A História de Brasília

As portas do pronto socorro se escancararam pela décima segunda vez naquela noite, e o corpo semimorto de um idoso era cuspido para dentro do hospital na humana esperança de devolver a vida que se esvaía impiedosamente daquele organismo. Os médicos já haviam se mobilizado, e em poucos segundos estavam na sala de cirurgia. Os olhos quase sem brilho do ancião depositavam toda a sua esperança nas mãos e conhecimentos da equipe de mágicos, que tinham o poder de decidir, mesmo que inconscientemente quem continuaria a viver. Os médicos prontamente identificaram o evidente quadro clínico: infarto do miocárdio. Como máquinas, rapidamente tomaram as decisões mais acertadas e as ações imperativas. E como homens, cada um ao seu modo, e encarcerados pelo silêncio, eles rezaram.

Nunca saberemos se foram as mãos treinadas das máquinas ou a prece das almas que o ajudou. Na verdade isso tem pouca importância nessas horas. Ele havia sobrevivido ao primeiro obstáculo. Ou seria o último?

Encontrava-se na unidade de terapia intensiva, e seria apenas a primeira noite. Havia reconhecido o valor da vida. E se arrependera de não tê-la vivido como sonhara. Havia sido um erro. Agora, irreparável. "O arrependimento faz parte de redenção", pensou o velho, tentando se consolar. "Agora colherei o que mereci". A noite no hospital é sempre sombria, e aquela não era diferente. O cheiro da morte era marcante, e isso o homem velho identificava muito bem. Aquele cheiro perfumava o hospital, e acordava o medo sepultado em nosso inconsciente. Despertava o medo do desconhecido. O medo do fim. O coração ainda caminhava com cuidado, e sua mente muito mais. O silêncio era sepulcral, e a vida pedia um descanso, o qual o velho somente queria conceder a sua mente amedrontada e ao seu cansado corpo. Queria apenas dormir. Dormir e depois acordar.

O cansaço foi-lhe derrotando, e o sono já estava a alcançá-lo. O coração do velho homem era, naquele momento o único a falar. Paulatina e desordenadamente. Mas ainda falava. A respiração quase não se fazia perceber, e de braços dados ao batimento inseguro do órgão vital, caminhava rumo ao deserto escuro. O tênue soar das batidas, confundia-se agora com a marcação precisa dos tambores de guerra. Eram tambores ingleses. O som ganhava em intensidade. O velho homem associava-o a um filme que recentemente assistira. Um filme sobre luta e liberdade. Mas aquele som era forte, e o comovia. Os tambores pareciam estar naquele quarto de hospital, e ele, mais uma vez teve medo. Era a morte que se aproximava. Então era assim que se morria. Ao som de tambores triunfantes.

O pequeno e branco quarto, lentamente perdia sua definição. A visão estava lhe deixando o corpo sem vida, pensou. No então enevoado cômodo, uma figura humana se fazia definir. Um anjo ou um demônio?... Um antigo conhecido! Um antigo inimigo. Felipe Aphonso Baptista. O espanto lhe acelerou o já fatigado coração. Não era para menos. Felipe era um antigo inimigo, mas um antigo inimigo morto! O velho pensou que eles agora estavam se encontrando no inferno ou em algum outro lugar para onde os mortos são levados. E o encontro seria um acerto de contas. O velho homem estava errado.

__ Felipe Aphonso Baptista

falou-lhe a trêmula voz do ancião

__ Vieste para se vingar?

__ Caríssimo adversário, minha luta morreu em 1974.

__ Então, porque veio me ver depois que morri? O que deseja de mim? Irá me levar para algum lugar?

__ Velho, eu não o vejo morto. Não ainda. De você nada desejo, embora seja exatamente o contrário o motivo pelo qual aqui estou. E finalmente, sim, levar-te-ei para algum lugar. Levar-te-ei para onde você deseja neste momento. Levar-te-ei para o passado.

__ Então não estou morto? Mas como... eu... eu...você está morto, ou não está?

__ Decerto estou.

__ Você é um fantasma? uma assombração?

__ Isso eu não saberia lhe dizer.

__ Mas então o que está acontecendo? Estou sonhando? Estou sonhando acordado? Estou ficando louco com a proximidade da morte?! diga-me! Eu lhe imploro! O que está havendo?

__ Eu não sei. Sinto. Você é o único aqui com poderes de definir o que é a realidade. Quanto a mim, estou aqui para contar uma história. Uma história que lhe está escapando, e que nesse momento, você luta desesperadamente para mantê-la. A história que de alguma forma crês irá mantê-lo vivo. A sua própria história.

