O empresário-administrador de vôo rasante
O CONSUMIDOR É, NO FIM, QUEM PAGA O QUE DEIXA DE PAGAR.

O esquema mercantil da oferta e da procura, afinal aquele que levou o Portugal Quinhentista a dobrar o Novo-Velho Mundo para se impôr ao capitalismo asfixiante da soberba Veneza - apesar da Cruz de Cristo! que não representava Cristo mas a cristandade imperial do Vaticano... -, não é um veículo habitualmente conduzido pela intelectualidade das Letras, mas há excepções violentas!

Para muitos, Fernando Pessoa é somente aquela figurinha estranha de poeta difícil, talvez-maçon pela magnitude anti-romana da sua vigia espiritualmente cristã, e para uns poucos é, também, o ensaísta de Literatura e... imagine-se!, de Economia... Isso, Ele-mesmo...

Pensar que este lisboeta ligado e vivendo do comércio, enquanto correspondente e tradutor, ou editor e publicitário, mas sobretudo poeta, era um intelectual vivendo de e para a lua, é um erro de análise social. As incursões pessoanas nos domínios da Filosofia, da Política e da Economia, sugerem-nos não só o ser humano preocupadíssimo com a situação transitória em que Portugal se encontrava (agonizava a Monarquia e surgia a República envolta em romantismos), mas também o ser humano que apalpava terreno para lhe servir de Futuro próximo, já que o Presente era/é uma ação de expectativa e de estudo; assim, e a par de "Páginas De Doutrina Estética", "A Nossa Crise, Seus Aspectos Político, Moral e Intelectual", e outros estudos e panfletos, Fernando Pessoa funda a Revista de Contabilidade E Comércio depois de ter experimentado o gosto de empresário informal na Empresa Íbis - Tipografia Editora-Oficina a Vapor; naquela revista publicou a sua teoria económica em torno da Economia de Estado e do Mercado Livre e, sobretudo, os Textos Para Dirigentes De Empresas. Quer isto dizer que, se por um lado existe um Fernando Pessoa totalmento absorto pelas linhas filosóficas e místicas do Nada e do Todo, por outro temos um Fernando Pessoa preocupadíssimo com o Futuro político, social e económico na contemplação crítica do Hoje.

Entre a vasta produção literária e a panfletagem política e esotérica (e até poética - e a esta poderíamos denominar como panflertagem dadas as características de especulação positiva aí transmitidas), a ação de ensaísta económica impressiona vivamente, porque há uma ruptura brutal com o intelectual das Letras, o Poeta heteronímico e, ainda assim, insuficiente!

A doçura do Poeta que é capaz de brincar expondo a belicosa História de Portugal e a psique do ser-português, propondo aos leitores futuros uma outra visão histórica e filosófica, é a outra face da moeda pessoana, é o argonauta questionando e expondo outros mapas para a geografia filosófica; ora, a outra face - a do calculista político e e economicista abala a mais conhecida (a do terreiro poético), projeta um Fernando Pessoa frio e capaz de enveredar por um golpe para deixar bem claro - em Si mesmo e nos Outros - o seu traço de empresário-administrador de vôo político rasante!

Eis-nos diante de um Fernando Pessoa que intervém publicamente contra a proposta salazarista de extinção das sociedades secretas, particularmente a Maçonaria, que escreve artigos irreverentes que lhe valem uma vezes o apóio e outras vezes o repúdio dos amigos (inclusive do íntimo Sá-Carneiro), que edita panflos (também de poesia) nos quais coloca a sua posição ideológica e política em relação ao pdir (processo de imposição da República) e, mais tarde, ao próprio e todo-poderoso Salazar. Nesta atividade que lhe ferve a Alma vai ele coletando dados e escrevendo as teorias económicas para concluir, já em 1926, que A administração do Estado é o pior de todos os sistemas imaginados, observando que os riscos, e pois os prejuizos, da administração do Estado estão evidentemente na razão direta com que essa administração intervém na vida social espontânea, para logo atribuir méritos à Economia Livre: o regime de liberdade, determinando e estimulando a concorrência, força cada concorrente a aperfeiçoar seus serviços comerciais e industriais, para levar vantagem aos outros.

