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Polêmica!

O rap sai do gueto

Os Racionais viram ídolos entre os jovens da classe média falando sobre drogas e marginalidade


les vêm do Capão Redondo, bairro do extremo sul de São Paulo que contabiliza uma média de 13 assassinatos por mês. Cantam músicas com letras quilométricas e panfletárias, em que pregam a revolução dos negros da periferia contra os "branquinhos" das regiões nobres da cidade. Moram em conjuntos habitacionais, recusam-se a vestir roupas de grifes estrangeiras e consideram a mídia responsável por boa parte das agruras do mundo. "Somos contra o sistema", costumam dizer. O problema é que "o sistema" gosta cada vez mais dos músicos do grupo Racionais MC's - iniciais de mestre de cerimônia, colocadas no nome de vários grupos de rap. O último CD dos rappers, Sobrevivendo no Inferno, já vendeu 500 mil cópias e ocupa lugar de destaque nas lojas de todos os shoppings do país. Os "mauricinhos" e "patricinhas", jovens de classe média alta que os Racionais odeiam, não tiram o disco de seus CD players.

Fãs mirinsTrês eventos neste mês de agosto mostram como "o sistema" está absorvendo o grupo. No dia 13, os Racionais são esperados na entrega dos prêmios do Video Music Brasil, da MTV, concorrendo em três categorias com um clipe gravado dentro do Carandiru, o maior presídio de São Paulo. No dia 22, eles vão dividir o palco com os músicos da banda inglesa Prodigy, uma das mais cultuadas no mundo, e com a cantora islandesa Björk, no Close Up Planet, um evento patrocinado por uma multinacional, com ingressos a R$ 25 (os ingressos dos shows do grupo custam no máximo R$ 10). Em seguida, eles viajam para Europa e Estados Unidos, onde os aguarda uma série de shows, na primeira oportunidade que terão de viajar para fora do Brasil.

Cantando versos como "A polícia sempre dá o mau exemplo/Lava minha rua de sangue", o grupo faz até quatro shows numa noite, em lugares tão diferentes quanto a quadra da escola de samba Gaviões da Fiel, uma casa de forró num bairro de classe média ou um clube simplório no Jardim Ângela, um dos redutos mais violentos de São Paulo. Como os Racionais odeiam qualquer tipo de divulgação na imprensa, para saber onde eles se apresentam é preciso prestar atenção aos cartazes de papel colados de madrugada nas ruas da cidade, como foi o caso de um show no último dia 5 de julho.

São 20 horas no Sandália Club, um galpão de forró no bairro de Pinheiros, e o público jovem, com idade variando entre 18 e 25 anos, já está dançando desde as 3 horas da tarde. Rap, funk, um pouco de pagode. Eles se organizam em grupos, geralmente meninas com meninas e meninos com meninos. As coreografias são ensaiadas. Três passinhos para a frente, um para o lado, a mão imitando os trejeitos da dança de Carla Perez. Usam roupas de grife, jeans, tênis "de marca", gorros pretos. Alguns vestem camisetas com a inscrição "100% negro". No banheiro feminino, num pedaço de papel pregado em cima do espelho, está escrito com caneta: "É proibido molhar os cabelos na pia". Mas as meninas não respeitam a proibição. Duas vans cor prata com os faróis apagados aproximam-se da porta do clube. Dois homens, vestidos com agasalhos esportivos, deixam uma van para inspecionar o local. À porta, encontram Vilson, o principal segurança do grupo, que chegou antes para avaliar o local. "Tem jornalista aí", avisa Vilson aos recém-chegados. "Da Globo", acrescenta. "Tirar foto pode, entrevista, não", diz Vilson à reportagem em tom de ameaça. Os "manos" chegaram. Os Racionais MC's preparam-se para mais um show. O ambiente é tenso. Vagner Mota Correia, proprietário do local, está nervoso. "Sabe como é, o show desses caras é violento. Eu assumo, tenho medo." Correia espalhou mais de 20 seguranças pelas bordas do salão, mas eles acabaram não tendo trabalho algum.

