Álvaro de Campos

 

Perante este Campos decaído, cosmopolita, melancólico, devaneador, irmão do Pessoa ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja o único heterónimo que comparticipe da vida extra-literária de Fernando Pessoa. «Eu e o meu companheiro de psiquismo, Álvaro de Campos...» - lemos numa carta a Fernandes Lopes. «Tens hoje do teu lado o meu velho amigo Álvaro de Campos, que em geral tem sido só contra ti» - escreve Pessoa um dia à namorada. Outra carta de amor é assinada, por brincadeira, por Álvaro de Campos. Conta Alfredo Guizado que às vezes Pessoa o encontrava na rua e lhe dizia: «Você hoje vai falar com o Álvaro de Campos.» E não era só por blague, acrescenta Guizado: «Tinha realmente nesse dia uma maneira de falar, uma maneira de dizer, uma maneira de sentir diversa daquela com que costumávamos encontrá-lo».

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 70, 71

Campos - Máscara

Mas este tem com o seu demiurgo uma relação diferente daquela que o une aos outros heterónimos. Ele é, pelo tom e pelo estilo, o mais afastado de Pessoa, mas, pela inspiração, pela imaginação, pelo sentimento trágico da vida, o que lhe é mais próximo. Pessoa não pode tirar a «máscara» de Campos sem que a carne lhe venha agarrada. E é por isso que Campos, depois de 1916, nem morre, como Caeiro, nem se vai embora, como Reis. Muda, como se fosse uma pessoa realmente viva, modelada pelos acontecimentos, pelos encontros, pelo destino. Muda, como Pessoa. Mais, muito mais do que Pessoa. Ele é sempre Campos; a escrita, a personalidade, a «voz» continuam a ser as dele. Porém, o entusiasmo que o movia quebrou-se. Já não tem aquele dinamismo que se manifestava pelo entusiasmo ou pelo anátema e se exprimia em interjeições e em onomatopeias. Ao jovem poeta da Ode Triunfal e da Ode Marítima sobrevive um velho de quarenta anos, irmão gémeo do poeta ortónimo, que, esse sim, o acompanhará até ao fim do caminho.

Robert Bréchon. Estranho Estrangeiro - Uma biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzal, 1996, p. 443.

Campos sensacionista

Compreende-se que este Álvaro de Campos que desponta - o da segunda fase - com a sua vitalidade transbordante, o deu amor ao ar livre e ao belo feroz, venha a condenar a literatura decadente, planta de estufa corrompida, em cujos pecados, como o Fernando Pessoa ortónimo, incorreu: fá-lo-á a defender uma estética não aristotélica baseada já não na ideia de beleza, no conceito de agradável, em suma, na inteligência, mas sim na ideia de força, na emotividade individual pela qual o escritor subjuga os outros sem procurar captá-los pela razão
Intelectual, apesar do rótulo de sensacionista, a poesia de campos é-o tanto como a de Caeiro. Justifica-a o desejo de afogar o tédio, de suprimir pela embriaguês a dor de viver, irmão do Pessoa ortónimo no cepticismo, na dor de pensar e nas saudades da infância ou de qualquer coisa irreal, compreende-se que seja o único heterónimo que compartilhe da vida extra-literária de Fernando Pessoa, Campos disserta de vez em quando em prosa, chegando a criticar e refutar opiniões de Pessoa ortónimo.

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. ...

Campos versos Pessoa

Campos disserta de vez em quando em prosa, chegando a criticar e refutar opiniões de Pessoa ortónimo. No entanto, contrariamente ao plano de simulação, Campos e Pessoa estão por vezes de acordo: pensam ambos, por exemplo, que a metafísica é a pseudociência de se figurar mundos impossíveis (discussão de Athena); Campos assevera que nada se prova, que todo o pensamento enche eternamente um tonel eternamente vazio (carta à Contemporânea de 17 de Outubro de 1922), o que Pessoa confirma, em seu próprio nome, nas «Palavras de Crítica a Entrevistas» a respeito de Cabral Metello, em 1923: «Teve razão porque a não teve. (Campos escrevera: «Diga ao Fernando Pessoa que não tenha razão.») Interpretar é não saber explicar. Explicar é não ter compreendido.» Ambos aprenderam a lição de Caeiro...
No íntimo, a divergência é mais temperamental, e daí estilística, do que de opiniões ou preocupações. É palpável sobretudo na poesia. [...]

Jacinto do Prado Coelho. Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa. Lisboa: Verbo, 1973, p. 71