As Letras de Luca Magiolo

 

Primeiro

 

Esse caderno de brochura diz muito

eu

às vezes útil

às vezes simples demais

às vezes tão demode quanto

tantas vezes à espera de que algo seja escrito

às vezes em tinta colorida

outras tantas de uma cor só

às vezes em letras de mãos firmes

marcando a página seguinte

outras tantas em palavras difíceis de registrar

às vezes corro veloz no destino do outro

às vezes mãos suadas me desfazem

às vezes esquecida entre bolinhas de naftalina

depois lembrada na urgência

às vezes maleável

tantas vezes de fácil manuseio

às vezes amarelada pelo tempo

valorizada pelas lembranças

mas quase sempre rabiscada no final

novamente útil

na emergência

 

tanta simplicidade

às vezes dói

 

 

Segundo ou depois

 

Tenho pensado nisso

essa água suja, borrifada de lamentos

está a cada dia mais turva

suadas forças se esvaem

na tentativa vã de clarear meus pensamentos

os movimentos são repetitivos e entediantes

e estou assim,

desmanchada num borrão sem cor nem cheiro

os golpes na pedra são necessários

disso bem o sei

me torço na brutalidade daquilo que não tenho voz para calar

para em seguida estar marcada pela incompetência do ser

agora eu totalmente transparente

pingando

sem forma alguma

irreconhecível

exposta ao sol que me cega.

dou graças por agora

estou só

por um tempo

quando tudo isso acabar

vou querer secar teu pisar bruto de incertezas

assim é

( e lá no fundo está a mulher

que displicentemente,

apenas estende roupas no varal,

feliz por estar abrigada no silêncio da sua simplicidade )

 

Terceiro ou por fim

 

 

Por pensar em você, tenho escrito.É assim que acontece agora

E assim te mando um fragmento das minhas melhores lembranças.

Sim, disso eu bem me recordo:

Estávamos radiantes diante de um imenso saco, repleto de pecinhas coloridas que ali esperavam para tomar forma.

Corríamos por um corredor escuro, cheirando a mofo e a infância, até estancarmos subitamente, para com um

respeito silencioso entrarmos naquela casa minúscula, com paredes repletas de histórias.

Da pobreza ali, apenas os móveis mal colocados disputando espaço entre caixas de papel.

Tudo ali era alegremente bagunçado, e riamos, nosso sorriso cúmplice, nossos passos descalços.

O chão úmido

vermelhão

brilhando cera de venda.

Quando o riso estridente e convidativo daquela senhora, que todos amávamos como a única capaz de ser escolhida para

ser nossa mãe de mentirinha, nos tirava do silêncio que respeitosamente nos impúnhamos, o tempo que desde então era

nosso ajudante também, sentava conosco para ouvir as instruções de como dar vida àquelas pecinhas coloridas.

( ainda acho que ali ele aprendeu a conduzir os homens e as coisas)

Arrastávamos aquele saco de idéias e nos agrupávamos para derrubar tudo que continha ali.

O som era capaz de fazer suspender no espaço, naquele minúsculo espaço cheio de crianças suadas, vestidas todas

com roupas ganhadas, não só a poeira daquela velhice esquecida, mas a parte primeira das nossas lembranças.

E as cores se espalhando ruidosamente, tão felizes quanto nós.

Mas era então que nos ensinava a não pisar no branco que não poderíamos nunca limpar, no preto que poderia

escurecer nossos pesadelos , no vermelho que marcaria o fim da nossa infância.

E aprendíamos.

Quase flutuávamos no cômodo para não destruir nossa única chance de amanhecer ali novamente.

Ainda crianças...