Mano BrownÀs 9 horas em ponto soam os acordes de "Jorge da Capadócia", música de Jorge Benjor dos anos 70, que abre o CD Sobrevivendo no Inferno. O público grita. As meninas disputam os melhores lugares embaixo do palco. Três "manos" envoltos em fumaça de gelo seco começam a cantar a versão do grupo para a música de Benjor. Ainda não são os Racionais, mas o público já está completamente envolvido. Enfim, os Racionais sobem ao palco. A música escolhida para abrir o show é "Diário de um detento". Conta a experiência de um preso na Casa de Detenção ("Minha vida não tem tanto valor/Quanto seu celular, seu computador", diz um dos versos). O público conhece a gigantesca letra de cor. Mano Brown é a estrela do grupo. De calça preta e camisa do Santos (denunciando um torcedor apaixonado), ele entra no palco conclamando o público a gritar o nome dos Racionais. Cabelo raspado e bigodinho ralo, é o cantor mais carismático do grupo. As fãs deliram, querem subir no palco e agarrá-lo.

Entre uma música e outra, Brown faz discurso, condena o uso de drogas, fala sobre a violência urbana e de seu bairro, o Capão Redondo. "Se não fosse pelos Racionais, o Capão Redondo estaria freqüentando somente as páginas policiais." Brown bate com as mãos no peito e mexe os braços como os rappers americanos. Prega a paz, ao mesmo tempo em que insufla a platéia. A terceira música começa com um grito de guerra contra "os playboys". Fala Mano Brown: "Existe um plano para acabar com os 'manos'. Enquanto a gente for minoria na TV e na imprensa a gente não vai aparecer. O rap é que nem armadura. É nele que a gente se protege". A platéia delira. O show termina com "Periferia é periferia", uma das mais conhecidas do grupo. "Periferia é periferia em qualquer lugar", diz o refrão. O cantor Edy Rock canta: "O sistema manipula sem ninguém saber/A lavagem cerebral te fez esquecer/Que andar com as próprias pernas não é difícil/Mais fácil se entregar, se omitir". Ao final, o cantor conclui: "Deixa o crack de lado e escute o meu recado".

O discurso radical do grupo está tendo um efeito inesperado. Mesmo falando mal dos "pleiba" (como se referem aos "playboys" e "mauricinhos"), são eles que estão impulsionando as vendas de CDs e chamando a atenção para um movimento que, até recentemente, vivia confinado à periferia, à margem da divulgação. São quase dez anos na batalha por um lugar ao sol. Ou à sombra, como eles preferem. Em 1988, os "manos" da Zona Norte Edy Rock e KL Jay gravaram a música "Mulheres vulgares" para a coletânea Consciência Black, do selo Zimbabwe. Mano Brown e Ice Blue, "manos" da Zona Sul, participaram do mesmo disco com "Pânico na Zona Sul". As duplas resolveram se unir e formar um único grupo. Nasciam assim os Racionais. Com o nome do grupo escolhido, gravaram o primeiro disco em 1990, cujo título já anunciava suas intenções:

Holocausto Urbano. O álbum vendeu cerca de 50 mil cópias - ótimo resultado para uma banda iniciante. Seguiram-se Escolha Seu Caminho (1992) e Raio X do Brasil (1993). Em novembro de 1994, durante um show de rap no Vale do Anhangabaú, os Racionais chegaram às páginas policiais dos jornais. A Polícia Militar, que assistia ao show, deteve os rappers, alegando que as músicas do grupo incitavam ao crime e à violência. A polícia subiu no palco na hora em que o grupo cantava a música "Homem na estrada", cujo refrão diz: "Não confio na polícia, raça do caralho". O público ficou revoltado e começou a atirar pedras no palco. Houve tiros na platéia e algumas pessoas ficaram feridas. Brown declarou na época: "A detenção é um desrespeito à liberdade de expressão".

No mesmo ano, Edy Rock bateu seu Opala em uma Kombi na Marginal Pinheiros, causando a morte de Osaias de Oliveira e ferindo seis pessoas. Os Racionais colocaram a culpa no motorista da Kombi. O processo movido pela família do rapaz morto tramita na 4a Vara Civil, acusando os integrantes do grupo de participação em racha e pedindo uma indenização de R$ 300 mil. O grupo propôs um acordo à família de Oliveira e nunca se pronunciou a respeito do caso.

