Análise das poesias de Álvaro de Campos

Estamos diante de um poeta que se propõe a abrir seus sentido todos ao mundo e à vida, buscando uma linguagem poética capaz de exprimir sua alucinante vontade “sensacionista”. Este “poeta sensacionista”, turbulento, impulsivo, acreditava que a arte era, como toda a atividade, um indício de força, ou energia, da própria força que se manifesta na vida. Daí seus poemas fortes, vigorosos, energeticamente construídos em versos livres, soltos como a flutuação emocional do autor. O artista subordina tudo à sua sensibilidade, fazendo converter tudo em substância de sensibilidade, que force os outros, queiram eles ou não, a sentir o que ele sentiu; que os domine pela força do inexplicável. Os poemas “Tabacaria”, “Poema em linha reta” e “Bicarbonarto de Soda”, “Aniversário” e “Apontamento”, analisados à seguir, se encontram no Anexo da monografia :


"Tabacaria"

Talvez seja o poema mais conhecido de Álvaro de Campos. Oscilando entre o mundo interior e a realidade cósmica, universal , o poeta trata, ao mesmo tempo, da angústia com o cotidiano e dos sonhos de libertação. Isso pode ser observado a partir dos primeiros versos, cujo sentido vai se constituir na base de todo seu poema. Repare que o poeta é absolutamente niilista em relação a si próprio (“Não sou nada./ Nunca serei nada./ Não posso querer ser nada” ), mas, em compensação, ele sabe que tem “todos os sonhos do mundo”. Fechado em seu quarto, solitário, o eu-poético contempla uma rua, onde percebe um mistério, que é a morte e o destino que ninguém vê. Essa percepção extraordinária das coisas se dá devido à sua grande capacidade imaginativa, que o faz ver o que os outros não podem ver.

Vivendo seus sonhos, ele procura esquecer toda aprendizagem (isto é, aquilo tudo que aprendeu com os homens) e parte em busca da natureza , contudo essa solução não o satisfaz, na medida em que se sente desconfortável em qualquer lugar que esteja (“estrangeiro aqui, como em toda parte” dirá o poeta em outro poema). Álvaro de Campos é radicalmente diferente de Alberto Caeiro (e mesmo de Ricardo Reis); sua angústia, sua lucidez não permitem que seja inocente, natural. Voltar à natureza torna-se uma utopia inútil. Na seqüência, o poeta volta a opor a fantástica capacidade de sonhar à limitação do mundo exterior. Mas a sensação de euforia com o sonho não dura muito; mais adiante do poema, ele toma consciência de que os sonhos nada valem, pois as “aspirações altas e nobres e lúcidas” talvez nem vejam “a luz do sol” nem atinjam “ouvidos de gente”. Na verdade, “O mundo é para quem nasce para o conquistar / E não para quem sonha que pode conquistá-lo”, ainda que tenha razão. Por isso, apesar de ter conquistado mais do que o grande conquistador Napoleão, de ter amado mais do que Cristo e de ter filosofado mais que Kant, isso de nada vale, na medida em que tudo se processou na imaginação. Para expressar essa sua impotência perante a realidade, Álvaro de Campos serve-se da imagem do homem que espera que lhe abram a porta numa parede sem porta, ou do homem que tenta fazer que sua voz chegue até Deus, cantando dentro de um poço tapado.