__ Perdoe-me, Felipe, mas estou muito confuso, e cansado. gostaria que, se possível...

__ Incrível como os rumos da história navegaram a deriva até encontrarem você. Seria uma falta tremenda se me furtasse a memória dos que muito antes do seu nascimento edificaram o sonho no qual vieste a se alimentar. O sonho no qual você se tornou. Um homem de nome Francisco Varnhagen, no distante passado de 1839, declarou que a capital do recente país deveria ser o centro do continente. Obviamente, na época, isto era impossível, e não há necessidade de explicar porque. Mas o que interessa é que este foi o início. Pouco depois, 1873, creio eu, Dom João Bosco tem sua visão declarada: "Eu enxergava nas entranhas das montanhas e no meio profundo das planícies... Entre os paralelos 15o e 20o havia uma depressão larga e comprida, onde se formava um lago. então, repetidamente, uma voz assim falou: ´Quando vierem escavar as minas ocultas no meio dessas montanhas, surgirá aqui a terra prometida, vertendo leite e mel. Será uma riqueza inconcebível´" . Até hoje não sei ao certo o que esta visão realmente significava, mas de uma coisa tenho certeza, ele não estava interessado na mudança da capital. Mas são tantas as coisas inexplicáveis. Até mesmo sua morte, velho homem, ou o que significa essa conversa. Mas vamos nos ater somente à história. Dom Bosco era um iniciado. Poucos o sabem, mas suas relações com a Grande Loja Alpina eram estreitíssimas. Nada entendo de organizações ocultas e sociedades secretas, reservando-me o direito de apenas conjeturar. A Maçonaria poderia possuir interesses na mudança da capital. Talvez devido a grande dificuldade de se manter ordem em uma cidade caótica como o Rio de Janeiro. E nada mais perfeito do que construir, da maneira mais conveniente o palco para o desenrolar das manobras. Mas porque então deveria ser aquele lugar? Não seria muito racional por parte de alguém que deseja construir a nova capital do país, fazè-lo no distante final do século passado no meio do nada! Porque fora aquele planalto o local indicado por Dom Bosco? E que interesses teria ele em que fosse exatamente ali, tão distante de tudo, naquela época. Desconfio ainda que a Grande Loja Alpina mantém contato com os Tremere na Suíça e Áustria. Quem vai saber...

__ Sempre os Tremere...

__ As manobras fluíram com extrema rapidez. E em 1891, malogrando todos os esforços de D. Sebastião, a nova Constituição declarava imperativa a mudança da capital. Detalhe do qual Ana Cláudia e eu próprio nos ocupamos. É de seu saber, Dom Sebastião havia se tornado Prince do Rio de Janeiro no ano de 1888, e seu poder se estendia por todo país. Creio que D. Sebastião não conseguiu identificar os reais inimigos que o derrotaram. Não obstante, sua influência foi decisiva para que este artigo da Constituição não passasse de uma página escrita. Foi uma vitória sem louros. Mas a batalha prosseguiria.

__ Dom Sebastião... Quanto ódio ainda corre em minhas doentes veias... Eu me lembro que em 1922 os Tremere haviam implantado na atual cidade satélite de Planaltina, uma pedra fundamental para a criação de uma nova cidade, mas isso não possuía nenhuma correlação com a mudança da capital. Era apenas um sonho de se criar uma cidade diferente. Acho que era por causa do imenso poder que jaz sob o solo da região, e algo relacionado com o antigo sonho de Dom Bosco.

__ Decerto, velho. Em 1925, depois da ousadia de D. Sebastião em promover a revolução paulista em maio de 1924, o Presidente Artur Bernardes declara que urgente a mudança da capital. Em vão. Conseguimos levantar novamente a questão com os revolucionários de 1930, seria nossa grande chance. Mas a sorte não estava nos acompanhando. Getúlio Vargas se mostrou o mais astuto dos homens públicos do pais e fez do Rio de Janeiro a fortaleza para sua ditadura, abandonando a idéia de mudança da capital. Ele chegou até mesmo a minar as forças de D. Sebastião. Dizem que ele sabia que vampiros existem, mas eu acho que isso era apenas um boato. Getúlio tentou desviar a atenção sobre a mudança da capital com a criação e inauguração de Goiânia, a nova capital do estado de Goiás. Mas não estava-mos interessados nisso. Uma pequena pausa foi feita. O débil coração do velho, implorou por alguns minutos de descanso.

__ O então presidente Café Filho, afasta-se por motivos de saúde, e em seu lugar assume o presidente da Câmara dos deputados Carlos Luz, que governa apenas três dias. O General Lott, depõe Carlos Luz antecipando-se a um suposto golpe de estado que impediria a posse do eleito Jucelino Kubitschek, substituindo-o pelo senador Nereu Ramos. Esta fase foi vital, porque tinha-mos certeza das convicções de Jucelino. Ele iria mudar a capital. No entanto Eu e Ana não poderíamos garantir que Kubitschek iria assumir, foi então que...

__ Foi então que te conheci.

__ Rio de Janeiro. 1954. Trinta e dois anos. Tu, o homem que sonhava salvar e reconstruir o país, um homem justo, um homem digno. O homem certo. A fera lhe encontrou na estrada da Tijuca. Uma noite de dor. O início de uma mudança nos rumos do país. Difícil foi a adaptação. Grandiosas foram as conseqüências.

__ Quanta inocência fluía em minhas veias. Como sinto falta disso. Era lindo...

__ E então vieram os vampiros. Primeiro Marília, a qual sempre foste apaixonado. Uma pena a moça ser tão rebelde. Devo confessar que realmente era uma linda moça.

