Toreador
Diário de Fernando Cunha
e Silva.
Cinco de maio de hum mil e
seissentos e quatro. Sexta-feira.
Salvador, colônia do
Brasil.
Tendo em vista a proporção
do acidente, me admiro que ainda esteja viva. Não sei quanto tempo
permaneceu na praia a espera de socorro, mas imagino que não tenha
passado muito antes que, por sorte, eu aparecesse. Sangrava muito pelo
coto da perna esquerda, que veio a ser arrancada da porção
medial da coxa. Voltava para casa depois de uma nem um pouco divertida
noite na taberna de Antônio Castro. Estava bêbado, e em estado
de completa depressão (minha irmã veio a falecer semana passada
em Lisboa, vítima de varíola. E a notícia havia me
chegado aquela manhã). Mirava o céu, no intuito de diminuir
meu sofrimento em frente àquela obra maravilhosa de Deus, e rumava
para casa por um caminho singular. Caminhava ao sabor do vento, admirando
as constelações e ouvindo o constante estourar dos ocultos
vagalhões na penumbra da noite de lua nova. A praia me confortava
o coração naquela noite. Súbito, despertei de meu
fugaz mundo irreal e do meu entorpecimento ao mirar um corpo deitado de
bruços na areia da praia, próximo ao limiar do oceano. A
água tocava o corpo e se retirava lentamente, num movimento constante.
O corpo não emitia qualquer sinal de reação. Aproximei-me,
era uma moça, um rosto lindo, perfeito. Os cabelos negros, úmidos
e cobertos de areia, refletiam até mesmo o pouco brilho do luar
de ontem a noite. Sua boca carnuda era a mais profunda expressão
do desejo e a têz alva e lisa despertava pensamentos de imagens obcenas.
Foi quando seus olhos azuis se abriram lentamente, e um gemido, quase um
sussurro se desprende de sua boca. Levei um enorme susto. A moça
se encontrava sem a perna e parecia haver sangrado bastante. Tomei-a nos
braços e da forma mais rápida que a situação
permitia, trouxe-a para minha casa e coloquei-a na cama de meu quarto de
hóspedes. O ferimento era horrivel, e como médico nunca havia
visto nada parecido. Tratei a ferida da forma mais adequada possível,
lavando-a com água e sabão, desinfetando com álcool
, costurando a pele para que a ferida cicatrize mais rapdamente e por fim
cobri a ferida, para não deixá-la exposta. Durante todo o
processo, a jovem nem sequer abriu os olhos. A partir desse momento, acredito
que porque o perigo eminente havia passado, e nada mais poderia fazer,
a embriaguez voltou-me a afetar, e de nada mais eu lembro. Acordei na cama
ao seu lado, e o quarto totalmente escuro. _________________________________________________________________________
Seis de maio de hum mil seissentos e quatro. Sábado.
Salvador, colônia do
Brasil.
A moça dormiu o dia
todo, e preferi não incomodá-la. Por volta das nove horas
ouço gritos vindos do quarto onde ela estava. Fui correndo para
ver o que se tratava. Abri a porta. A moça estava sentada, e gritava
conpulsiva e convulsivamente coisas do tipo "meu sangue é fraco!"
"Estou mutilada para sempre!". Sentei-ma ao seu lado e me restringi a abraçá-la.
Permanecemos assim por um longo período, até que ela sussurrou.
Não falava português, mas sim italiano. Uma língua
deveras compreensível em função de minha formação
em latim. Perguntou-me quem eu era e como a encontrei na praia. Contei-lhe.
Condenou-me pelo que fiz, disse que preferia estar morta. Tentei argumentar,
mas pereceu-me que não era um bom momento. Retirei-me do quarto.
Ao sair pediu-me que não fosse aberto em nenhum instante as cortinas
e janelas do cômodo. Achei o pedido estranho, mas em virtude do trauma
que estava passando preferi não contrariá-la. _________________________________________________________________________
Sete de maio de hum mil seissentos
quatro. Domingo.
Salvador, colônia do Brasil.
