Estudo
de uma minoria na ex-URSS: o caso dos judeus na Ucrânia*.
Carlos Alberto Póvoa**
"Mais profunda do que a curiosidade humana em relação
ao seu passado é a inquietude em relação ao seu futuro."
Aron Barth.
A Ucrânia é hoje um dos Estados soberanos mais novos do mundo. Sua
população apresenta diferenças culturais, religiosas, e étnicas importantes.
Apesar dessa heterogeneidade, a minoria judaica conseguiu transpor barreiras
de todos os tipos e conquistar uma posição de destaque no contexto ucraniano.
O s judeus se mantiveram em ascensão na ex-URSS, onde o passado de lutas
e conquistas fortaleram o seu espaço, e consolidaram uma identidade forte,
com base em seus rígidos princípios.
A invasão de Bizâncio por Oleg, em 907, constituiu o ponto de partida
dos conflitos futuros contra as comunidades judaicas. O governo de Lênin
( 1917 - 1923) amenizou relativamente tais conflitos. Porém, a partir dos
anos 30, com a instalação dos PROGOMS, teve início um recuo na expansão
das comunidades que se desenvolviam em regiões ao sul, leste, oeste e centro
da Ucrânia. Ao mesmo tempo, diminuíram os intercâmbios comerciais constantes
com outras comunidades judaicas da Europa Ocidental ( Alemanha, França,
Reino Unido,
Espanha, Países Baixos e Itália ), que investiam elevados capitais
para a melhoria econômica da Ucrânia. As regiões onde se encontravam
os maiores aglomerados judaicos recebiam a maior parte desse montante.
___________________
*Sinopse da monografia de mesmo título, orientada pelo
prof. Dr. Oswaldo Bueno Amorim Filho, ( UFMG - IGC, 1992), a quem agradeço
pela atenção e estímulo..
**Carlos Alberto Póvoa, mestrando em Geografia Política e da Religião
na Universidade Federal de Uberlândia sob a orientação da Profa.
Dra. Vânia Vlach.
A formação do território da Ucrânia se caracteriza por conquistas territoriais
e aquisições, o que inclui a famosa política de casamento.
A atual Ucrânia corresponde à antiga região da Valáquia, Criméia,
Lituânia, Podólia e Volínia.
Em 1266, a costa meridional da Criméia passou ao domínio de Gênova
( porto italiano com forte influência na Europa Mediterrânea), e instalou-se
em Kaffa a sede do Bispado Católico Romano, o que não só chocou aos
judeus, mas a comunidade ortodoxa. Com o auxílio da comunidade judaica,
os católicos ortodoxos eliminaram a soberania da Criméia, em meados do
século XV.
Do século XV ao século XVIII, foram conquistados territórios a leste
( no Rio Donetz), e outras regiões, como as conquistadas por Catarina II
( Criméia, Rio Dniepr, Rio Dnietr e a Varégia). Essas conquistas territoriais
poderiam estimular os exércitos invasores a novas aventuras, tanto
na Europa Oriental como na Ásia Menor.
Em algumas áreas da Criméia, os judeus foram tão numerosos que certas
cidades eram conhecidas por outros nomes, a exemplo de Kerch, que era denominada
pelos árabes e turcos de samarkerch - al- yehuda , Samarkerch-
a - judia.
Estes judeus eram conhecidos como krimchaki ou caraítas. Estas comunidades
não se misturavam com os tártaros, russos e outros povos da região, apesar
de falarem o mesmo idioma, e nem com outros judeus vindos da Rússia e Turquia.
Deve-se destacar, pois a contribuição dos caraítas deram grande estímulo
às atividades econômico-financeiras da Criméia. Parte dessa comunidade
desapareceu no século XX, quando foram exterminados pelos alemães
durante a segunda Guerra Mundial; outros escaparam em direção
das montanhas dos Cáucaso, onde seus remanescentes, chamados de Dagh Chufuti
- ( judeus da montanha ), hoje estimados em algumas mil almas,
abandonaram os idiomas nativos ( tártaro, russo e íidiche), e falam o partsi-tat
e o persa moderno..
As comunidades judaicas viviam em bairros próprios
que eram divididos em três partes: uma habitada por cazaros e outros povos
convertidos ao judaísmo, a outra hospedava ricos
comerciantes vindos da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, e uma
terceira parte era habitada pelos "verdadeiros" judeus. A divisão
dos bairros , porém, não deve ser entendida como uma experiência
de gueto
A divisão interna dos bairros dos judeus ucranianos, especificamente
de Kiev, uma cidade com estrutura medieval, decorria de circunstâncias
comunitariamente normais. Cada comunidade regrava-se por ordenações
locais denominadas de Teknot ou Tekana , que eram formuladas pelas lideranças
congregacionais e proclamadas em sinagogas locais espalhadas pela Ucrânia.