__ Ah, Marília, se soubesses o quanto te amei...

__ Marília foi a ponte. Não só para o amor, mas também para o poder. Por seu intermédio conheceste o Brujah Franco di Modena. O estranho líder, que como eu, acabou morto. di Modena lhe despertou uma outra faceta da história. A corrupção e a manipulação. Mostrou-lhe um Rio de Janeiro acabado. Infestado de vampiros sem princípios. A cidade de São Sebastião e de Dom Sebastião. Um Ventrue odiado por muitos Ventrue. E um Ventrue odiado por você. Franco e Marília desvendaram seu olhos e nada mais poderia segurar a angústia que dormira em seu peito. Aquilo deveria acabar. Mas como?

__ Foi naquele jantar que Marília me levou. Estavam todos lá. Todos os grandes. E o assunto tratado era muito delicado.

__ Exato. Naquela noite, reconheço, pedimos ajuda. Escolhemos a dedo, e um a um, lhes passamos nossas idéias de levar a capital para o interior de São Paulo. O primeiro foi Gaudi, o grande Antônio Gaudi, o arquiteto de mundos. Fora ele quem nos alertou a possibilidade de ao invés de transferirmos a capital, construirmos uma nova, para que o controle fosse mais eficaz e seguro. Disse que colaboraria e intercederia junto aos Toreador em nosso favor, somente no caso de ser uma nova cidade. O seu preço nos pareceu uma vantagem. Era o nosso primeiro aliado. Em seguida Procuramos por Barros, o Gangrel. A proposta de poder no interior brilhou fundo nos olhos do ambicioso Gangrel. Afinal, lá eles são maioria. Uma pena que sua ambição o impedia de ir mais a fundo. Não havia meios, como imaginava, de ele nos trair. Muito antes, nós já o tinhamos feito. No momento do acordo. Que ele descanse em paz...É particularmente engraçado dizer isso na minha situação. Barros cumpriu sua tarefa e colocou os Gangrel contra D. Sebastião. Mas isso não bastava. Não era força bastante para derrotar a vasta influência do Prince do Rio de Janeiro. A guerra precisava ser travada com armas poderosas. Procuramos o Tremere Yan, o protegido de Vante de Languedoc. Yan nos deu um único preço. Ele elegeria o local da nova capital. Não vimos por que não aceitar a proposta. Além disso, seria óbvio o apoio do próprio Vante. Vislumbrávamos então um futuro promissor. Poderíamos contar como certa a vitória sobre D. Sebastião, mesmo que sob a pena de diluirmos o poder. Entretanto, mais tarde da noite, Yan veio ter comigo. Disse-me qual era o local que desejava para a construção da capital, espantei-me de início, afinal era no meio do planalto central, distante de todas as grandes cidades. Um local um tanto quanto perdido. Bem, era o preço dos Tremere, e eles eram imprescindíveis. Disse-me que o lugar era místico. Essas bobagens que eles acreditam. Pois bem, aceitei. Yan disse-me então que havia um outro problema. Um enorme problema. O local estava infestado por lupinos. Era um lugar sagrado para eles. Quando me disse que o problema eram os lupinos eu sorri. Mas a coisa era mais séria. Um mensageiro na semana seguinte me retornara com a seguinte frase "Nunca pude imaginar que houvesse tantos deles num só lugar. Estou contente por ter retornado com vida, senhor Felipe."

__ Sim é agora que eu e Marília...

__ Eu o havia conhecido naquela noite e Marília me confidenciara a natureza de seu sangue. Na noite seguinte a chegada de meu mensageiro, eu lhe procurei. Ela havia me dito de quem eras filho, e você poderia ajudar. Muita sorte a minha, ou nossa, por possuirdes opiniões semelhantes às que acreditávamos. Alguma coisa necessitava mudar, e deveria começar pela deposição de D. Sebastião. Faltava-lhe a idéia e estas nós lhe fornecemos. Sua mente se deliciou com a possibilidade de um país mais justo. Uma pena que isso não exista.

__ Hoje eu sei.

__ Em 1956 Jucelino envia a mensagem de Anápolis ao congresso, criando a Companhia Urbanizadora da Nova Capital, NOVACAP. Em 1957 começam os incessantes trabalhos de construção da capital. Sob as diretrizes de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. É particularmente interessante dizer que Lúcio Costa desenhou a cidade como Yan e os Tremere desejavam, e o quanto o homem Niemeyer possuía da genialidade de Gaudi. Ainda é importante frisar o terrível desaparecimento de Barros nos esgotos da cidade maravilhosa. É sempre importante conhecer alguns Nosferatu. Tinha um certo receio quanto ao que você poderia conseguir junto aos seus, mas vejo que era infundado.

__ Eu também não estava certo se conseguiria. Mas o trato foi feito.

__ Juntos, eu, Ana Cláudia, você, os Lupinos, Tremere, Gangrel e Toreador. Nós conseguimos!

Dito isto, o corpo do velho lobo cai sem consciência.