A coisa pública não é assim tão estranha ao Poeta, uma vez que ele analisa politicamente o mundo que o rodeia - recordemos o Ultimatum, de 1917, sob o heterônimo de Álvaro de Campos -, com particular incidência no seu velho Portugal, combatendo os cartéis e os abusos do Poder estatal também no campo sindical.

Um dos raciocínios mais sutis deste analista económico glorificado nas poesias, é o seguinte:

o que o Estado lhe dá com a mão direita,
terá fatalmente que tirar-lho com a esquerda.
O consumidor é, no fim, quem paga o que
deixa de pagar

isto ao se debruçar sobre os incentivos com que o Estado acena ao contribuinte sem lhe dizer que o déficit já prevê o retorno por via de outros impostos.

E se entendermos que Fernando Pessoa, além de empresário gráfico, ou editor, foi também publicitário, compreende-se que ele pisava terreno seguro em suas teorias.

Enquanto publicitário, basta lembrar que o primeiro anúncio para venda de Coca-Cola no Portugal dos Anos 20 foi escrito por FP, e dizia: Primeiro estranha-se, depois entranha-se!, slogan que viria a ser proibido por relacionar a Coca-Cola com a Cocaína -, e Portugal teve de esperar muitos e muitos anos para provar a doce pinga yankee.

As opiniões pessoanas em torno da economia, pela sua acidez, sugerem o típico empresário-administrador de vôo político rasante, aquele que não se permite ajoelhar, aquele que não vai no conchavo mas balança para o entendimento geral, ou pátrio.

Das experiências como empresário e publicitário ganhou Fernando Pessoa a consciência da liberdade político-económica e no-lo diz assim:

Se temos (...) a liberdade de escolha, por que não
escolher a atitude mental que nos é mais favorável,
em vez daquela que nos é menos?

Eis a essência da psicologia do ser comerciante no que ao empresário Fernando Pessoa diz respeito. Mas, o que também é válido para a Economia em geral, pois sabemos que, por exemplo (e estas são idéias d'Ele-mesmo),

O primeiro passo para uma regeneração, económica ou
outra, é criarmos um estado de espírito de confiança
- mais, de certeza - nessa regeneração!

o que hoje, um pouco mais de meio século depois, chamamos de espírito de corpo em torno de uma estratégia.

É interessante notar, ainda, a preocupação deste particularíssimo teórico de Economia com a questão sindical, quando nos lembra que O princípio sindical - propriamente reacionário ou retrógado, pois que é uma reversão às corporações medievais - emergíu nas classes operárias, e de aí galgou para todas as outras (...) Acresce que o espírito de Classe ou de profissão, que ele tende a criar, tem também efeitos de rigorosa especialidade, onde esse espírito não seja apenas político; e ao nos lembrar este princípio sindical básico, Fernando Pessoa, toca(va) no ponto nevrálgico d'a questão sindical - o ponto da ação política onde se ressuscita o quê da Sociedade, essa que é um sistema de egoismos maleáveis, de concorrências intermitentes. Cada homem é, ao mesmo tempo, um ente individual e um ente social. Como individuo, distingue-se de todos os outros homens; e, porque se distingue, opõe-se-lhes. Assim, entre sindicatos e empresas a melhor política é o entendimento dentro da livre negociação...

Fernando Pessoa não foi, como se pode aferir no painel aqui traçado, apenas o Poeta; ele soube buscar na Política cotidiana as vertentes de uma Cultura de raiz que lhe possibilitaram partir para o questionamento das duas pedras-de-toque que movimentam a Sociedade moderna: Liberdade e Economia Livre.

Como ensaísta literário e economicista, e mais como economicista, Fernando Pessoa era um desconhecido ilustre, mas aconteceu que as teorias expostas em Textos Para Dirigentes De Empresas tinham, como têm ainda!, uma atualidade gritante.

Já conhecíamos o génio literário, aqui temos a outra face do homem que luta(va) para ser livre em meio às ambiguidades existenciais - a do empresário-administrador de vôo político rasante!.
 
 

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