Seria sincero quando escrevia:
"Conviver com os outros é uma tortura para mim. E eu tenho os outros
em mim. Mesmo longe deles sou forçado ao seu convívio. Sozinho,
multidões me cercam. Não tenho para onde fugir, a não
ser que fuja de mim."
1912 - É nessa época que Fernando e alguns amigos cumprem
o cerimonial quotidiano dos encontros nos cafés da Baixa Lisboeta.
Ali se discutiam as mais diversas teorias e correntes literárias,
se cometavam os escritos e escritores de então, se abordavam estilos
e conceitos em voga além-fonteiras e até se desafiavam, tendo
todos em comum um grande espírito inovador e uma enorme amizade.
Na Brasileira do Chiado, nos Irmãos Unidos, no Martinho da Arcada,
na Cervejaria Jansen, no Café Montana reúnem em tertúlias
de todas as horas o Fernando, Mário de Sá Carneiro, Almada
Negreiros, Antônio Ferro, Alfredo Pedro Guisado, Armando Cortes-Rodrigues,
Amadeu de Siusa-Cardoso, Santa Rita Pintor, Luís de Montalvor e
outros.
Mário de Sá-Carneiro foi sem dúvida um dos maiores
amigos de Fernando. Vasta correspondência já publicada nos
permite aperceber até que ponto comungavam os dois dos mesmos ideais:
os mesmos receios e angústias, a solidão e incompreensão,
as faltas de dinheiro. Em certas fases parece-nos que contam só
com a existência mútua num mundo hostil. A amizade mental
unia-os num ciclo quase mítico.
Não podemos falar em amizades sem referir o nome de Armando Cortes-Rodrigues,
que por diversas vezes estava ausente nos Açores, sua terra natal,
e a quem Fernando escrevia assiduamente, estando hoje publicadas essas
cartas que revelam bastante de si e da sua obra.
Cortes-Rodrigues chegou a participar em determinada altura na revista Orpheu
com o pseudônimo feminino Violante de Cysneiros por alvitre do próprio
Fernando. Parece que Cortes-Rodrigues, inscrito no curso de Letras, receava
a reação de um dos seus professores, e assim a sua colaboração
passaria desapercebida, sem desistir dos seus intentos.
Tal era a mentalidade destes idealistas que a tudo faziam face para levarem
a bom termo a missão de revolucionar a arte portuguesa numa Europa
em mudança.
Fernando trabalhou em bastante escritórios. Os seus trabalhos eram
muito apreciados e todos o solicitavam porque ele era um bom técnico
e um pessoa em quem se podia confiar. Trabalhou para os Mayer, os Pancada
e Moraes, para a firma Xavier Pinto, nos escritórios do Lavado Pinto,
para Frederico Ferreira e Ávila, na Sociedade Rebelo da Silva, e
também para o seu amigo Carlos Moitinho d’Almeida. Também
chegou a trabalhar num escritório, na rua Assunção,
com Mário Nogueira de Freitas, que era, aliás, um dos três
sócios da firma. Foi aliás nesse escritório que ele
conheceu a Ofélia, tia do Carlos Queiroz, que também era
poeta e amigo do Fernando. É engraçado o depoimento de Luís
Moitinho d’Almeida, filho do principal sócio da firma Carlos Moitinho
d’Almeida, que era amigo de Fernando:
‘Foi no escritório
que conheci o Sr. Pessoa, como nós lhe chamávamos. Ele fazia
a correspondência em inglês e francês e recordo-me que
o seu estilo era muito apreciado. As lunetas davam-lhe um ar tímido,
apesar da agressividade do seu bigode ruivo, cortado à americana,
contrastando com os poucos cabelos grisalhos que ainda tinha na cabeça,
mas eu gostava dele e, apesar da diferença de idades, falávamos
muito, sobre as coisas mais variadas, sem que eu supusesse, todavia, que
o Sr. Pessoa que me aturava era, já nessa altura, ainda que conhecido
apenas de poucos, um poeta de extraordinária personalidade, e apreciadíssimo.
Muitas vezes assiti a cenas como esta: o Sr. Pessoa, que estava trabalhando,
em via de regra à máquina de escrever, visto que não
minutava o que datilografava, levantava-se, pegava no chapéu, compunha
os óculos, e dizia com ar solene:- Vou ao Abel. Ninguém estranhava
essa atitude exceto eu, que a vi pela primeira vez num Verão não
muito longe de 1923.
Continuei a ir para o escritório nos Verões dos anos seguintes
e uma vez vim a desvendar o mistério daquela atitude do Sr. Pessoa,
que se foi manteando, como um hábito, pela vida fora, e que, afinal,
não tinha mistério nenhum. Fernando Pessoa ia muito simplesmente
ao depósito mais próximo da casa Abel Pereira da Fonseca
para tomar um cálice de aguardente, o que lhe fazia mais falta do
que o café do Martinho da Arcada, onde ele, aliás, tmabém
repetidas vezes ia.
Num único dia foram tantas as idas ao Abel que me permito dizer
ao Sr. Pessoa, num dos seus regressos ao escritório: o senhor aguenta
como um esponja!, ao que ele imediatamente respondeu, com a sua habitual
ponta de graça, com o sense of humor que lhe ficara da educação
britânica:- Como uma esponja? Como um aloja de esponjas, com um armazém
anexo.’
Segundo depoimentos de sua irmã, Fernando tinha uma grande admiração
pela Fernanda de Castro, casada com seu amigo, Antônio Ferro. Ele
dizia que ela era a maior poetisa portuguesa. também gostava da
poesia do Carlos de Queiroz, dizia que era um rapaz cheio de valor, que
escrevia muto bem.
Fernando admirava imenso Almada Negreiros. Às vezes dizia que o
Almada tinha um grande espírito combativo e que ele era mais tímido
e muitas vezes não enfrentava as situações com a mesma
frontalidade. O Fernando guardou sempre os desenhos com a assinatura do
Almada Negreiros. Ele pintou um quadro do Fernando que foi leiloado e comprado
pelo Jorge de Brito.
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