Cada comunidade pertencia a um grande grupo judaico: Ashkenazim, Sefaradim,
Gruzim, Caraítas, Cazaros e outros grupos menores.
Em seus deslocamentos pela Ucrânia, as comunidades distribuiam- se
pelo sul, na região de Kherson às margens do Mar Negro, a oeste,
na região de Lvov nos Cárpatos, ao norte na fronteira com a Bielorus, a
leste em Poltava, Kharkov e Dnietnapetrov. Também eram encontradas
nos grandes centros e na parte central do país ( Kiev). Antes do advento
do socialismo de Stálin, viver em áreas urbanas garantia maior segurança
e proteção frente aos ataques dos cossacos.
As cidades escolhidas pelos judeus para se fixarem geralmente
eram bem posicionadas geograficamente às margens dos rios, o que facilitava
uma abertura comercial, e o desenvolvimento agrícola. Depois que
a população judaica cresceu quantitativa e qualitativamente, e passou a
ocupar maior área e destaque na economia, na cultura e prosperou junto
a outros povos da Europa Ocidental, os conflitos e os populares sentimentos
anti-judaicos aumentaram na Ucrânia. Assim, muitos judeus emigraram para
a Europa Ocidental em busca de uma nova vida. Juntamente com a população
ucraniana eslava, a Igreja liderou protestos e ridicularizou os cultos
e ritos judaicos, profanando os livros sagrados e marginalizando a fé ,
a religiosidade e proibindo as comunidades de realizarem suas orações
( mas o faziam as escondidas).
Nem mesmo os PROGROMS e a fundação de um "Estado" especificamente judaico,
para a ocupação do extremo leste da Rússia siberiana, ao norte da China,
no rio Amur e ligada pela Transiberiana até a República de Borobidjan
ou Raión Yevrey - Região dos judeus, 1932, desmoralizou a perseverança
do povo eleito. A religião foi o alimento principal para essas almas durante
todos as perseguições.
Durante a vigência do socialismo, a comunidade judaica ucraniana se
tornou uma das mais pobres da Europa, no sentido cultural. A decadência
cultural e religiosa foi proposital: as lideranças judaicas se enfraqueceram,
o que favoreceu a cultura e religião ortodoxa
ucraniana , e humilhou os judeus ( Krome ievreiv ! - fora judeu!
). Essa humilhante discriminação era oficial, e acontecia apenas
em locais fechados, ambientes isolados como clubes, restaurantes,
hotéis, escolas e universidades. A antiga comunidade foi desfeita e cada
judeu passou a morar em bairros diferentes, distantes e espalhados pelas
25 guberni ( províncias) da Ucrânia Socialista.
Essa absurda discriminação criava, muitas vezes, situações tragicômicas.
Por exemplo, no início do desenvolvimento industrial na Ucrânia (
o que ocorreu na última década do século XIX ), um judeu poderia ser proprietário
de uma siderurgia, mas não poderia ser um operário da mesma. Como se sabe,
os judeus foram responsáveis pela construção de 75% das estradas
de ferro da Ucrânia e da Rússia ( KARPOV, 1983:68 ); poderiam ser
donos dos mais importantes troncos ferroviários, mas não podiam empregar-se
nas estradas de ferro e nem trabalhar como um simples guarda - chaves.
O entusiasmo inicial com o qual as massas judias receberam a revolução
e o golpe de Estado desfechado por Vladimir Lênin contra a monarquia
Czarista de Nicolau II, foi recebido com vivas reservados, pois as manifestações
judaicas eram permanentemente vigiadas e proibidas. Para a "felicidade"
de alguns, Lênin possuía uma origem judaica, assim como Trotsky; daí a
confiança na revolução e simpatia para com o novo líder bolchevique.
Com essa energia e movimentação das massas, o sionismo comunista
da Ievsektzia ganhou força e propôs a formação de um Estado judeu nas estepes,
pois havia sido incorporada a necessidade de Ter um espaço próprio,
e iniciar de forma promissora esta nova política ( que se colocava
experimentalmente na Criméia).
Durante o governo comunista de Stálin ocorreu uma mudança
radical na política (1929): os estabelecimentos produtivos agrícolas
dos judeus ucranianos nos solos tchernezion passaram a ser coletivos
( sovekhozes ) e a pertencerem ao Estado Socialista .
A partir de 1926, os censos não contavam mais as comunidades
judaicas que, assim, foram incorporadas aos soviéticos. Mais uma
vez, a comunidade foi marginalizada.
Para justificar a URSS, o governo promoveu uma russificação forçada
na Ucrânia, o íidiche foi restrito às casas , pois agora era dado como
língua de protesto.