__

Cansado, o lobo somente despertou quando já eram duas e quinze da tarde. Outro susto se abatera sobre seu já castigado músculo. Desperta com a presença de uma pessoa. Kalu. Uma visita realmente inesperada. Foram raras as vezes que sua devotada aprendiz saiu da área dos lobos. Mas aquela era uma ocasião especial. O velho cão tentou falar-lhe, mas prontamente Kalu interrompeu-o indicando que não o era necessário. Ainda que o fosse, Kalu não deixaria, já que os doutores lhe haviam recomendado. Lágrimas navegaram pela enrugada face do ancião, incentivando as de Kalu a tomarem o mesmo destino. Ele sabia o que ela significava. Ela era sua aprendiz. Nela, algo do velho passou a habitar. E naquele instante ele a viu com outros olhos. Kalu era a continuação da sua vida. Da vida que aos poucos deixava seu corpo. Uma centelha de esperança acariciou sua alma, e isso o emocionara. O restante do dia transcorreu pacificamente, salvo os momentos de exame, onde a apreensão resistia ao autocontrole. Novamente se encontrava naquele quarto branco e cinza, sem vida. Da visão, seus pensamentos ascenderam rumo ao paraíso. Pensou: como seria mais bonito se os quartos de hospitais fossem coloridos. Dar-nos-ia uma morte mais digna e bonita. Porque não há árvores com frutos exóticos e suculentos junto à maca? Como seria melhor se pudéssemos sentir a brisa do entardecer trazendo consigo o perfume das orquídeas e bétulas. Era como derepente, todo o quarto se enchesse de plantas, que o velho passara a discriminar pelo agradável olor. Margaridas, lírios. Como gostava dos lírios. Uma a uma ele saboreava o perfume. Agora era o cravo, e seu marcante cheiro. Mas algo ocorria de errado com o perfume do cravo. Era como se tivesse apodrecendo. O velho pensou na sua morte. Era como se o cravo fosse de carne. e a carne da flor havia se tornado morta, exalando agora um fedor pútrido, que lhe lançou diretamente para as páginas da Divina Comédia. O cravo estava morto. Mas o que isso significava?...

__ Isso não significa nada além do que deve significar.

__ Disse uma voz estranha e pausada. Quase um lamento. Quase um resmungo. Apavorado, o velho abre os olhos, abandonando à própria sorte seu lindo jardim. Procurou por toda parte mais nada viu. Seu inafortunado coração novamente disparara.

__ Merda, estou perdendo a razão.

__ Disse baixinho para si mesmo, já com a respiração arfante.

__ Não creio que estejas perdendo a razão, meu jovem. Não julgues apenas por seus olhos.

__ Mas... Você é real?

__ Isso somente tu podes responder. Estou aqui porque uma história deve ficar viva. A história que ajudaste a erguer. Brasília era a nova capital, vocês haviam conseguido. Uma pena que por pouco tempo. Vocês nunca poderiam prever que a vingança de D. Sebastião viesse pelas mãos dos Malkavian...

__ Agora eu sei quem está falando. Minha amiga! Quanta satisfação em poder ouvir-lhe.

__ A satisfação é recíproca.

__ Mas onde você está, Raphaela?

__ Isso eu não sei.

__ Não seria possível ver-te? Agora na hora de minha morte, porque não me revelas sua verdadeira face?

__ Não creio que já tenha lhe mostrado. Mas mesmo assim não me importaria de me revelar agora, mas não sei porque eu não posso.

__ Mas como? Isso é muito estranho. Você não está respondendo por suas faculdades?

__ Não. Não é isso. Eu simplesmente estou aqui para narrar-te uma história. Mas não me pergunte porque. O velho estava confuso. Não entendera nada do que sua amiga lhe havia dito. O diálogo desapareceu por alguns instantes. Quando o lobo refletia sobre o que estava acontecendo. Mas novamente o sussurro retornou.

__ Amigo, construída a nova capital, vocês tinham que se organizar. O primeiro passo para a mudança do país fora dado. E para que a mudança realmente continuasse, você preferiu não ir para o recém criado território Garou. Ficou na cidade. E de perto observou e participou dos acontecimentos.

__ Perdoe-me, Raphaela, mas a minha cabeça está ficando fraca, e meu corpo muito cansado. Relembre-me desses mais de trinta anos desta cidade, mas faça-o sem abusar dos detalhes.

__ Como quiseres. Não me estenderei, meu caro, portanto, fique tranqüilo. O velho esboçou um sorriso, em agradecimento pela compreensão da colega. Então a voz ruidosa continuou:

__ Nesta região, três pontos jorram energia em proporções gigantescas. Esses pontos estão simetricamente eqüidistantes, formando um triângulo perfeito. No acordo que foi proposto por ti, dois dos pontos ficariam na área dos Lupinos, e um deles com os Tremere. Foi no ponto que os Magus elegeram que a cidade foi erguida. Curiosa e propositadamente, o mesmo ponto que Dom Bosco vislumbrara. Tudo muito bem planejado, para que a simetria da cidade entrasse em acordo com a força que pulsava no lugar, tornando a cidade um lugar muito especial. No lugar emanava a paz. E a paz entre vocês era construída. Firmou-se um pacto de não interferência nos assuntos dos seus semelhantes, e os vampiros que de início para cá vieram não tinham porque brigar.

__ Como fui idiota em achar que aqueles primeiros anos iriam durar para sempre...

__ A organização da Camarilla no lugar ficou assim definida: O prince indicado foi Felipe Aphonso Baptista. Como Elders representavam os Gangrel, Hugo Valência; os Brujah, Fernanda Lopes; Vante de Languedoc representava o clã Tremere; Antônio Gaudi os Toreador; Jim Davis os Ventrue; Van Eyck os Malkavian e eu, representava os Nosferatu. Havia também um Ravnos, que era uma figura enigmática, mas indiferente aos assuntos com os quais a Camarilla se importava. Tudo corria bem naqueles ano inicial. E nada parecia ameaçar bases tão sólidas. Nem mesmo a sucessão presidencial. Eleito por uma larga margem de votos, Jânio Quadros, era um político que respondia positivamente às expectativas do grupo dominante. O início do seu mandato demonstrou que nada iria mudar nos planos dos todo-poderosos da nova capital, e isso era bom. Mas...

