"Negada a verdade,
não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos
entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade;
se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com
ela, não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a
verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira,
e assim não mentir."
(Fernando Pessoa)
Se você substituir
a palavra "mentira" por "artifício", na fala do F. Pessoa, talvez
a possa entender melhor. Picasso disse: "A arte é a mentira que
faz com que cheguemos mais perto da verdade." Ele quer dizer: o artifício
(já que um quadro - uma pintura -, por exemplo, é uma representação
do real e não o real em si). Entendo a palavra "mentira" nos dois
contextos (como "artifício" ou "ilusão"), mas, em ambos os
casos, a acho meio forte, porque, se tudo é "mentira" nesta nossa
vida
"aqui de baixo"
(o mundo "tri-dimensional"), então, logicamente, tudo é verdade
também. Por exemplo: o porquê de um quadro não é,
na verdade, representar, "registrar" ou "ilustrar" a realidade externa,
e sim fazer um trabalho interno (o próprio FAZER, do artista, o
trabalha internamente), e "expor" a realidade interna, a realidade da alma
ou do espírito (sem conotações religiosas, aqui, para
estas duas palavras); e, portanto, um trabalho de arte, embora seja um
"artifício" (algo "cultural" e não "natural"), é,
em si mesmo, uma verdade e não uma "mentira" ("verdade por saber
que é "mentira" (artifício), e assim não mentir").
O que o Fernando Pessoa quiz dizer, a meu ver, relaciona-secom - e critica
- o fato de algumas pessoas ficarem proclamando a "verdade" - ou a "verdade
absoluta" -, como, aliás, acontece muito no esoterismo: autores
afirmam coisas como se soubessem muito bem sobre elas, e como se estivessem
tratando da "verdade acima de todas", dizendo que a arte, por exemplo,
"não tem muita transcendência" (o que não é,
de forma alguma, verdade). Eu acho que o Fernando Pessoa dá um "cheque"
nessas pessoas que ficam tentando fazer "mistério" e criando expectativas,
sem que, no entanto, consigam expressar realmente o que querem ou pensam
ou percebem (se é que é exprimível o que elas tentam
expressar). Há um ditado (se não me engano, do Zen): "O que
não pode ser falado, deve ser calado". Concordo com F. Pessoa: acho
que o poeta, por exemplo (ou o artista em geral), sem ficar ditando cátedra,
sem ficar sugerindo "eu detenho a verdade" (para mim, dizer isto é
uma auto-afirmação vazia, inexpressiva,
pretensiosa), fala
melhor da realidade interna do que outros, "esotéricos", que falam
mas não esclarecem muito as coisas... (vêem um excesso de
mistério no "mundo transcendental"). O que acho meio estranho também,
nos textos esotéricos, é a falta de poesia. Esses textos,
em geral, seguem - como os da psicanálise - uma linha mais "filosófica"
de linguagem. E a gente fica sentindo falta de alguma coisa... falta de
POESIA, de VIDA. Lewis Carrol expressou isto muito bem, e de forma extremamente
simples, no seu "Alice...". Ele (Alice) diz: "- E para quê um livro
sem gravuras e diálogos?" Quer dizer: para quê (serve) uma
obra que não tenha poesia, que não seja uma coisa viva em
si mesma? Eu, pessoalmente, acho que a poesia (de um Fernando Pessoa, por
exemplo - que, além do mais, é cheia de sabedoria; e se não
fosse não teria sentido, já que não vejo sentido na
"poesia pela poesia": mero "derramamento de emoções") fala
muito mais a verdade do que qualquer texto "esotérico" que fala
mas não diz... Para mim, a questão é que, para se
entender a arte (que não se preocupa em "explicar" - ainda bem),
deve-se trilhar um certo caminho. Este caminho é tão esotérico
(difícil, oculto, deve ser "experimentado" individualmente, e não
há como ser "ensinado") quanto o da alquimia. Mas o artista simplesmente
faz e expõe, ou publica (o que considero a forma mais nobre de se
dizer alguma coisa), sem ficar tentando "doutrinar" ninguém. O poeta
não fica falando, por exemplo: "Meu filho, por este meio tu alcançarás
a glória do mundo, e toda a obscuridade se afugentará
de ti", como diz o próprio Hermes na "Tábua de Esmeralda";
e muitos outros alquimistas, senão todos, fazem o mesmo. Os alquimistas,
quando escrevem, parece que descobriram a "verdade última, absoluta",
mas os seus textos são cheios de promessas, cheios de "meu filho,
tu alcançarás a glória...". Por quê? (Quem tem
certeza de uma coisa não fica tentando convencer ninguém
de nada. Em geral, quem tenta convencer está "jogando verde para
colher maduro").
Os esotéricos prometem "glória", sugerem, parecem querer "ensinar", mas, na verdade, usam uma linguagem do suspense, do "mistério", que deixa o leitor sempre numa expectativa inútil. (Para quê?). Acho isso questionável. Fernando Pessoa, ao contrário, fala a verdade (e com grande poesia) sem necessidade de tentar "convencer" ou de "prometer" nada:
"NÃO CONSENTEM
os deuses mais que a vida.
Tudo pois refusemos,
que nos alce
A irrespiráveis píncaros,
Perenes sem ter flores.
Só de aceitar
tenhamos a ciência,
E, enquanto bate
o sangue em nossas fontes,
Nem se engelha conosco
O mesmo amor, duremos,
Como vidros, às
luzes transparentes,
E deixando escorrer
a chuva triste,
Só mornos ao sol quente,
E refletindo um pouco."
(Fernando Pessoa)
Ou então:
"LENTA, DESCANSA
a onda qua a maré deixa.
Pesada cede. Tudo
é sossegado.
Só o que é de homem se ouve.
Cresce a vinda da lua.
Nesta hora, Lídia
ou Neera ou Cloe,
Qualquer de vós
me é estranha, que me inclino
Para o segredo dito
Pelo silêncio incerto.
Tomo nas mãos,
como caveira, ou chave
De supérfluo
sepulcro, o meu destino,
E ignaro o aborreço
Sem coração que o sinta."
(Fernando Pessoa)
Além de tudo,
Fernando Pessoa era um Iniciado.
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