Veio Ver VERÍSSIMO ?


Colaborações


O CHARUTO

Século XVIII
Cena 1

O cenário é a casa dos ricos proprietários de terra Raul e Marguerite de Choses Pendu, no Jura, leste da França. Quando abre o pano, o conde de Potensac está instruindo Armandine, criada dos Choses Pendu, sobre como fazer para seduzir monsieur Raul. Seu plano é provocar a separação do casal para ficar com Marguerite.

Potensac - Muito importante: o decote.

Armandine (ampliando o decote do vestido) - Assim?

Potensac - Mais... Mais... Chega! O truque é provocar a curiosidade sem esgotá-la. Um colo à mostra deve ser como o prefácio de um livro, que diz como ele é bom, mas não conta toda a história. E monsieur Raul adora livros.

Armandine - Devo apresentar-me a ele, então, como uma brochura?

Potensac - Não, como um livro raro, desses que já passaram por várias mãos, mas só de conhecedores. Raul gosta de cheirar livros. Abri-los aos poucos e saborear suas páginas como se fossem as pétalas de um legume.

Armandine - Devo, então, ser uma mistura de primeira edição e alcachofra.

Potensac - Exato. Agora incline-se e diga "Seu conhaque, monsieur..."

Armandine (apresentando uma bandeja imaginária) - "Seu conhaque, monsieur."

Potensac - Perfeito. Apareceu o rego dos seios. O rego dos seios é como o Estreito de Gibraltar, uma passagem apertada entre duas massas continentais que convida o homem à grande aventura do desconhecido.

Armandine - Mas certamente monsieur Raul já conhece essa aventura.

Potensac - Só de livros. Desconfio que a única mulher da sua vida foi, hélas, a minha doce Marguerite. E que ele deve navegar no seu corpo como um graveto num lago, em vez de uma caravela num mar bravio. Ah, a injustiça do mundo.

Armandine - Seu conhaque, monsieur...

Potensac - Agora pergunte: "Monsieur quer que eu prepare seu - pausa - charuto?"

Armandine - "Monsieur quer que eu prepare o seu..."

Potensac - Pausa!

Armandine - "... charuto?"

Potensac - A pausa é a mais poderosa arma de sedução inventada no Ocidente depois da pomada de cabelo. Com uma boa pausa derruba-se qualquer inibição - até a do meu bom amigo Raul. Pausa e decote! Com a pausa e o decote, Raul sucumbirá e Marguerite finalmente será minha

Cena 2

Raul de Choses Pendu sentado, lendo. Entra Armandine com um copo de conhaque numa bandeja.

Armandine (inclinando-se para servir) - Seu conhaque, monsieur.

Raul (pegando o conhaque sem olhar) - Obrigado.

Armandine (ainda inclinada) - Monsieur quer que eu prepare o seu... charuto?

Raul (dando-se conta dela pela primeira vez) - Meu... quê?

Armandine - Seu... charuto.

Raul - E você tem prática com... charutos?

Armandine - Ah, sim monsieur. Sei enrolar um charuto, alisá-lo, esquentá-lo e, se monsieur quiser, morder a... ponta.

Raul faz uma careta de dor involuntária.

Armandine - Posso pegar?

Raul - Pegar?

Armandine - O... charuto?

Raul - Ah, sim. Sim. Um chabem viria ruto. Digo, um charuto viria bem. Com o conhaque.

Armandine pega um charuto e começa a prepará-lo, inclinada como antes.

Raul (de olhos nos seus seios) - Há quanto tempo vocês estão aqui?

Armandine - Nós?

Raul - Ahn... Você. Há quanto tempo está conosco?

Armandine - Há uma semana. Monsieur ainda não tinha notado?

Raul - Sim. Sim. Não. Eu não noto essas... coisas.

Armandine (aproximando os seios da cara dele) - Coisas?

Raul - Empregados, as coisas da casa. Madame é quem cuida disso. Eu só dou o dinheiro. Ela cuida dos fins, eu cuido dos seios. Ahn, meios!

Armandine acende um fósforo e esquenta o charuto.

Armandine - Monsieur quer que eu morda a... ponta?

Raul - Sim. Não. Sim. Sim. Não! Obrigado, eu mesmo gosto de... morder... a ponta.

Um dos seios de Armandine está a centímetros da sua boca. Raul não se contém e abocanha o seio. Neste momento, Marguerite sai de trás da pilastra de onde assistia à cena, acompanhada por Potensac.

Marguerite - Monsieur!

Raul - Marguerite!

Potensac (fazendo um sinal de triunfo para Armandine) - Vitória!

Raul - Eu posso explicar. Eu...

Nisso, irrompem na sala cem camponeses brandindo paus e foices e gritando:

Camponeses - A Bastilha caiu! A Bastilha caiu! Abaixo os aristocratas!

Potensac (tentando detê-los) - Não! Vocês não podiam esperar dez minutos? Cinco?

Camponês - A História não espera por nada nem por ninguém. Todos para o cadafalso!

Potensac (para a platéia) - Maldita História, que tem seu próprio texto, por mais que isto irrite. Não aceita direção, improvisa, entra em cena sem convite... Domage. Ficam os ricos sem suas posses, esta peça sem um fim, e eu... sem Marguerite.


Colaborou Alexandre Dias - Brasília