__ Como iríamos imaginar perversa trama?!

__ Perversa na mesma medida que genial. D. Sebastião, unira-se aos Malkavians do Rio de Janeiro, e juntos arquitetaram um plano que destruiu por completo as pretensões que vocês possuíam. Jânio, sem mais nem menos alega impossibilidade de governar após oito meses. Adivinhe quem estava por trás disso? O vice João Goulart iria assumir, mas estava na China. Os golpistas tentaram junto ao congresso, impedir que Jango assumisse. Sem perder tempo, os Tremere se acercam de Jango, tornando-o confiável. Jango assumiu, mas o regime passara a ser parlementarista. Os Tremere e alguns Ventrue, como Ana Cláudia, trabalharam duro para que o novo sistema de governo fracassasse. Conseguiram. Jango voltou a ter plenos poderes em 1963. Porém os Magus foram incapazes, assim como todos, de identificar a real profundidade do plano. Jango possuía tendências socialistas e seu governo era marcado pelo antagonismo, e os militares não podiam admitir que se permanecesse presidente. Bastou um pequeno empurrão, e o golpe de 64 destruiu aquele sonho de paz, liberdade e poder.

__ Acho que a liberdade ficava por conta somente da minha ilusão.

__ Que seja, mas era o que importava na época. Com o golpe, toda a política virou do avesso. Não só não mais possuíam bases para realizarem suas idéias como também uma grande ameaça se abateu sobre vós. D. Sebastião veio para Brasília. O governo militar estava em suas mãos, e a cada noite desaparecia um vampiro. Dom Sebastião estava utilizando o exército para matar vampiros! Em uma reunião marcada para o dia 12 de fevereiro de 1965, D. Sebastião expôs sua posição. As perseguições cessariam em troca do principado e do exílio dos mandantes da mudança da capital. Todos ficaram em silêncio, inclusive você, que já havia se tornado um dos representantes dos Lupinos. Dom Sebastião não sabia que muitos estavam envolvidos no plano. Sabia apenas que dele haviam participado Felipe Baptista e Ana Cláudia Nunes. E eram somente esses que queria exilar. Nós, e os próprios Ventrue concordamos com a proposta. Apostando que o regime militar não iria durar muito tempo. Sabemos que não foi assim, Dom Sebastião não recebeu ameaças ao seu principado até 1984. Durante este período, você se retirou da cidade e foi para o território dos lobos.

__ Acho que foi a melhor parte da minha vida. Depois do impacto sofrido com o desmoronamento do meu sonho, a verdade havia me massacrado. Creio ter sobrevivido porque a natureza me amparou. Como eram românticos aqueles dias...

__ Você vivia para a terra e para o seu clã, enquanto a vida na cidade continuava tensa. Em 1972 Felipe e você entram em um sério atrito. Em 1974 Felipe Aphonso Baptista foi morto por William Roderick Brugess. Ana Cláudia Nunes desapareceu para não sofrer o mesmo destino. Fernanda Lopes também saiu da cidade para organizar grupos de guerrilha. Marília de França, sua mais querida vampira, sumiu em uma noite de 1971. Em 1967 chega a cidade um misterioso Nosferatu, que atendia pelo nome de Sewer, nem mesmo eu sabia ao certo quem era ou o que queria. Junto com ele veio seu criador, Dom Antônio, que me substituiu na representação do clã por sugestão de seu antigo amigo D. Sebastião. Os Tremere adotaram uma política de indiferença ao governo de D. Sebestião, e Vante raramente era visto na cidade.. Me parece que haviam acertado algum tipo de acordo com o Prince. William, depois do crime que cometeu foi substituído por Yoscar, um Gangrel, como o braço direito do Prince. Jim Davis aumentava assustadoramente a sua influência na cidade através da Igreja do Sangue de Jesus. Vocês perderam em 1969 um dos dois pontos que brotava energia em uma disputa com os magos. Este ponto perdido veio a se tornar o famoso vale do amanhecer. Muito mais aconteceu até 1984, mais isso você não pode lembrar.

Dito isto a sinistra voz se dilui no quarto, e o corpo cai no campo de batalha.

__

O despertar deu-se logo pela manhã. singular, em função do grave quadro clínico, o qual ainda inspirava cuidados, e também pela hora tardia de sua recolhida. Mal tinha forças para se levantar, embora isto lhe fosse proibido. Entretanto, a obstinação derrotou o cansaço e o receio. O velho lobo estava de pé, sua alma precisava deste conforto. Dirigiu-se até a janela, e dela, contemplou a obra da natureza. Era apenas um arbusto que crescia solitário no lado oposto da rua, mas era o suficiente.

