Veio Ver VERÍSSIMO ?


Fragmento...

Criaturas

( extraído de "Sexo na Cabeça"* )

- Ora - disse Martins, com desdém - ele pensa que está sendo original. Mas este truque é tão antigo quanto Pirandello.

- Mais antigo até - disse Romualdo, sacudindo o gelo no seu copo. - Se não me engano, Flaubert já tinha escrito alguma coisa sobre o Autor como um Deus pairando sobre o próprio texto, invisível e onipresente ao mesmo tempo, guiando os destinos de seus personagens indefesos.

- Criaturas se rebelando contra o Criador - continuou Martins. - Francamente. Não duvido nem que Ele use a palavra "metalinguagem". Olha aí, já usou.

Aristides olhou em volta, confuso. Não havia mais ninguém na sala, toda decorada em estilo Luiz XV, além dos três.

- De quem é que vocês estão falando ? - perguntou.

- Dele - disse Romualdo, fazendo um gesto vago com seu copo.

- Ele quem ?

- O Autor deste texto.

Aristides sorriu, condescendente.

- Não vão me dizer que vocês acreditam que existe um Autor que nos criou e que guia nossos passos. Logo vocês, pessoas sofisticadas, esclarecidas...

- Você não acredita ? - perguntou Martins.

- Num autor onipotente que rege nossas vidas ? Não.

- Você não acredita que existe um autor que nos criou, nos colocou nesta página, numa sala decorada em estilo Luiz XV e nos deus estes diálogos para dizer ?

- Não.

Martins e Romualdo trocam um sorriso de cumplicidade. Romualdo aproximou seu rosto de Aristides.

- Então me diga: como é que você está aqui ? Você de repente se materializou no meio de um texto, com um copo de uísque na mão ? Sem mais nem menos ?

- Meu caro - disse Aristides - , eu não pretendo tem uma explicação para todos os mistérios da existência humana. Só sei que a idéia de que sou o produto da imaginação de Alguém que na sua infinita bondade me botou nesta página é absurda.

- Ninguém falou em infinita bondade - interrompeu Martins. - Existe um Autor que nos criou e que nos tem em suas mãos, mas seu caráter é discutível.

- Se o Autor realmente é bom - disse Romualdo - que Ele faça abrir aquela porta e por ela entrar... a Bruna Lombardi !

Nisto, a porta se abriu. Os três levantaram-se, cheios de expectativa. Pela porta entrou... O Júnior Baiano** !

- O que é que eu estou fazendo aqui ? - perguntou o jogador.

- Nada, nada. Você deve ter entrado pela porta errada. - disse Romualdo.

Júnior Baiano retirou-se e fechou a porta.

- Viu só ? - disse Martins. - Existe um autor que determina o nosso destino. Mas Ele zomba de nós. Assim como nos colocou numa sala Luiz XV, poderia ter-nos botado numa mina de sal, ou sentados em cadeiras duras ouvindo o Bolero de Ravel. Nada o impede de me matar agora mesmo. Ou de me transformar num sapo.

Romualdo afastou a cadeira ligeiramente, com medo que Martins caísse fulminado aos seus pés. Aristides protestou:

- Ridículo ! Eu comando o meu próprio destino. Se eu quiser, posso me levantar e sair por aquela porta agora mesmo. Nós todos podemos nos levantar, ir embora e acabar esta crônica na metade.

- Então levanta e sai - desafiou Romualdo.

Aristides continuou sentado.

- Se você é livre para para fazer o que bem entender, então abra a porta e saia desta página - insistiu Romualdo.

Aristides não se moveu.

- Outra coisa - continuou Romualdo. - Se você, como personagem, fosse dono do seu próprio destino, você escolheria estar logo aqui, num texto d'Ele ? Eu prferiria estar num texto do Drummond !

- Eu sou livre - disse, calmamente, Asdrúbal.

Martins sorriu, tristemente.

- Não sei se você notou. Mas Ele mudou o seu nome. Agora, em vez de Aristides, você é o Asdrúbal. E não pode fazer nada a respeito...

- Mas eu não aceito isso - disse Asdrúbal.

- E vocês notaram ? Ele só se refere a Ele mesmo com maiúscula.

- É um tirano. Um megalomaníaco. Tem o poder absoluto. Enche uma página inteira com as palavras que Ele quer, com os personagens que Ele inventa. Dispõe das nossas vidas como se...

- Mas nós temos que nos rebelar ! - gritou Asdrúbal. - Temos que impor nossa liberdade ! Nem que seja...

- O quê ! - disse Martins, desconfiado.

Asdrúbal baixou a voz. Tinha tomado uma decisão.

- Nem que seja pelo suicídio - disse. - Ele nos criou, e isso o torna superior. Mas nós, como Ele, podemos nos matar, e isto nos torna iguais.

- Mas aqui não tem arma nenhuma - disse Martins, escondendo o seu copo.

Um revólver materializou-se sobre uma mesinha laqueada. Asdrúbal o pegou.

- Não ! - disse Martins. - Você não vê ? Ele está usando você. Ele precisa de uma cena forte para o clímax da crônica e está forçando você a estourar seus miolos.

Os olhos de Asdrúbal brilharam.

- E se eu matar um de vocês ? Ou os dois ? Assim eu me igualo a Ele. Eu também tenho a vida de vocês em minhas mãos.

Os três agora estavam de pé. Romualdo recuou alguns passos. Martins ficou onde estava. Martins falou:

- Isto é o que ele quer, também. Criar suspense. À nossa custa.

Asdrúbal continuou apontando sua arma para Martins. Romualdo começou a andar de lado, lentamente. Talvez pudesse se aproximar de Asdrúbal por trás e roubar a arma.

- O que é que Ele quer de nós, afinal ? - perguntou Asdrúbal, sem baixar a arma.

- O que Ele queria já conseguiu.

- E o que era ?

- Encher esta página até aqui.

Romualdo estava quase às costas de Asdrúbal. Preparava-se para atirar-se sobre ele.

- Onde é que isto vai acabar ? - perguntou Asdrúbal.

- Aqui - disse Martins.

LFV

NOTAS DO EDITOR:

* - texto reprisado em "O Gigolô das Palavras";

** - no texto original LFV cita Fantoni - uma referência a Orlando Fantoni, técnico de futebol linha-dura, famoso nos anos 70 e 80 -, um ícone absolutamente oposto à leveza de Bruna (assim como, imagino, seja o Júnior Baiano). Este editor, humildemente, tomou a liberdade de atualizar esta simbologia no personagem. Imaginei que talvez a nova geração não enxergasse a graça se o Fantoni fosse mantido. Opiniões/reclamações pelo e-mail, na página de apresentação deste site.

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