São Paulo, segunda, 30 de março de 1998

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O melhor da música negra brasileira dos últimos 20 anos!

ÁLVARO PEREIRA JÚNIOR
especial para a Folha

São 2h45, madrugada de quarta para quinta-feira, e o show ainda vai começar em um clube paulistano. O lugar está lotado, as filas para entrar e comprar cerveja são dantescas. Há gente de todo tipo. Playboys da zona sul, lutadores de jiu-jítsu, manos de boné, clones da modelo Naomi Campbell, clubbers desorientados. Pouco antes, a platéia tinha ficado impaciente, amargou uma decepção. Eram 2h da manhã quando um movimento no palco parecia indicar que o show tão aguardado finalmente começaria. Alarme falso. Apareceu uma outra banda, SP Funk, ignorada pela platéia, que só queria saber da atração principal. Mas que show é esse que tanta gente espera? São os Racionais MC's, o que de melhor a música negra brasileira produziu nos últimos 20 anos. Finalmente Racionais no palco. Alguém os anuncia como vindos "do extremo sul da zona sul". "Jorge de Capadócia", de Jorge Ben, sobre uma base de Portishead (N.W., "Ike's Rap", de Isaac Hayes), abre a apresentação. Igual ao último álbum, "Sobrevivendo no Inferno". O adjetivo está gasto, mas "ensandecido" continua sendo a melhor maneira de descrever o estado do público quando os Racionais começam a tocar. Apesar das letras quilométricas, todo mundo canta junto. "Você viu aquela mano na porta do bar?", "Metralhadora alemã, ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem papel", "Queria que Deus ouvisse a minha voz". Os versos saem dos microfones com peso de chumbo, a audiência repete as palavras como se entendesse exatamente o que elas querem dizer. Mas não é bem assim. Boa parte da platéia, está na cara, nunca atravessou a marginal Tietê, só conhece a bandidagem porque teve o toca-fitas roubado na Vila Madalena. Mas tudo bem, faz parte do fascínio que os Racionais despertam. Quem é das quebradas escuta com ares de bom entendedor. Quem não é se sente mais vivido, malandro. Mais mano. De volta ao show, é pedrada em cima de pedrada. "Diário de um Detento", sobre a véspera e o dia do massacre dos 111 presos no Carandiru, já virou hino. "Em qual mentira vou acreditar" abranda um pouco o clima de discurso. É um rap bem-humorado sobre a perseguição da polícia aos negros de São Paulo. Mano Brown, principal nome dos Racionais, canta sentado numa cadeira de rodas. Nem assim sossega. É empurrado de um lado para outro do palco, e manda as letras num tom ainda mais raivoso do que o normal. A madrugada avança, e o show, na melhor tradição black, não está nem na metade. Não dá mais para boa parte do público, pelo menos os que trabalham de manhã e não têm resistência de camelo no deserto. Sem dramas. Meia hora ou quarenta minutos de Racionais MC's valem mais do que horas e horas desses medalhões conservadores da MPB, ou os tais novos nomes que cantam no circuito zona sul do Rio/descolados de São Paulo. Na rua semicoberta pela névoa, sentindo o vento frio que começa a chegar, ainda ouvimos de longe os Racionais lançando mais um míssil no inimigo. A poucos metros dali, num outro clube, mauricinhos de camisa xadrez sacodem seus corpos malhados ao som da última baba disco. Eles não sabem, mas o futuro está acontecendo logo ao lado, onde tocam os Racionais MC's.


Álvaro Pereira Júnior, 34, é chefe de Redação da Rede Globo em São Paulo



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