Aquela visão transformara-se em seu universo, e toda a magnitude da natureza fluía naqueles ramos curtos e retorcidos. Mas alguns passos no corredor acrescidos do ruído produzido pelo carrinho dos medicamentos foram suficientes para tirá-lo de seu êxtase, obrigando-o a novamente, mas agora sem intenção, a dispensar enorme esforço físico para rapidamente retornar à maca. Por pouco a enfermeira não constituiu flagrante. E tamém por pouco seu frágil coração não permaneceu na batalha. Aquela árvore lhe tocara a alma de modo especial. Aos poucos sua imagem desvanecia de sua memória.

O velho lutava contra isso, mas em vão. Crescia em seu peito a necessidade de revê-la, para que pudessem entrar em harmonia. E não havia muito mais tempo para isso. A hora mais indicada seria depois de se alimentar, já que invariavelmente, depois da refeição, os pacientes da UTI se entregavam a Morfeus. Foi o que aconteceu. Com muito esforço se ergueu da maca e caminhou com passos curtos mas decididos até o pórtico. Novamente estavam frente a frente, e os enigmas eram revelados, produzindo um leve sorriso na face sofrida do lobo. Como era magnífica aquela silhueta. Como era confortante e sublime a plena identificação do milagre da vida. A alegria encontrara um hóspede naquele quarto. Ele retornou à maca. Suas pernas não mais lhe agüentavam. Estava sentado, e seus olhos lentamente se cerraram.

Procurava pensar naquela árvore, e em tudo que ela lhe havia dito. Ele estava morrendo! Sentia agora uma leve pressão no dorso da sua mão esquerda, que repousava sobre a maca. O toque era frio, mas cuidadoso, quase um carinho. Sentia que algo se aproximava de sua face, até que a tocou. Mas ele não abriu os olhos. Aquilo que, com ternura lhe tocara os lábios, era algo conhecido. O leve toque transformou-se em beijo, e ainda sem olhar ele se lembrou. Era ela. Beatriz. O longo e doce beijo que a muito não experimentava. Abriu os olhos para admirar aquele perfeito rosto. Não havia rosto. Não havia nada. E então o velho lobo chorou.

__ Porque choras meu querido? Não gostou do que fiz?

__ Beatriz?! É você?! Onde você está?!

O lobo, com os olhos, a procurava no quarto. Mas não havia ninguém.

__ Beatriz!

Chamou o velho, agora com menos confiança.

__ Estou aqui.

isse a voz com ternura.

__ Não consigo te ver. Onde você está?!

Perguntava o velho, transbordando em aflição.

__ Eu não sei.

Foi a pesada resposta.

O idoso levou as mãos à face ainda úmida de lágrimas. O que significava aquilo? ele então cobriu seus olhos com os grossos dedos, como em desespero. E foi então que a viu novamente.

__ Você está aqui! Eu posso vê-la!

Disse o ancião, de olhos cobertos e esboçando um sorriso. Ela estava ao seu lado, fitando seus olhos cobertos, que agora enxergavam. Estava pronta para beijá-lo novamente. Depois do beijo o velho lhe perguntou por que aquilo estava acontecendo.

__ Eu poderia lhe dizer, mas se o fizesse eu estaria desrespeitando as regras, ou então estaria lhe contando algo que não existe. Somada a minha loucura, está o fato de não saber o que está acontecendo. E mesmo se soubesse eu não saberia se é ou não verdade. então, acho que só você é quem sabe. Mas nem disso eu tenho certeza.

__ Mas eu não sei! É tudo muito estranho. São no máximo meio dia. E você está aqui! Como isso é possível?

__ Você é que está aqui.

__ Então você não está aqui?

__ Estou, mas é porque você está aqui. E quanto ao fato de estarmos aqui em plena a luz do dia, isso tem um significado, mas este só você sabe.

__ Mas Beatriz...

__ Não vamos complicar as coisas, meu querido. Eu mal consigo deixar de fazer isto, e se você também o fizer é capaz de nos perdermos neste aqui. Então deixe-me contar o que tenho para contar. Ouça aquilo que queres ouvir: 1984, o regime militar teoricamente acaba. com ele o poder de D. Sebastião. Mass rielae se mante ve distante forest guaru oti um pouco no poder , mas o poder de ficar , não o de ir. Escute, eu estou me perdedo. Me ajude!

__ Beatriz, escute! Concentre-se! Tente ser você!

__ Isso doi...

__ Mas você tem que fazer isso!

__ Argh... Meu amado. As figuras dominantes eram Vante, Davis, Gaudi, Fernanda e Van Eyck. E é claro D. Sebastião. Hurg.. É dificil, meu amor...

__ Continue... Força, Beatriz!

__ A Camarilla de Sâo Paulo estava interessada em contatos mais firmes, se aproveitando da situação no Rio de Janeiro desordem. Mas isso dependia do estabelecimento da ordem e paz na capital. D. sebastião conseguiu um grande acordo... O outro vampiro vai falar do futuro verdadeiro de Brasília contando o que realmente acontecia naquele quarto. se lembrando de hoje, o dia de sua morte e delírio. Contará sobre porque era um Malkavian, porque era um Ventrue morto, e porque não via a Nosferatu, e porque o negócio da árvore e todo o resto... Meu Deus eu vou explodir!!

Gritou Beatriz.

