Cartas de um vago exílio
N
inguém sabe ao certo se exilado, doente, preso ou simplesmente louco.Este curioso missivista manda suas cartas à sua senhora. Seu relato é confuso e pouco esclarecedor.
Como o Correio não sabe para onde mandar as cartas que insistem em chegar, o encarregado achou por
bem publicá-las, na esperança de que a destinatária as identifique.
Senhora ,
Enquanto aguardo a sentença final (espero que o juiz lembre-se daquele lindo Degas falso que lhe enviei de presente há 29 anos), tento não me aborrecer e evito contar TODAS as horas que ainda faltam.
Tenho pensado na morte, assim como se pensa numa amiga querida, um pouco acima do peso, com um leve sotaque estrangeiro, que chega de viagem numa terça-feira chuvosa. E você ainda tem de ir ao porto esperá-la. Não há mesmo quem possa explicar.
Tenho saudades infinitas das tardes que passávamos jogando palavras aos nossos cavalos, e evitando árvores, abismos e incêndios.
Fiquei sabendo ontem que durante 2 horas de um determinado dia de agosto, um pouco de sol entra pela janela de minha cela. Com um pouco de sorte serei transferido antes de agosto (dependendo de nosso gorduroso juiz, definitivamente para uma cela sem janelas).
Espero que me perdoe pelo nosso último encontro. Você deve imaginar que a falta de prática em lidas amorosas pode justificar meu comportamento. Gostaria de tentar novamente, porém dessa vez peço-lhe encarecidamente que venha sem nenhum broche, brinco, ou qualquer adereço pontiagudo.
Devo avisar-lhe que escrevi ao Conde do d'Esgosto e pedi que vendesse todos meus livros de prosa russa. Infelizmente não poderei lhe mandar nenhuma parte deste dinheiro. Acredite que o preço do xerez aqui na cadeia é realmente alto e consome todas minhas reservas. Não tenho nenhuma preocupação com sua capacidade de sobreviver sem mim. É claro que afirmo isso baseado em sua beleza, inteligência, poucos escrúpulos e na grande quantidade de jovens tolos e ricos disponíveis em nossa sociedade.
Creia-me amar você desta maneira.
assustadoramente teu
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Adorável Senhora,
É confortante receber suas sempre atenciosas mensagens. Tenho passado razoavelmente bem, apesar do frio que faz minhas pernas doerem (nem pude ir à casa de Mme Beuchamp ontem à noite). Tenho vários indícios de que há um traidor entre nós (provavelmente algum mouro invejoso). Nada disso tem a menor importância, uma vez que a data de partida de nosso vapor aproxima-se. Lord D. disse que se melhorar da gota irá recepcionar-nos no porto de Southampton.
Tenho pensado candidamente em você. A laje fria do meu quarto, porém, não me impede de desejá-la da mesma maneira que quando você era apenas uma criança irriqueta e uma aluna displicente.
Mas pílulas! Esses tempos passaram e você concluiu os estudos e foi assumir o lugar que lhe é de direito. Apesar de ter acumulado inúmeros desgostos com você, ainda amo-lhe como quando tinha 9 anos.
Mande-me notícias agradáveis em sua próxima carta. (a última vez que me alegrei com uma carta sua foi quando me contou sobre o passamento do seu estúpido marido).Não poderei lhe mandar dinheiro este mês. Lord D. meteu-se em uma encrenca relacionada ao jogo e precisei socorrê-lo. Prometa-me, prometa-me, linda princesa, que ganhará sempre suas apostas, sim ?
Prometa-me também crer em meu amor.
acreditadamente teu,
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Minha Senhora,
Comecei hoje uma aventura insólita. Ontem fui dormir sem cear e tive pesadelos a noite toda. Infelizmente devido à fraqueza de meu organismo, ainda não acordei de tais sonhos.
O dia amanheceu e fiquei sabendo que eu havia me apresentado como voluntário para uma tal Cruzada dos Mouros no Reino dos Palmitos. Ora, justo eu que não sei diferenciar um mouro de um árabe. Pelo menos os cavalos são todos negros. Anibal disse que a julgar pela minha dedicação nos últimos anos, logo me promoverá a intendente geral.
Parece que é um cargo BEM importante, alguma coisa assim como um almoxarife. Espero ter organização suficiente para cuidar do estoque de ferraduras.
O Reino dos Palmitos deve ser um lugar bem longe, pois há 9 anos estamos caminhando e ainda não chegamos lá. Anibal está bastante envelhecido, mas que homem! Que obstinação! que determinação! Comanda seus legionários como um autêntico tirano!
Não sei bem como contar isso a você, mas durante a última batalha no estreito de Waaarttk perdi uma parte do coração. Eu estava dormindo em minha tenda quando um bárbaro invadiu meus aposentos, cortou meu coração e levou parte dele. Agora ele não faz mais tum-tum. Faz só tum. Deverei amar um pouco diferente, porém não menos. Tenho desenhado muito , e as paisagens são bastante inspiradoras.
Espero não morrer de bala do inimigo, mas de tédio.
Falta-me,
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Senhora,
Anos atrás você partiu. Naquela época, os dias eram lentos, minhas pernas ainda doiam e você andava apressada. Naquela época tinhamos invernos, chuva na janela de vidro, gatos, obras de arte inacabadas e água quente na torneira. E você pegou aquele navio, não é ?
Eu não queria mesmo ter causado aquele acidente, e você deveria ter acreditado em mim. Pessoas pegam fogo rápido, você sabe. A culpa, infelizmente não foi minha
Escrevo para te pedir dinheiro. Não recebo mais nada da editora.
Meu advogado provavelmente fez algum acordo particular com o editor-chefe. Vivo à mingua, entre uma e outra colaboração cada vez mais esporádica para o periódico local. Me mande dinheiro.
amor,
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Senhora,
Fiquei um pouco desapontado quando abri seu pacote e descobri que só tinha me mandado livros. Cadê o dinheiro ? Preciso de 6 copeques até o dia 27, caso contrário Ivan Melianovic irá arrancar minha cabeça. Portanto, não faz sentido a senhora me mandar tantos livros, já que , definitivamente, não conseguirei ler todos até dia 27.
A primavera parece que começa a chegar finalmente, o que é um alívio, pois meus ossos não param de doer. Tenho desejado intensamente aqueles dias em que assistíamos encantados os cortejos da rua Petrovic e depois íamos à ópera ou à cama. São dias de calor, que provavelmente não existem mais nem em sua memória. Lucy de Flandres parou de me escrever, o que me leva a supor que ela realmente partiu com aquele jovem irresponsável que a cortejava no baile.
Me mande notícias de mim mesmo, e invente alguns boatos. Preciso realmente ter tempo para ler, e não posso me distrair com minha própria existência.
Se eu vier a saber que a Srta Lucy realmente fugiu com o Senhor Marcel, é bom que esse senhor tenha uma excelente explicação para me dar. E para Lord Tai também.
acredite
teu
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