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AS FALINTIL

 

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CAMINHOS PARALELOS

 

Eufrásia Menezes e Ana Senhorinha, guerrilheiras que agora se adaptam à independência

Eufrásia Menezes e Maria de Lourdes Cruz não se conhecem. E, apesar de se terem decidido por opções na luta contra a presença indonésia, as suas vidas podem ser olhadas como duas linhas paralelas em direcção a um destino comum. A primeira viu a família ser morta pelos ocupantes e por isso tornou-se guerrilheira das Falintil, em cujas fileiras permanece. A segunda fundou uma congregação religiosa - a única de raiz timorense - destinada «a dignificar os camponeses», que Jacarta considerava os principais apoiantes da guerrilha.

Eufrásia vive sozinha no acantonamento das Falintil, em Aileu, uma vila a escassos 50 km a sul de Díli. O marido, Raimundo Cruz, que era comandante de pelotão, morreu em Abril de 1987, numa emboscada da tropa indonésia, quatro anos depois de terem casado no mato. Aos 35 anos, a guerrilheira está a adaptar-se a uma nova realidade, que envolve, por exemplo, «o ter de tratar da casa». E um dia destes vai assumir a educação do filho que lhe nasceu no mato há 14 anos - o garoto foi entregue aos cuidados das madres de Venilale, o colégio das Salesianas que, durante a invasão, recolhiam os filhos dos guerrilheiros.

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Eufrásia Menezes e Ana Senhorinha,
guerrilheiras que agora se adaptam à independência

Mesmo assim, o seu dia-a-dia ainda é preenchido pela principal tarefa que desempenhava no tempo da guerrilha: no hospital de Aileu continua a olhar pelos guerrilheiros doentes. Foi no mato que aprendeu «a tratar os 'Falintil' feridos com raízes e outros remédios tradicionais». Como prova da competência de «guerrilheira do serviço de saúde», recorda que chegou a tratar Xanana Gusmão de «uma crise de pedra no rim e de paludismo», em 1983, quando se encontravam na zona de Viqueque.
«Mana Lu» aposta na dignificação dos camponeses, para que não sejam cilindrados pela mudança
Maria de Lourdes - ou Mana Lu, como é conhecida entre os camponeses - só se encontrou com Xanana após o regresso do «comandante» a Timor, em Outubro. Não foi apenas uma visita de cortesia, foi sobretudo uma visita de reconhecimento - os timorenses ainda não esqueceram o acolhimento que ela e a sua comunidade proporcionaram, em Setembro passado, a mais de 10 mil pessoas fugidas da fúria das milícias, em Laclara, um lugar a pouco mais de 6 km de Díli, já numa zona de intensa floresta e cafezais. Entre a multidão estavam alguns dos mais destacados dirigentes do CNRT, como Leandro Isaac.

Aos 11 anos, Maria de Lourdes «já havia decidido que seria freira». Mas «as histórias de violações de colegas», todos os dias escutadas no externato de S. José (pertencente à Igreja) e «as permanentes queixas chorosas de mulheres que haviam perdido os maridos ou filhos» levaram-na a mudar o rumo da vocação. «Depois de muitas hesitações», em 1989, com 27 anos, decide-se pela fundação da Congregação Irmãs e Irmãos em Cristo, uma instituição que pretende «desenvolver a vida dos camponeses, dando-lhe ideias para um melhor aproveitamento das terras, apoiando na organização da vida familiar, como a educação dos filhos e a alfabetização dos adultos, ou ainda na doença».

O pai cedeu-lhe os sete hectares que a Congregação agora ocupa em Laclara. As 18 mulheres e os quatros homens que a acompanham são os protagonistas de uma acção inédita que conjuga o trabalho do campo, a escolaridade de crianças e adultos, o apoio na doença e ainda um trabalho de consciencialização política que, «depois de ter alimentado o desejo da liberdade, desenvolve agora o espírito de solidariedade».

A casa de Laclara - onde toda a gente tem assento à mesa - é uma precária estrutura de alvenaria e folha de palmeira coberta por tecto único de zinco, com salas de aula, capela, refeitório e dormitório. Aqui permanecem 45 crianças, filhas de camponeses pobres, que há três anos aprendem português e inglês.

Dezoito raparigas e quatro rapazes, que constituem a comunidade (todos filhos de camponeses), asseguram cada uma das tarefas junto das populações que assistem em Laclara.

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«Mana Lu» aposta na dignificação
dos camponeses, para que não sejam
cilindrados pela mudança
Mas o seu trabalho não se resume aqui. Em Paulara, Viqueque, Betano (concelho de Same) estão mais camponeses com quem desenvolvem acções. Apesar de ser reconhecida pelo bispo Ximenes Belo, o clero timorense não acarinha esta comunidade que a sua fundadora afirma desejar «recriar o espírito de comunidade da primitiva Igreja».
Mas não se pense que esta utopia os retira da realidade. «É necessário agora aproveitar a ajuda das ONG», defende Maria de Lourdes, que demonstra uma enorme capacidade de relacionamento com as instituições de apoio humanitário em Timor. Diz que não são os apoios financeiros que os movem, mas sim «a possibilidade de receber novos contributos para melhorar a nossa agricultura». Por isso é que se desdobra em contactos com técnicos estrangeiros, sem rejeitar o apoio material, como foi o caso da oferta de um tractor feita pela portuguesa Oikos.

