Democracia Racial

Analisando mais amplamente a questão racial verifico que em fins do século XIX surgiram, fundamentalmente na Europa, as primeiras teorias acerca da vinculação das características raciais ao desenvolvimento de qualquer civilização. A explicação dada por esses teóricos era a de que o crescimento de determinada sociedade estava vinculado aos caracteres raciais transmitidos geneticamente em sua população. Essa teoria e sua explicação partiam do pressuposto que as sociedades brancas européias encontravam-se no mais alto grau de civilização, sendo portanto superiores às demais sociedades humanas e, conseqüentemente, a raça branca superior às demais. Essas concepções estão presentes nos trabalhos de Gobineau, Georges Cuvier, Carl von Linnè, Herbert Spencer, entre outros. A entrada de teorias de análise de cunho racial no Brasil data de 1870, com a aceitação e divulgação do ideário positivo-evolucionista, que estabeleceu critérios de análise da realidade outorgando uma base científica para a perpetuação do domínio dos senhores1. Se, anteriormente, a inferioridade e o racismo delegados aos escravos negros eram explicados por seu estigma bíblico de origem, ou por sua "preguiça" ou "falta de capacidade intelectual", essas explanações ganhavam, a partir de então, um caráter científico, abrangendo um extenso grupo social que, para a camada dominante, necessitava continuar nos estratos mais baixos da sociedade. Atendendo a interesses determinados, essas teorias se difundiram e ganharam espaço nos meios intelectuais brasileiros, sofrendo adaptações e transformações de acordo com o tempo e com novas interpretações acerca da realidade brasileira. Os escritos dos viajantes do século XIX denunciaram a existência da miscigenação. A intelectualidade brasileira dedicou-se a seu estudo, evoluindo do darwinismo social ao louvor da democracia racial, na década de 19302. Essas idéias chegaram ao Brasil através das instituições acadêmicas, como as Faculdades de Direito, Faculdades de Medicina e Institutos Históricos nos diversos pontos do país. Existia uma grande preocupação da intelectualidade brasileira em entender o país, para tanto empenharam-se no estudo das mais modernas teorias sócio-políticas para através delas compreender e abarcar as diversidades e dimensões do Brasil em um mesmo projeto de nacionalidade. As teorias européias receberam aqui uma adaptação, às vezes com grande originalidade. Sílvio Romero, ainda no século XIX, abordou a questão da miscigenação a partir das proposições do evolucionismo de Herbert Spencer, e, com propriedade, afirmou ser o mestiço um produto fisiológico, étnico e histórico do Brasil, a forma de diferenciação nacional3. Na década de 1920, Oliveira Viana elaborou sua análise centrada no patriarcalismo e na formação racial. Nesta avaliou a eugenia pela quantidade de pessoas que ascenderam às classes dominantes em cada um dos grupos raciais que formam o Brasil. Concluiu ser o número de brancos em maioria absoluta na classe dominante da sociedade, ficando assim demonstrada a superioridade da raça branca sobre as demais. As outras raças, segundo ele, apenas teriam oportunidade de ascensão social se depuradas a partir de sucessivos cruzamentos com a raça branca. Essa análise social abriu caminho para a defesa do branqueamento da população brasileira com objetivo de a nação alcançar graus mais elevados de civilização.  "Essas duas raças inferiores só se fazem agente de civilização, isto é, somente concorrem com elementos eugênicos para a formação das classes superiores, quando perdem a sua pureza e se cruzam com o branco: (...) Da plebe mestiça, em toda a nossa história, ao norte e ao sul, tem saído, com efeito, poderosas individualidades, de capacidade ascensional incoercível, com uma ação decisiva no nosso movimento civilizador.4"  Viana, a partir do conceito de eugenia, defendeu o branqueamento do brasileiro, na medida que cumpria viabilizar o Brasil enquanto nação possível. Por outro lado, sua análise da formação patriarcal brasileira, foi prejudicada por seu racismo e sua pregação pela arianização o que não invalida o fato de ter sido o primeiro a colocar a questão. Porém, na década de 1930, essas interpretações ganharam novas elaborações na tentativa de abandonar seu caráter explicitamente racista. Naquele momento, foram veiculadas as obras de Gilberto Freire - Casa Grande e Senzala - e Arthur Ramos - Guerra e Relação de Raça - que merecem ser citadas por sua importância, e