O Caboclo Bernardo
O Caboclo Bernardo
O Caboclo Bernardo (à esquerda) e o marinheiro Faustino.
O caboclo Bernardo tornou-se conhecido após o acidente, ocorrido
com o cruzador Imperial Marinheiro, da Marinha de Guerra Brasileira. Este
foi assim noticiado pelo jornal A Província do Espírito
Santo, órgão do Partido Liberal. “Na madrugada de
7 à uma e meia hora, navegando a vela e a vapor o Imperial Marinheiro
no rumo NNE com uma velocidade de 11 milhas por hora, bateu sobre o pontal
do rio Doce, numa distância de 120m da praia .”
O cruzador Imperial Marinheiro era movido a vapor e possuía
quarenta canhoneiras podendo comportar uma tripulação de
duzentos homens, porém, o navio partiu do porto do Rio de Janeiro
a 5 de setembro de 1887 com cento e quarenta e oito tripulantes. O naufrágio
ocorreu à uma hora e quarenta minutos da madrugada de 7 de setembro
de 1887, data comemorativa dos 65 anos da Independência do Brasil.
Pelo barulho do mar, os náufragos sabiam que estavam perto de alguma
praia. Alguns marinheiros atiraram um escaler ao mar, tentando salvar suas
vidas e buscar socorro, o escaler despedaçou-se contra as ondas.
Alguns salvaram-se a nado e foram buscar socorro no arraial. Os moradores
seguiram para a praia onde, liderados pelo patrão-mor da barra do
rio Doce, acenderam fogueiras e esperaram o dia clarear para iniciar o
salvamento.
Os náufragos começaram a ser salvos após as oito
horas da manhã quando Bernardo José dos Santos conseguiu
ligar a praia ao navio através de um cabo. No navio, foi ele auxiliado
pelos praças Faustino e Félix, conseguindo, os três,
transportar parte da tripulação, dois a dois, em uma pequena
chalana e, quando esta despedaçou, os homens em terra retiraram
troncos de árvores da mata e construíram uma jangada com
a qual finalizaram a tarefa.
Cinco horas durou o salvamento com o saldo de cento e vinte e cinco
homens surrados pela água, famintos e exaustos, porém vivos
e a salvo. Morreram no total quatorze homens, entre os que estavam na parte
do navio que adernou e os que atiraram-se ao mar. Este, na barra do rio,
em todos os relatos, apresentava grande ondas, o que era, ali, considerado
normal. O patrão-mor da barra cuidou de alimentar e socorrer os
marinheiros, enviando pedidos de mantimentos para as fazendas vizinhas,
pois o que tinham não bastava, eram muitas bocas a mais. Foi mandado
um mensageiro por terra a Santa Cruz, para que o pedido de socorro pudesse
ser telegrafado para Vitória. O arraial de Regência nunca
havia visto tanta gente junta.
Mesmo tendo batido próximo da praia, as perdas do navio foram
consideradas totais, apesar de ser ele novo, tendo menos de quatro anos
de uso. Materiais e destroços deram posteriormente à praia,
os de algum valor eram guardados pelo patrão-mor da barra e enviados
à capital, madeirame, mastros, velas...perderam-se no mar ou foram
aproveitados pela população local.
O naufrágio do Imperial Marinheiro foi um dos pontos pouco esclarecidos
na história da Marinha. Comandado pelo capitão-tenente João
Carlos da Fonseca Pereira Pinto, ex-oficial de gabinete do conselheiro
Mac Dowel, foi o acidente atribuído a erro de rota e os responsáveis
levados a conselho de guerra. Um primeiro conselho de investigação
foi organizado, composto pelos oficiais Pedro B. Cerqueira Leite, Rodrigo
J. da Rocha e Alexandre Faria de Alencar, e tendo Pereira Pinto como defensor
o capitão de mar e guerra Eduardo Wandenkolk . Pereira Pinto demonstrou
a possibilidade de “quatro as hipóteses que poderiam ter ocasionado
o naufrágio: erro de rumo, erro de cálculo astronômico,
fortes correntes para oeste e desvio das águas.” e centrou sua
defesa na tese do desvio das águas e foi absolvido pelo Conselho
de Guerra. Naquele mesmo ano, a 10 de dezembro, o Conselho Supremo do Tribunal
Militar de Justiça condenou-o a 2 anos de suspensão de comando
e a 6 meses de prisão o encarregado de navegação tenente
Azevedo Alves, decisão esta que foi embargada, e a 17 do mesmo mês,
foram ambos, definitivamente absolvidos .
