Índios do Espírito Santo e Rio Doce

A região do rio Doce foi constantemente desbravada desde a época do estabelecimento dos portugueses no Brasil. Segundo Capistrano de Abreu, a primeira exploração do rio Doce deu-se ainda no tempo de Tomé de Souza com a expedição de Navarro, padre e filólogo, que “transpôs os rios Pardo e Jequitinhonha e atingiu as cercanias da atual Teófilo Otoni e possivelmente a região de Diamantina, acompanhando o curso do rio das Velhas .” Seguiu-se a expedição de Sebastião Fernandes Tourinho em 1573 . Porém, foi no limiar do século XVIII, com a bandeira de Antônio Rodrigues Arzão, em 1695, que correu a notícia de ter-se encontrado ouro nas cabeceiras deste rio. A partir desse período, através de medidas rigorosas para impedir a evasão do ouro, o governo colonial patrocinou o isolamento da parte alta de sua bacia ao proibir a navegação e a abertura de trilhas, caminhos ou picadas .
A ocupação efetiva do interior norte do Espírito Santo ocorreu a partir da segunda metade do oitocento. No início deste, encontrei o registro do estabelecimento de pequenas povoações na foz e interior do rio Doce a partir da construção de quartéis e do aldeamento de grupos indígenas. “Meia légua da foz do Mandu,[Guandu] há um presidio com o nome de Sousa para impedir o extravio do ouro de Minas Gerais .” Criado em 1800, estava o citado quartel, “(...) duas léguas abaixo da foz do rio Guandu (...) guarnecido com um inferior e onze soldados do corpo de pedestres ,” servia para Registro do comércio do ouro e evitava as surpresas do gentio antropófago, regulando ainda, na pequena cachoeira de Escadinhas, os limites entre as capitanias do Espírito Santo e Minas Gerais, no rio Doce.