por inserirem o negro no debate nacional. Foi também assinado o Manifesto Anti-racista por esses e outros intelectuais. O problema que se colocava para a intelectualidade desse tempo estava em trabalhar a realidade  brasileira, e essa realidade, em termos raciais, era negra, mulata, cafuza ou mameluca. Como viabilizar o Brasil como nação, se dentro das teorias sociais darwinistas ou sociais evolucionistas em voga ele era inviável pela própria constituição genética de sua população? Foi nesse momento que, a partir de uma mudança no viés da análise sociológica, através da obra de Gilberto Freyre, propagou-se a idéia de que o Brasil era uma democracia racial. Esta, ao mesmo tempo que cumpriu o papel de inserir o negro e o mestiço na sociedade brasileira, construiu uma idéia de nação onde não existiam preconceitos raciais, e onde o negro ou o mulato, dependendo de sua força de vontade, conseguia ascender ao mais alto escalão social. A idéia de democracia racial contém em seu cerne o estímulo ao branqueamento defendido anteriormente por Oliveira Vianna e amplamente divulgado em todas as camadas sociais do país. Freyre, atento as análises raciais elaboradas pela intelectualidade brasileira e preocupado com o problema da miscigenação, estabeleceu a diferenciação entre raça e cultura e assentou sobre este critério o plano de sua obra. Seu entendimento sobre eugenia e cacogenia passou pelo crivo das condições sociais e econômicas das classes proletárias. Concluiu que, mesmo considerando-se a seleção eugênica, esta não aboliria as situações sociais responsáveis pela miséria, subnutrição, e doenças que novamente se instalariam naquelas camadas da população5.  O seu mérito foi o de ter centrado na família patriarcal a chave interpretativa da sociedade. Com isso, ele superou o determinismo racial na teoria patriarcalista, presente na obra de Vianna, e proporcionou as condições para que a análise sociológica pudesse ultrapassar as diferenças regionais, articulando a sociedade brasileira, seja na Amazônia ou no pampa gaúcho, sob a mesma diretriz familiar. Não posso deixar de notar que a sua análise foi ao encontro da necessidade de entendimento da realidade brasileira pelas classes dominantes, patrocinando a compreensão da exeqüibilidade do Brasil como um todo integrado. Esse estudo desenvolveu o entendimento da miscigenação como um processo através do qual foram corrigidas as relações entre senhores e escravos, advogando o surgimento de "zonas de confraternização entre vencedores e vencidos" que ensejaram a democratização social no país. Transferiu para a deficiência alimentar fatores como apatia e incerta capacidade para o trabalho, antes imputados à degenerescência proveniente da mistura racial. Preocupada em explicar os aspectos da formação do Brasil e desenvolver uma história íntima do caráter do povo brasileiro, propagou novos conceitos que atuaram como suporte na construção ideológica do "ser brasileiro". Por sua amplitude, esses conceitos puderam ser utilizados nas mais diversas análises de Brasil e nos mais diversos sentidos, já que o próprio autor que os popularizou, os esvaziou com suas digressões6. O ingresso das camadas marginalizadas da sociedade na análise sociológica sob o conceito de povo, no qual estavam presentes negros, mestiços e indígenas, ao mesmo tempo que tornou factível o Brasil caldeado, foi ao encontro da tática política, presente entre as forças revolucionárias de 1930, de envolver as populações urbanas e trabalhadoras em seus apelos à pátria. O relato de Freyre deu conta, ao mesmo tempo, da necessidade que passava o país de aceitação da sua constituição multirracial, através da construção da idéia de democracia racial, e da unificação nacional, ao promover sua análise sob o viés patriarcal, sem submeter-se à clivagem regional.

NOTAS:
1 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Cientistas, Instituições e Questão Racial no Brasil de 1870 - 1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993, p. 14.
2 SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. op. cit., p. 247.
3 ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympo, 1980, p. 120.
4 VIANNA, F. J. Oliveira. Evolução do Povo Brasileiro. SP: Cia. Ed. Nacional, 1933, p.35.
5 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. Rio de Janeiro: José Olympio, 1969., p. XXXI.
6 FREYRE, Gilberto. op. cit., p. XLVIII.

Profª. Ms. Hileia Araujo de Castro
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