Depois dos incidentes, por três anos a expectativa em torno do próximo trabalho do grupo foi grande. Os fãs chegaram a pensar que os Racionais não iriam mais gravar. Mas eles voltaram, de forma independente, com o próprio selo, o Cosa Nostra. "Isso é comum em grupos de rap. À medida que os grupos vão crescendo, eles querem ter liberdade para gravar o que quiserem", diz Luís Antônio Serafim, diretor da Zimbabwe, ex-gravadora dos Racionais, que criou o selo Zâmbia só para distribuir os discos do grupo. "Não dei nenhum palpite no último CD. Eles fizeram tudo sozinhos." Liberdade, a propósito, é o que realmente interessa aos Racionais. Mesmo tendo todos os olhos da imprensa voltados para eles, recusam-se a dar entrevistas.

Mano Brown continua morando no Capão Redondo, uma região perigosa e desassistida na periferia de São Paulo. Para ele, essa atitude é uma forma de ressaltar o quanto considera importante estar perto da realidade retratada nas músicas. No conjunto habitacional onde Brown mora, conhecido como Cohab 1, no Jardim Rosana, não há elevador, as paredes são pichadas, o interfone para falar com os apartamentos não funciona. No estacionamento em frente, uma Blazer preta e um Golf importado destacam-se entre os carros estacionados. São os veículos de Brown e de sua mulher, Eliane, prima de Ice Blue.

Em frente ao conjunto habitacional, fica um campinho de futebol de terra batida, mantido com a ajuda de Mano Brown. Em sua cruzada contra as drogas, o artista acredita que é preciso oferecer formas de lazer aos jovens da periferia. Segundo sua esposa, Eliane, Brown conseguiu ajuda de "uns italianos" para incrementar o campinho. "É uma forma que o Pedro Paulo (nome verdadeiro de Brown) encontrou de tirar os meninos da rua", diz Eliane.

PresidiáriosAmado no Capão Redondo, Brown também causa frisson a dezenas de quilômetros dali, nos Jardins, entre jovens que não fazem a menor idéia de onde o cantor mora. "Já vendemos mais de 5 mil cópias do CD deles", diz, empolgado, Marcelo Afonso, gerente da Saraiva Music Hall, uma megaloja no Shopping Eldorado. "Se tivessem um suporte de marketing, teriam vendido fácil pelo menos 2 milhões", entusiasma-se Luciano Huck, o "mauricinho" apresentador do programa H.

Além dos Racionais, outros grupos de rap também estão conseguindo chegar aos ouvidos da classe média. PMC & DJ Deco Murphy, Doctor MC's, Pavilhão 9, Piveti, Consciência Humana e Detentos do Rap (este último formado por presidiários) vêm encontrando lugar de destaque nas rádios e nas prateleiras das lojas. Os rappers PMC & DJ Deco Murphy, de Juiz de Fora, recém-contratados pela gravadora Virgin e personagens de uma novela da TVGlobo, creditam aos Racionais o impulso que o gênero está tendo: "O pessoal da classe média está descobrindo o rap agora, mas a onda é mais 'racioneira' do que qualquer coisa. Às vezes me confundem com Mano Brown, mas eu nem ligo", diz PMC. O músico admite que os "mauricinhos" são os que mais deliram em seus shows. "Os 'manos' só olham."

O rapper Thaíde, que já lançou sete discos e se define como Garrincha em relação aos shows que faz por todo o Brasil ("sei que vou jogar, mas não sei onde"), acredita que os músicos de rap estão cumprindo a função de alertar a comunidade da periferia sobre os problemas inerentes a sua realidade. "Mas a violência não está só na periferia, ela chegou aos condomínios de luxo, nos Jardins, e os jovens aprenderam a se ligar e a curtir nossas músicas." Os Racionais que o digam.


Cinthia Rodrigues



"No meu país o preconceito é eficaz/Te cumprimentam na frente/E te dão um tiro por trás" (Trecho da música "Racistas otários")

A voz dos manos
Gambé
Dar idéia
Trampo
Bombeta
Preto tipo A
Embaçar
Decolar na farinha
Cachimbar
Hora de subir
Ferro na cinta
Pagar um pau
polícia
conversar
trabalho
boné
aquele que virou mauricinho
atrapalhar
cheirar cocaína
fumar crack
morrer
revólver na cintura
quando alguém dá bola para alguém do sexo oposto



O rap político americano

Surgido no final da década de 70, o gênero vem evoluindo para uma forma mais estética que panfletária nos últimos anos