O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire chegou ao Brasil em 1816, permanecendo até 1822. Por ocasião de sua viagem ao rio Doce, o transporte era feito em pequenas canoas, com remadores, e ele afirmou terem contribuído para a dificuldade de povoamento da região dois fatores: a grande quantidade de doenças e os índios botocudos . Dentre as doenças, a mais comum era o chamado impaludismo ou febre palustre. Transmitida por protozoário é também conhecida com o nome de malária, e pode ser considerada uma doença local, na medida em que era conhecida pelos primitivos habitantes da região. Havia ainda a bexiga, ou varíola, e a febre amarela, sendo estas importadas, ou seja, difundidas pela população branca.
Os grupos indígenas recebiam a denominação genérica de botocudos pelo fato de diversas tribos utilizarem botoques nas orelhas e nos lábios. Foram também conhecidos desde o século XVI como Aimorés, ou Coroados, por rasparem as cabeças em círculos, ou Tapuia - palavra tupi que significa inimigo, bárbaro. Eram de diversas tribos que habitavam, no século XIX, os cursos dos rios Pardo, das Contas, Jequitinhonha, Mucuri, São Mateus e Doce. Entre elas, destaco os Kamakân, os Pataxó, os Maxakali ou Maxakari, os Botocudos, propriamente ditos, e os Puri-Coroados que falavam línguas diferentes de outros indígenas do Brasil .
Entre os botocudos propriamente ditos havia os inkutera, os nak na nuk, os nak héréé, os krenaks, os gut kraks...  Todos estes grupos, ligados ao tronco Jê pela língua, sofreram migrações sucessivas na região entre aqueles rios, nos atuais estados de Minas Gerais, Espírito Santo e Bahia, em sua fuga do colono, que penetrou mais intensamente na região a partir da segunda metade do século XIX.
A língua falada por eles era a um só tempo semelhante e diferente, “com variantes de entonação e, ao que posso perceber, com muita pequena diferença no nome dos objetos, ou, direi melhor, todos se entendem na língua que falam. Penso, pois, serem da mesma raça, embora os tipos sejam no físico e nos modos bastante diferentes .” Destacou Estigarribia, diretor do aldeamento de Pancas no início deste século, que esses indígenas freqüentemente recorriam à mímica, para descrever objetos para os quais não tinham palavras, e usavam constantemente a palavra nhauite, que significava muito, pluralidade, para contas acima de vinte que são os dedos das mãos e dos pés, tendo ainda dificuldade de contar os números diferentes de cinco, dez, quinze e vinte .
No entanto, segundo Darcy Ribeiro, a penetração civilizadora teve início no sul entre os rios Paraíba e Doce, obrigando os puri-coroados a dirigirem-se para o norte, onde, por sua vez, iam ao encontro das ondas civilizadoras de Minas Gerais e do Espírito Santo e sofriam ataques de grupos indígenas da região em defesa de seus territórios. Em 1808, o governo reeditou leis autorizando a guerra ofensiva, considerada justa, e o direito de escravização do indígena .
O governo também estabeleceu postos, naquele tempo chamados de aldeamentos, nos quais iniciou-se a civilização dos selvagens. Destacou-se, em 1823, a atuação de Guido Tomás Marlière, inspetor das divisões do rio Doce e Diretor Geral da Civilização dos Índios, que, tendo estabelecido-se acima da confluência com o rio Santo Antônio, através de relações amistosas, conseguiu pacificar alguns grupos indígenas. Após seu afastamento, retomou-se também ali “o sistema através do qual os outros grupos estavam sendo ‘civilizados’: a cachaça e a exploração 
A instalação de pequenas vilas na bacia do rio Doce e a doação de sesmarias, para aqueles que se dispusessem a nelas fazer prosperar qualquer atividade agrícola, deu início à ocupação pelos civilizados dessa grande área pertencente, na época, às tribos conhecidas como botocudos e com alguns remanescentes de origem tupi. Do início do século XIX datam leis reguladoras de doação de terras a estrangeiros, de doação de sesmarias e de monopólio para aquelas companhias de navegação fluvial que não chegaram a estabelecerem-se ou que tiveram tempo de vida reduzido .
Ao lado dos colonos, que afluíam para a região e dos postos militares, apareceram também as missões religiosas catequizadoras dos padres capuchinhos, encaminhados para Minas, Espírito Santo e Bahia.
Uma dessas missões, chamada de Itambacuri e localizada na margem do rio Etuête, afluente do rio Doce pelo sul, nas proximidades de Resplendor, MG, região vizinha à atual fronteira entre os estados do Espírito Santo e Minas Gerais, foi montada com muitos recursos. Por diversos fatores, não muito esclarecidos, em 1893, os índios deram início a uma revolta. Algumas afirmações são de não ter havido mortos, outras sustentam terem os índios matado o frade intérprete a flechadas tendo os outros conseguido fugir descendo o rio. Estigarribia encontrou como motivo dessa sublevação “a revolta dos índios devido ao fato de os padres exigirem muito serviço e não lhes darem a roupa e os alimentos de que necessitavam .” Ribeiro destacou que os documentos missionários falavam principalmente da índole falsa, indócil e má de suas ovelhas indígenas .
Em terras espírito-santenses o aldeamento do Mutum deu algum resultado no processo civilizador dos indígenas. Fundado em 1859, uma légua abaixo do quartel do Souza no rio Doce, teve sua organização entregue ao capuchinho frei Bento de Bubio, que deu assistência a diversos aldeamentos da região . Esse aldeamento em Mutum, a partir da década de 1870, manteve-se a duras penas, sofrendo com a falta de alimentos, vestuários, ferramentas, com o ataque de grupos livres e com a revolta dos aldeados, pois estes não permitiam que os padres dessem qualquer parte dos alimentos para os que não contribuíram em sua produção. Era costume dos padres fazer doações aos indígenas dispersos nas matas como forma de atraí-los para o grupo . Em 1888, a princesa Teresa Carlota da Baviera esteve naquele aldeamento. Ela observou sua precariedade, pois encontrava-se o posto, na data de sua visita, sem diretor, sem missionário, sem intérprete, faltando inclusive soldados.
Essas missões foram progressivamente abandonadas pelos padres, caindo sob o jugo dos fazendeiros, tanto as terras como os grupos indígenas. Estes, aos poucos, foram caldeando-se com a população sertaneja ou morrendo devido a doenças, fome e o uso indiscriminado de bebida alcóolica, fatores principais que contribuíram para dizimar as populações indígenas.

Profª. Ms. Hileia Araujo de Castro
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