Muitos pensaram que após a morte de Stálin (1951), as agressões
e as perseguições dos judeus seriam amenizadas. Com a chegada do líder
Nikita Kruschev (1953 - 1964) ao poder, a situação piorou, pois,
não obstante os malabarismos que procuraram atenuar a situação trágica
do povo judeu na terra do socialismo, nada mudou de fato.
No governo de Brejnev ( 1964 - 1981) teve continuidade
a mesma política nacionalista exagerada, que vendia a propaganda
de um povo unificado pelo desejo de ser feliz em um sistema perfeito para
resolver todos os problemas étnicos e sociais. .
Uma minoria atuante, mas sempre presente nos movimentos e decisões
políticas da Ucrânia, os judeus não passavam de uma centenas ou milhares
que estimulavam, com exemplos positivos, a cultura e a economia. Uma população
pouco numerosa, mas que sustentou idéias contrárias às da maioria
ucraniana. Os judeus não apenas ocuparam os espaços políticos,
ou culturais, mas também foram responsáveis pelas transformações dos espaços
agrícola e urbano, colaborando para o desenvolvimento da Ucrânia.
Passando por todas as dificuldades mantiveram-se fiéis
ao comportamento moral e ético judaicos. Aliás, esse foi um dos principais
marcos para a sua inserção na Ucrânia e para a preservação do espaço que
conquistaram para as futuras gerações.
Sob a vigência comunista da ex-URSS, que fechou as fronteiras e as
comunicações com o mundo, os judeus ucranianos ficaram isolados, pois não
havia meios de se obter informações e de ter contato com outras comunidades
judaicas, a não ser pelas trocas efêmeras de rabinos.
Assim, a Cortina de Ferro, algo intransponível, tornou-se um
desafio a muitos que fugiram desse inferno político e, cansados de serem
humilhados, passaram a viver em outros países. Aqueles que fugiram, perdiam
o contato com os familiares, mas os familiares que ficavam respondiam aos
processos instaurados pelo Estado soviético.
Na Ucrânia atual, os contatos foram restabelecidos com
algumas comunidades do Canadá, Estados Unidos da América e Israel, para
onde o maior número de emigrantes se direcionou .
Os judeus ucranianos, mantiveram os valores essenciais do judaísmo.
Sem dúvida, essas foram as e principais razões de sua sobrevivência.
Estudando os judeus ucranianos, constatamos que a relação de
um povo ou de um grupo com o espaço é vital quando existem valores enraizados
e mantidos através do tempo, pois consolidam uma identidade forte.
Para a minoria judaica, esta identidade é a razão de suas lutas e
vitórias. Mas importante do que a conquista de um espaço, porém,
é a luta de uma sociedade por seus direitos e liberdades.
A trajetória dos judeus na Ucrânia e/ou ucranianos confirma a necessidade
da busca de uma identidade cultural e espacial, legitimada e reconhecida
pelos demais povos.
Bibliografia:
AMORIM FILHO, Oswaldo B, Fundamentos para uma Geografia
Política Ampliada. IGC - UFMG, Belo
Horizonte - MG, 1983.
8p.
BOGARAD, D.I, Soyuz Sovistskyr - Ukrayïna Rayïon. ( União
Soviética - Região da Ucrânia), Izdatelstva
Moskova ( Ed.
Moscou). 1969. 343p. (Na Ukaryïna B
Payïon.) 13 p.
EBAN, Abba, A história do povo de Israel - Os primórdios do
judaísmo do leste europeu. Novos centros
do povoamento judaico.
4 º Edição, Rio de Janeiro - RJ, Ed. Bloch
1982. 178 a 182 p.
FRANÇA, Júnia Lessa. Manual para normalização de publicações
técnico-científicas. Ed. UFMG. Belo
Horizonte, 4 º Ed. 1998,
p213.
GOLGHER, Isais. A tragédia do comunismo judeu. Belo Horizonte,
Mineira Ltda, s. d. 287 p.
HANEIKO, Valdemiro. Em defesa de uma cultura. Rio de Janeiro,
Cobrog, 1974. 131 p.
KARPOV, Y. C. Gueográfyiá B SSSR. ( Geografia da URSS).
Tradução K. Arsyronts. Izdatelstva
Progress, ( Ed. Progresso).
Moskovo - Rossyia ( Moscou - Rússia
), 1983. 190 p.
MARGULIES, Marcos. Os judeus na história da Rússia. Rio de
Janeiro, Ed. Bloch. 1971.
328 p. Cap. IV - Kiev, 73 a 110 p.
SCHWARTZ, Lee. USSR Nationality redistribuition by Republic.
1979 - 1989. From published of the 1989
all - Union Census -
SOVIET GEOGRAPHY. Vol. XXXII, april,
june october. 1991.
UNTERMAN, Alan. Dicionário judaico de lendas e tradições. São
Paulo. Zahar, 1992. 278 p.