Uma das figuras de destaque no naufrágio do Imperial Marinheiro
foi o primeiro tenente Arthur Índio do Brasil. Isto se deu pelo
fato de sua família residir na capital da província do Espírito
Santo, por sua versão do ocorrido publicada nos jornais capixabas
e por ter sido o cicerone de Bernardo José dos Santos na Corte.
Índio do Brasil, filho de tradicional família brasileira,
ostentava no nome a exaltação romântica do período
da independência “quando(de acordo com Gilberto Freyre)
brasileiros descendentes só de europeus, caucásicos de quatro
costados e apenas queimados ou amorenados pelo sol dos trópicos,
valeram-se desta sua melanização por influência de
agente exterior, para se dizerem caboclos; e para se proclamarem integrados
de corpo e alma na perfeita condição de brasileiros. O que
vários deles se esmeraram em anunciar pela mudança de seus
nomes de família, de portugueses, em nomes tupis e guaranis .”
O importante era enfatizar as raízes americanas. Freyre destacou,
entre outros, nomes como João Lins Vieira Cansansão de Sinimbu,
Francisco Gê de Acayaba Montezuma,... aos quais acrescento, a propósito,
Índio do Brasil.
O título do artigo de Índio do Brasil, publicado no jornal
A
Província do Espírito Santo, chamou-se O Caboclo
Bernardo. Nele descreveu o naufrágio e a atuação
do pescador que, “com seus intrépidos companheiros não
se mostrou exausto, ao contrário, fortalecido no próprio
heroísmo, parecia pronto a recomeçar a luta. É pois
sem dúvida, a esse desconhecido, mas nobre espírito-santense,
principalmente, que devemos a vida pelos seus inauditos esforços,
e coragem sem igual, tantos compatriotas distintos... ”
Após a chegada dos náufragos a Vitória, a 14 de
setembro de 1887, é que apareceu pela primeira vez na imprensa local
o nome de Bernardo José dos Santos. Alguns o descreveram como pescador,
outros como ajudante de seu pai, Manuel dos Santos, operador da catraia
da barra do rio Doce, e outros afirmaram que ele “desde 8 anos se entregava
a vida do mar como tripulante de navios mercantes .”
Bernardo nasceu na barra do rio Doce, no ano de 1859. Era filho de
Manuel dos Santos, apelidado Manduca, e de Carolina dos Santos, ambos descendentes
diretos dos grupos indígenas que habitaram a região . Cabelos
lisos, pele bronzeada, estatura média, uma calça surrada
dobrada até abaixo dos joelhos, os pés descalços,
descrito nos jornais não como um indígena aculturado ou civilizado,
mas como “vistoso tipo de pura raça brasílica .” Ele
sabia, como homem habituado a viver do mar, a influência da lua nas
marés, o local exato onde havia um cardume e localizar a posição
do canal de entrada do mar para o rio, que mudava a cada dia devido aos
movimentos dos bancos de areia. Daí o fato de conseguir atravessar
as águas e buscar o cabo que ligava ao navio. Seu dia a dia lhe
permitia tal esforço, visto que estava acostumado a fazer exercícios
diários para a sua própria sobrevivência.
A partir de então, o Caboclo Bernardo teve a descrição
de seus feitos multiplicada. Primeiro nos jornais capixabas, depois em
publicações do Instituto Histórico e Geográfico
do Espírito Santo, na obra de Norbertino Bahiense e em texto de
Rubem Braga, editado pela Secretaria de Estado da Educação
e Cultura. Desse momento em diante, a sua história esteve vinculada
a este acontecimento. Até a sua morte, as suas posições
na vida foram debatidas sempre em confronto com o fato de ter sido ele,
por alguns dias, um herói.
Profª. Ms. Hileia Araujo de Castro
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