__ Eu não sei o que disse e nem porque! Merda. Eu, me desculpe, meu amor, eu não pude controlar o que aconteceu. Eu não era mais eu, eu era, eu era... esqueça, preciso continuar.

__ Mas quem estava falando?

__ Nesta época, o acordo firmado depois da expulsão dos Sabbat, que haviam se infiltrado durante o governo milico. A guerra terminou em 85, e muitos de nós estávamos mortos. Depois do acordo, em 85, com os grandes primogens, os Setitas e os Ravnos, D. Sebastião governou o período mas pacífico, que durou até 1994, quando a conjunção das estrelas culminou a intenção do Prince se ausentar por causa do malkav que controlava as mentes em uma briga com outro Matuselah. Isso tudo era época de Pablo Kantor. E toda aquela história de somos todos do mesmo clã e que nem o Prince, nem a Camarilla nem os Sabbat prestavam como forma de organização, e quem nem assim eram culpados, porque a própria organização da sociedade fazia isso com eles. E mesmo com tudo isso ele os amava. Acalentava-os em seus braços mostrando-lhes a face de suas vidas ques não eram chagas. E mostrando a outra face de suas vidas que verte sangue como mágica demoníaca, que nos despreza a nós mesmos mais que qualquer animal. Ele nos amava como a ele, mas ele era o Matuselah. Qua queria ser diferente do que era sempre. Mas isso quase não sabe ninguem. Pablo Kantor mudou muita coisa. Depois que nos deixou, quase tudo foi destruido, mas isso não tem nada a ver com ele, quase nada. E quase não restou ninguem da luta dos dois velhos, para contar a historia. Vante saiu da cidade logo no começo, e raramente era visto lá depois. Em 93 o Matuselah foi embora. acho que porque morreu, mas isso eu sei lá. E aí tudo acabou, mas estava tudo mudado. D. Sebastião que abandonou o Principado para não fazer nada, sem que ninguém soubesse porque, voltou para Portugal. Yoscar ficou Prince. Até Dezembro de 93 quando Vante e Sewer tomaram o poder, no dia 28. Até hoje Vante tem seu sangue. O de Yoscar, não o de Sebastião. Mas isso é uma outra história, que não é a sua. Então não vou contá-la. Vante não queria ser Prince, então foi indicado Ariosto, foram criadas divergências, mas seu nome acabou sendo aceito. Em 1994 Janeiro 14. Os Ventrue mais corruptos, os Toreador não são unidos em arte como um todo, os Nosferatos são quase Sabbat e os Sabatt já conseguiram se infiltrar e estão pelo entorno. Aumentando a tensão. Vante exerce o pontificado sem moradia fixa, e já quase não aparece na cidade. Parece estar novamente tentando comer a Golconda. João Fidalgo foi traído pelos seus 4 matou três, e o outro ele foi caçar pelo país. Mas alguns ficaram e a esses muitos se juntaram em uma sociedade que tem a cara e o corpo de seu maestro. A paz era novamente tentada mas a própria forma da sociedade como um emaranhado de subdivisões não deixava. Mas por aqui fico, mas volto em seis minutos e doze segundos.

O lobo se encontra em si e tenta desordenadamente refletir com o que acabara de acontecer e o que acabara de ouvir. Mas nos seis minutos e doze segundos seguintes o velho apenas conseguiu pensar que só podia ser a morte, ou então eram eles . Mas como saber? Não soube. E a mulher continuou...

__ Ouça,...

Sua história estava viva, e assim ele descançou.

__

Mais uma vez ele desperta, mas ele não sabia disso. Ele estava em uma quarto pequeno, rodeado por médicos. Era a mesma sala que entrara para a cirurgia. Alguma coisa, pensou, deva estar saindo errado. Ele mal conseguia abrir os olhos, e certamente não ouvia o que os doutores diziam. O velho lupino tentava colher o pouco de informação que seus sentidos ainda lhe provia e condensá-la em uma unidade coerente. Mas havia muita dificuldade. Percebia, tenuamente, que lhe estavam abrindo o tórax, mas isso não o incomodava. Do canto da pequena e bem equipada sala de cirurgia, um grande cilindro de provavelmente oxigênio, lentamente adquiria forma humana. Ele não se espantou. Havia se acostumado com o inusitado. Mas aquela era uma figura desconhecida. Ele nunca o havia visto. O cilindro, que agora era um homem, caminhou em direção ao velho. A equipe cirúrgica trabalhava como se nada daquilo estivesse ocorrendo. O que para eles era verdade. Chegando junto ao velho selvagem, o novo personagem se identifica.

__ Sou Francescoli del Piuggi. Eu não te conheço, e você não sabe que me conhece porque eu sou seu sonho. Sou um sonho do futuro, e estou ao seu lado para lhe contar o resto da sua história, a história de depois da sua morte. Estou no ano de 2004, embora esteja sempre no presente. Você morreu hoje, e é a partir daqui que eu lhe contarei o que aconteceu.