Assim, o poeta se vê como um “escravo cardíaco de estrelas”, ou seja, uma pessoa que sonha com as estrelas e sofre de uma doença cardíaca, que o impede de ter emoções fortes, ou como quem só conquista tudo em sonhos. O resultado é um distanciamento cada vez maior da realidade, do mundo visível. A consciência disso causa-lhe um cansaço, um sofrimento de maneira que, passa a invejar uma menina que come chocolates inocentemente. Nesse momento, Álvaro de Campos toca num aspecto que é uma constante na obra de Fernando Pessoa: o de que o pensar é doloroso, por impedir o homem de ser feliz. Na outra estrofe, ao sentir o vazio dentro se si, o poeta procura alguma coisa que o inspire. Por isso recorre a musas inspiradoras do passado, mas a sensação de vazio continua a mesma, já que seu “coração é um balde despejado”. Na realidade, Álvaro de Campos expressa aqui a angústia do homem moderno, que não encontra mais ponto de apoio para as suas inquietações e, por isso mesmo, se entrega ao desespero. Essa consciência da inutilidade de tudo leva Campos a sentir-se um exilado, um ser à parte em relação à humanidade. Observe que, ele imagina o mundo como se fosse um teatro, onde todos representam e o “eu” é o único que não sabe nem pode representar. Devido a isso, seu lugar no teatro é no vestiário e jamais no palco.

Os versos finais do poema colocam frente a frente o eu-poético e o dono da tabacaria que representa o homem comum, o homem sem inquietações metafísicas. Ao vê-lo, o poeta experimenta uma sensação de desconforto e passa a ter a sensação da absoluta inutilidade de tudo, até da própria poesia. O poema fecha com a absoluta solidão do poeta, que tem consciência de que nada vale a pena, enquanto o dono da tabacaria, sem consciência alguma do que o cerca, apenas sorri.


"Poema em linha reta"

Em “Poema em linha reta”, Álvaro de Campos expressa, de maneira radical, sua solidão, sua diferença em relação ao homem comum. O poeta sente-se um marginal, na medida em que todos os seus conhecidos “têm sido campeões em tudo”. Repare que ele promove uma total demolição de si, apontando seus mais graves defeitos, suas mais feias abjeções. Mas essa avaliação negativa do próprio eu tem um sentido irônico, pois, enquanto se diminui, na verdade está se engrandecendo diante dos outros. Estes sim é que são pobres em humanidade, por não reconhecerem suas falhas e defeitos.


"Bicarbonato de soda"

Em “Bicarbonato de soda” , que é um medicamento que serve para aplacar o enjôo causado pela ingestão de alimentos pesados, no poema, contudo, tem um sentido simbólico, pois a náusea é a angústia da alma. O contraste entre o sofrimento do poeta fechado em si mesmo e a felicidade dos outros: “Que verão agradável dos outros!”. O paradoxo do verso final explica-se do seguinte modo: o poeta pede de beber, embora não tenha sede. Ou seja: deseja beber o simbólico bicarbonato de soda, que lhe acabaria com a náusea da alma.


"Aniversário"

No poema “Aniversário”, Álvaro de Campos contrapõe o tempo do passado, da infância, ao tempo presente. A época da infância é marcada pela inocência, pois a criança não tem noção do que se passa à sua volta: “Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma”. A passagem da criança para o adulto é marcada por uma perda, pois ele percebe que a vida não tem mais sentido. O poeta hoje “é terem vendido a casa”, ou seja, é um vazio, que perdeu, inclusive, o bem mais precioso, a sensação de totalidade, de alegria, de aconchego dada pela vida em família na infância longínqua. Assim, a festa de aniversário toma o aspecto simbólico de um ritual familiar, dentro do qual a criança se torna o centro de um mundo que a acolhe e protege carinhosamente. No presente, não há mais aniversários nem comemorações: resta ao poeta durar, porque o pensamento o impede de ter a inocência de outrora.


"Apontamento"

Em “Apontamento”, mais uma vez, Álvaro de Campos mostra uma imagem altamente negativa de si mesmo; ele é apenas um vaso vazio que a empregada deixou quebrar na escada. A imagem dos cacos representa a idéia de que o poeta se sente sem unidade, como se não reconhecesse em si uma essência. Observamos que os cacos, apesar de conscientes de si mesmos, não têm consciência de um conjunto. Para expressar o sem-sentido de sua existência, o poeta fecha o poema falando dos deuses indiferentes com o caco no tapete, uma pobre representação de uma obra, de uma alma, de uma vida.

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