Novamente a moça repousou
durante todo o dia, acordando apenas as sete e meia da noite. O dia hoje
foi inusitado. Acho que a moça entrou em um estado de choque profundo,
falou-me muito, só que as coisas que me disse não faziam
sentido algum. Penso que o trauma afetou-lhe a razão. Espero que
seja passageiro. Na história que me narrou ela falava de si própria.
Começou por seu nome: Dora. Disse ter nascido em Roma no ano de
64 da era Cristã, sob o império Romano em sua punjança.
Falou-me que conviveu com toda a glória do império em seu
explendor cultural e arquitetônico, e que também assistiu
a sua derrocada frente aos bárbaros. Narrou-me que fazia parte da
corte do império. Que exercia influência sobre os imperadores,
mas não no sentido político e sim no intuito de poder escolher
quais as peças de ouro e prata advindas dos confins do mundo romano
(dos povos que eram subjulgados) que ficariam sob sua posse. Porque arte
em ouro e prata era a única coisa com que se importava no mundo.
Possuia uma grandiosa coleção, contou-me, a maior do mundo
conhecido e sem dúvida a mais variada. Todavia, teve, com a derrocada
de Roma em 410 e com o saqueamento da cidade promovido pelos bárbaros
Visigodos, perdido praticamente todo o seu tesouro. Fugiu para permanecer
viva. Os delírios megalomaníacos não cessaram aí.
Contou-me que a partir disso sua fixação por objetos de ouro
e prata aumentou. Passando a se dedicar à formação
de uma nova coleção. Entre os anos de 840 a 1312, para concretizar
sua obcessão por arte em metais preciosos, tornou-se autora e financiadora
de saques a museus, casas particulares, palácios e principalmente
às igrejas católicas de toda a Europa, já que esta
era, na época, a instituição mais rica do mundo ocidental.
"Mais uma vez", Disse-me com pesar, "a história se voltou contra
mim." A inquisição havia tornado as atividades cada vez mais
difíceis. O cerco apertava e novamente se viu forçada a abandonar
sua coleção para salvar a pele. A igreja confiscou tudo.
Prosseguiu discertando sua loucura. Em 1598 chega em suas mãos,
em Gênova, onde morava, uma peça de beleza sem igual. Era
um punhal pré-Colombiano moldado em ouro com adornos em prata e
pedras preciosas, como a esmeralda. Disse ter ficado obsecada pelo punhal,
e que passava noites tentando imaginar como seriam outros objetos criados
por esse povo. Em 1601 decide que iria viajar para a América, para
ela mesmo coletar as peças mais bonitas. No ano de 1603 a caravela
na qual viajou parte de Portugal para o Brasil. Segundo o plano de viagem,
ela passaria três meses em Salvador antes que uma nau espanhola chegasse
da nigéria em Salvador por volta do fim de maio, contrabandeando
escravos. Esta nau partiria em seguida para o vice-reino de Nova Granada
e deste para o vice-reino do Peru. Neste momento da narrativa a pobre já
estava soluçando, quase em pranto. Pacientemente eu esperei pelo
desfecho. " Sexta-feira eu nadava à noite ne praia, o que já
havia se tornado uma constante... Quando... Quando... Escondeu o rosto
no travesseiro e pediu que eu me retiresse. Compreensivo e ao mesmo tempo
atônito, obedeci. Sinto muita pena ... e talvez algo mais ... _________________________________________________________________________
Oito de maio de hum mil seissentos
e quatro, Segunda-feira.
Salvador, colônia do Brasil.
Como de costume pela manhã,
saí para trabalhar, visitando as casas de pacientes e acidentados.
Preferi não incomodá-la, saindo sem olhar como ela estava.
O dia foi bastante tranquilo, com apenas um caso grave, que acredito eu
já deva estar fora de perigo. Regressei as cinco. Ela não
estava em casa. na sua cama apenas o travesseiro manchado de sangue e um
bilhete: " Fernando, obrigada por tudo e me perdoe. beijos eternos, Dora."
Experimentei o amargo da saudade ... ____________________
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