Em meados dos anos 80, a cena do rap é dominada pelo Run DMC; o grupo abre o debate sobre a realidade e assume a postura desafiante que se tornará comum entre os "rappers". No final da década, o Public Enemy estoura como a mais sofisticada expressão política e estética do rap até então. Com uma ideologia da negritude, amplia sua audiência entre os brancos da classe média americana. Os rappers passam a ser vistos como líderes da comunidade negra. Ao mesmo tempo, o NWA inaugura à época um estilo, o gangsta, que faz um tour pelo submundo (das drogas, inclusive) sem apologias, mas também sem qualquer condenação. No início dos 90, despontam nomes saídos do grupo, entre eles Dr. Dre, que produz a grande estrela do gênero, Snoop Doggy Dogg.

"O ser humano é descartável no Brasil como Modess usado ou Bombril" (Trecho da música "Diário de um detento")

Entrevista

Caetano: "Eles são íntegros

Artista cita os Racionais em seu show Livro Vivo
Época:
O que o impressiona nos Racionais MC's?
Caetano Veloso: Eles têm aquela atmosfera da periferia de São Paulo, que é muito diferente dos morros ou da periferia do Rio de Janeiro. Os cariocas da Zona Sul se orgulham do "charme das favelas", e os favelados, das praias. Em São Paulo é diferente radicalmente. Não há algo compartilhado entre os paulistas da periferia e os dos Jardins.

Época: Que importância você atribui às letras deles?
Caetano: São muito densas, fortes, bonitas e bem escritas. Têm a força real do que elas dizem. A importância vem do fato de elas expressarem o que só pode ser dito daquele jeito e por aquelas pessoas. Há uma integridade formal. O fato de haver intenção de conscientização, denúncia e protesto é um elemento que concorre para essa integridade. A boa fatura na composição depende de que os elementos necessários a ela estejam presentes. No caso deles, esses elementos de intenção parecem necessários para a boa forma. Embora diferentes, tanto o rap dos Racionais quanto o do Gabriel, o Pensador, são uma adesão a uma manifestação de expressão popular que parte dos EUA - um dado também de nossa realidade cultural e de nosso tempo, em todo o mundo.


Carlos Rennó



MISTÉRIOS ESCLARECIDOS

As noites no Projeto Radial atraem 3 mil pessoas

O público é basicamente formado por jovens negros, de 18 a 25 anos
Aos sábados, seis DJs revezam-se ao som de rap, funk e pagode
"Antigamente, o negro não tinha onde se divertir", diz Élcio Silva, o proprietário



Análise
Radicais MC's

Contundentes na forma e na temática

A radicalização da violência social no Brasil não poderia deixar de ter sua expressão igualmente violenta e radical na música brasileira: os Racionais MC's. Já vão longe os tempos em que Chico Buarque, nos anos 60, começou a obra que lhe renderia o epíteto de "poeta social" da MPB. Nos anos 90, os mais novos poetas sociais de nossa música atendem pelos nomes de Mano Brown e Edy Rock.

Comum a um e outros, há a ideologia, de esquerda. Em Chico, porém, existe um componente utópico que seria pouco provável num jovem de hoje - menos ainda em um da periferia paulistana. De origem abastada, ele interpreta magistralmente uma tragédia a que assiste com envolvimento e humanidade. Já os Racionais não apenas narram, mas são personagens reais desse filme de horrores que é o processo de miserabilização num país com um índice de desigualdade quase sem igual no mundo. Mais importante: a par das significações políticas e intenções de conscientização, suas letras são de alta qualidade artística.

Versos simples mas elaborados; imagens claras e fortes; histórias bem desenvolvidas, personagens bem caracterizados. Uma poesia-vida usando a linguagem agressiva dos jovens negros de regiões pobres de São Paulo, entrecortada de gírias e palavrões, em raps de duração incomum. Sem concessões. Em processo de absorção, mas sem perder a contundência de seu discurso político, poético. Éticos, os Racionais indicam a existência de dignidade em meio à vergonha nacional; ao descalabro. Não fosse tanta treva e tanta sem-razão, talvez não houvesse Racionais. Se há Racionais, há luz.

"Que mundo é esse? Onde está Jesus? Mais uma vez um emissário não incluiu o Capão Redondo em seu itinerário" (Trecho da música "Fórmula mágica da paz")

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Fotos:João Raposo/Época, Alvaro Mota/Época, Lailson Santos/Época


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