiros e a juventude da Resistência, porque foram eles que causaram a derrota. Agora estão no mato e roubam nas hortas.» A população fugiu para o pé do quartel com medo de ser envolvida em combates. «Antes da consulta popular foram eles que nos torturaram. Aqui sentimo-nos mais seguros», explica Francisca Fernandes, de Lurin. As Nações Unidas admitem que haja entre 80 e 120 elementos das milícias infiltrados em Timor-Leste e temem que estejam a tentar montar redes de apoio. Já foram mortos dois «capacetes azuis» da PKF (Peace Keeping Force, força de manutenção da paz) na região da fronteira, além dos três funcionários do ACNUR assassinados em Atambua, Timor Ocidental. (Na semana passada, a tropa portuguesa convenceu os refugiados de Same a regressarem às aldeias, e foi presumivelmente com o grupo de milícias avistado em Alas que se travou a escaramuça de domingo). |
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Recentemente, 57 ex-guerrilheiros passaram a actuar como oficiais de ligação com as tropas internacionais, servindo de guias e intermediários com a população, desarmados. | ||
A inacção já cansa. Quando não estão no treino, os homens dormem, desocupados, nas casernas improvisadas. As condições de vida são precárias. «Não recebemos vencimentos, não podemos ajudar as famílias. A comida é suficiente mas falta molho, não dá para toda a gente. Não há medicamentos», informa o comandante da 1ª Companhia, Amélio Ximenes. Um professor de português dá aulas em Aileu, mas só a 50 alunos. Há projectos aprovados de formação profissional para agricultura, mecânica, carpintaria e, até, informática, mas nada se iniciou. «Orçamento», explicação válida em todo o país. Os guerrilheiros esperam, e só a espera preenche o tempo. |
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João Bogalho, agente da PSP colocado em Viqueque, dedicou o tempo livre, desde Fevereiro, a animar uma espécie de ATL nas traseiras da casa dos polícias portugueses. Um dia, contou 60 crianças debaixo do telheiro, a desenharem com lápis de cor. «Nos primeiros tempos, todas as crianças faziam o mesmo desenho, dia após dia, semana após semana», recorda. «Desenhavam a guerra: soldados, espingardas, a bandeira das Falintil.» Mas depois, com a ajuda de livros para colorir enviados de Portugal, os desenhos começaram a mudar. Hoje, a imaginação das crianças de Viqueque já não é refém da guerra. Talvez seja essa, afinal, a mudança mais importante neste ano de paz em Timor Loro Sae. Textos de FREDERICO CARVALHO, fotografias de ANA BAIÃO, enviados a Timor Loro Sae |