__ Eu estou morto?

__ Não.

Por instantes houve um certo silêncio, e só se ouvia o remexer da vísceras do ancião, habilmente manipuladas pelas mãos do médico chefe. Em seguida o desconhecido retornou:

__ A paz finalmente foi alcançada. Em 2004 Brasília é um dos centros mundiais. Depois da segunda inquisição, muitos foram exterminados, e acreditamos que a Gehena não tardará. Mas estamos preparados. Aqui, dizem, será um dos lugares no mundo que tal destino não chegará. Está difícil conter o crescimento da população de vampiros, mas estamos conseguindo sem o uso da força. Parece-me que descobriram os últimos fragmentos da pedra das revelações. Sabemos agora o que Cain fez. Sabemos qual foi a herança que nos passou. Como eu o odeio. Como eu odeio meu destino. Não posso suportar quem eu sou. Mas isso não tem relação direta com sua história. Você conseguiu o que queria, embora tenha morrido antes de ver seu sonho concretizado. O Brasil é próspero, e pacífico, o que é mais importante. O mundo inteiro está a beira de um colapso. Toda a moral e o orgulho caiu por terra quando alguns cientistas provaram que a consciência não é nada mais que um sentido que nosso cérebro possui. Não passa de um identificador de apenas uma fatia da realidade. É apenas um reconhecedor, e a vontade não está ligada a ela, e nem a coisa alguma. A vontade não existe. O que achamos que somos, ou seja, nossa consciência, não passa de uma imagem projetada em uma tela, onde nós somos, não os atores, nem o filme, mas meros espectadores. Isso destruiu com a humanidade, e ainda mais com nós próprios, que achavamo-nos os verdadeiros donos da história. Mas do que adianta. Está tudo prestes a acabar, e eu estou feliz por isso.

__ Eu não compreendo e que você está querendo dizer. Quem é você?

__ Eu sou Francescoli del Piuggi, Giovanni. Prince de Brasília.

__ Mas como? Um Giovanni?

__ A Camarilla não existe mais, e nem o principado. Sou o dirigente da cidade. Disse Prince para que pudesses entender. Vou fazer com que compreendas. Você está morrendo. É isso que está acontecendo. Primeiro, você ouve sua história. Você sabe por que você falou com um vampiro morto? Foi por que era isso que lhe esperava. A morte, e você tinha que convencê-la de deixar-te contar sua própria história. Encontraste Felipe porque seu desejo era o de ser imortal. Onde nem a morte de um imortal impedisse que sua vida morresse. Por isso foi Felipe, o primeiro. E porque um inimigo? Por que era contra isso que você estava lutando. Contra o inimigo do fim de tudo. Kalu não esteve aqui. Mas foi bonito ter encontrado uma saída para a sua morte. Você sabe porque você precisava rever aquela árvore? É simples, porque ela era vida, e de alguma forma você queria que ela tomasse seu lugar e você o dela. Você invejava sua capacidade de serenidade e naturalidade diante da morte. Como as árvores tem um espírito mais evoluído. Elas não sentem necessidade de serem eternas. Para elas basta serem, e isso era o que você invejava. Sabes ainda por que do cravo com perfume fétido? E porque você não via o rosto de Raphaela? Por que tudo que você achava belo no mundo iria apodrecer com seu velho corpo. Um mundo inteiro iria apodrecer junto com você. E quanto à Nosferatu, você não conhecia seu verdadeiro rosto. A Face de Raphaela era um mistério assim como sua morte. não podias de outra forma conversar com ela. Não se pode rever o que nunca se viu. Preferiste a beleza de sua alma expressa por sua destoante, mas não menos terna, voz. Desconhecido amigo, você sabe por que Beatriz veio? Porque tudo que está acontecendo é uma loucura. Toda a sua vida pode ser resumida nisso, e seu desejo era de que tudo fosse diferente. Que fosse uma outra realidade. Era por isso que só a enxergava de olhos fechados. Porque queria ver sua vida sob uma outra perspectiva, para tentar encontrar uma saída, ou até mesmo uma mera justificativa para quem foi você e porque o foste como foi. Era a busca de uma liberdade irreal. Mas é a busca que nos torna grandes, e isso você aprendeu. Descanse em paz.

Aquele senhor havia entrado na sala de cirurgia às 3:38 h da madrugada. A operação foi de emergência, não houve anestesia, não havia tempo para isso, embora a princípio o velho estivesse desacordado. A cirurgia era delicada. Os médicos se concentraram ao máximo. Ao fim de três horas e vinte minutos de operação o corpo do ancião perda a batalha. Ouvia-se apenas o constante som agudo do eletrocardiograma. Não havia mais pulsação. A vida abandonara aquele corpo para sempre. Longe, podia-se ouvir o choro delicado de uma vida que nascia. A sala de parto, enchia-se de alegria. Os médicos procuravam manter suas cabeças baixas, e nenhum olhar foi trocado. Mesmo com anos de medicina a morte de alguém em suas mãos ainda vos derrubava. O silêncio foi interrompido pelo médico assistente.

__ Eu, eu... Mas o que este velho queria dizer com tudo isso? Vampiros, palavras estranhas, mudança da capital. O que estava acontecendo?

Um certo ar carregado preencheu a sala, ninguém se atrevia a dizer nada. Então o médico chefe disse:

__ Diante da morte, senhores, o homem é capaz do impossível. O delírio e a agonia deste homem, nesta mesa, foi a sua redenção. Não me importa se são verdades. O que importa é que ele lutou. E conquistou o meu mais sincero sentimento de respeito.

Ninguém mais ousou abrir a boca. E o resto da noite transcorreu calma e lentamente.

__

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