As coisas também estão difíceis para mais de 400 mulheres violadas durante a orgia de destruição e violência que assolou o território, depois da leitura dos resultados do referendo de 30 de Agosto passado. Olandina Alves - antiga prisioneira política e que teve de fugir de Díli, em Setembro, para não ser queimada com os filhos e os jovens que se encontravam refugiados na sua casa - assumiu com outras mulheres o apoio às vítimas das milícias. A sua organização, «que se mantém independente de qualquer grupo político», já conseguiu identificar quase meia centena de mulheres violadas pela tropa indonésia e pelas milícias, até à chegada da força multinacional, a Interfet.

 

Mulheres que as milícias tornaram viúvas: reconstruir as famílias é preciso

Inês Costa ficou viúva aos 27 anos, com três filhos menores. Vivia no bairro de Becora, em Díli. No dia 4 de Setembro passado, «logo após o anúncio dos resultados do referendo», a casa foi saqueada e «totalmente incendiada». O marido, Domingos Martins, acabou por ser morto com um tiro das milícias Aitarak. Agora depende da caridade familiar que apenas lhe consegue garantir arroz para as crianças.

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Mulheres que as milícias tornaram viúvas:
reconstruir as famílias é preciso
As histórias repetem-se. Todas parecem repetir-se. Outras ganham contornos maquiavélicos. Floriana Nunes, de 32 anos, Virgínia Moniz, de 29, Rita Oliveira, de 38, Joana Oliveira, de 25, e Antónia Carvalho, de 38, viram todas a mortes dos maridos, quase ao mesmo tempo. E a única razão foi a de serem vizinhos e de, juntos, desejarem mostrar o seu regozijo, quando foi anunciado o resultado do referendo. «Todos gritaram de alegria.» O ataque da milícia Aitarak não se fez esperar, «enquanto um helicóptero militar metralhava as nossas casas».

Olandina Alves diz que não se cansa de percorrer o território. Só no último mês encontrou mais de 200 mulheres «que perderam o medo de indicar os nomes dos violadores e as circunstâncias em que foram violadas». Algumas foram abandonadas pelos maridos, «que não aceitaram tal vergonha». Não é o caso de Francisca Soares. Esta mulher, de 34 anos, com o olhar vago e voz escondida, foi a única a assumir publicamente «a vergonha» por que a fizeram passar. Foi violada à frente do filho mais novo, de 8 anos. Antes, diz quem a conheceu, era uma mulher alegre e vivia feliz com o marido, Júlio Batista, professor primário, que agora é segurança numa empresa australiana. Ele, porém, não se deixou curvar à ignomínia, continuando a cuidar de Francisca e dos filhos. Viviam em Ermera. No dia 13 de Setembro, quando a casa foi atacada, o filho mais novo ficou ferido na perna esquerda. Foi violada pelo Hilário, um timorense de Ermera, militar da Indonésia. Em Atambua, para onde foi levada, aquele timorense voltou a abusar dela, juntamente com Julião, militar, Miguel e Valente, ambos polícias, todos de Ermera e agora fugidos em Timor Ocidental.


Diferente parece ser a situação das cerca de 100 guerrilheiras que vivem em Aileu com Eufrásia Menezes. A queixa vem de uma das suas companheiras, Ana Senhorinha, dirigente da Organização Popular da Mulher Timorense, um organismo das Falintil. A guerrilheira lamenta que «ainda não tenham recebido instruções dos dirigentes» para as acções a desenvolver. Além do hospital - que deixou de ter médico, depois da saída dos soldados da Interfet -, as mulheres e os homens das Falintil não possuem qualquer outra estrutura de apoio ao seu quotidiano. «Ainda não vimos as Nações Unidas. Mandaram entregar sacos de arroz e milho, mas depois não veio mais nada», lamenta Ana Senhorinha, de 34 anos, a quem nasceram cinco filhos no mato.

A dirigente da organização de mulheres das Falintil sublinha ainda o facto de não terem «instrumentos para as hortas». Resta-lhes recordar os dias em que participavam nas emboscadas aos soldados indonésios - «Quando algum morria, éramos nós que lhes tirávamos as fardas, para os nossos as usarem» -, enquanto Eufrásia Menezes mantém a esperança de que lhe seja proporcionado «um curso verdadeiro de enfermagem».

Contra esta «paralisação da sociedade timorense» insurge-se Maria de Lourdes, a quem não agrada nada a apatia das instituições do CNRT e da Igreja. «Estamos como espectadores de televisão, por isso é que as coisas não andam...»

Olandina Alves diz que muitas das mulheres violadas estão grávidas. «Agora há que desenvolver esforços para que não fiquem subjugadas a este drama.» E a antiga prisioneira - a quem os indonésios mataram o marido - garante já ter obtido a garantia de Kofi Annan de que a sua organização «irá receber apoio das Nações Unidas, incluindo o financeiro». Como Olandina diz, «o drama de toda estas mulheres não se restringe a si mesmas, à sua volta estão muitas crianças traumatizadas. São famílias felizes que viram um monstro abater-se sobre elas». Olandina garante que vão ser «encontradas maneiras de pôr aquelas mulheres a trabalhar, as crianças a serem recuperadas e a continuar uma vida normal». Quanto à mulheres violadas abandonadas pelos maridos, Olandina diz «que a esperança de refazer as famílias há-de ser uma luta sem tréguas».

Expresso