Governo reduz proteção das
            florestas brasileiras
 

                   Medidas provisórias editadas no fim de
                   98 atendem às pressões dos ruralistas
                   e afetam mecanismos do Código Florestal
                   que protegem florestas brasileiras

                   O governo federal, por meio da Medida Provisória (MP) nº 1.605-30 de
                   novembro de 98 e suas reedições de dezembro e janeiro sob número
                   1.736-31 e 32, respectivamente, atendendo às fortes pressões do movimento
                   ruralista, modificou significativamente as regras de proteção das florestas
                   brasileiras, fragilizando ainda mais os mecanismos de controle de sua
                   supressão, bem como reduzindo significativamente os percentuais de áreas a
                   serem protegidas por força do Código Florestal (Lei nº 4.771/65) em todo
                   território nacional.

                   Com base nessas MPs, os fazendeiros poderão, na Amazônia (na região
                   Norte e norte da região Centro-Oeste), desmatar áreas que antes seriam
                   destinadas à implantação da reserva legal (área no interior de propriedades
                   rurais que por Lei devem ser destinadas à preservação da flora e fauna) e, no
                   caso daqueles que já desmataram tais áreas, poderão ser desobrigados de
                   executar sua recomposição. As áreas de reserva legal em região coberta por
                   Cerrado foram reduzidas de 50% para 20%. Assim, um percentual maior de
                   áreas de Cerrado existentes na região Norte e porção norte da região
                   Centro-Oeste poderão ser suprimidos legalmente.

                   Além disso, propriedades que mantêm a reserva legal implantada e protegida
                   poderão pedir sua redução e, conseqüentemente, desmatá-la, pois passam a
                   poder computar as áreas de preservação permanente cobertas por florestas
                   (margem de cursos d´água, topos de morro, terrenos com alta declividade,
                   entorno de nascentes e lagoas) no percentual total de reserva legal.

                   Segue abaixo uma breve avaliação das alterações promovidas pelas três
                   últimas reedições da MP, lembrando que a última versão, de janeiro de 1999,
                   reeditou sem qualquer alteração a versão de dezembro.

                   1) ANTECEDENTES HISTÓRICOS

                   Em 25 de julho de 1996, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou a
                   MP nº 1.511, que deu nova redação ao artigo 44 do Código Florestal,
                   ampliando o percentual mínimo de floresta a ser protegido por meio da
                   implementação de reservas legais em propriedades rurais na região Norte e no
                   norte da região Centro-Oeste do país de 50% para 80 %. Na Exposição de
                   Motivos da aludida MP, assinada pelos ministros de Meio Ambiente, Ciência
                   e Tecnologia e Relações Exteriores, constou que tal medida se justificava
                   devido ao incremento na taxa média anual de desflorestamento de 11.130
                   km2, em 1991, para 14.896 km2 no biênio 1993-94, segundo dados do
                   Inpe.

                   Além de ampliar o percentual da reserva legal na Amazônia, a MP 1.511/96
                   proibiu a expansão da conversão de áreas arbóreas em áreas agrícolas nas
                   propriedades rurais que possuíssem áreas já desmatadas, abandonadas ou
                   sub-utilizadas, de acordo com a capacidade de suporte do solo, e determinou
                   que a utilização das áreas com cobertura florestal nativa, na região Norte e
                   parte norte da região Centro-Oeste, somente seria permitida sob a forma de
                   manejo sustentável de uso múltiplo.

                   Passados mais de dois anos, sem ter sido apreciada pelo Congresso Nacional,
                   em 19 de novembro do ano passado, a mesma MP foi reeditada pela
                   trigésima vez, sob o número 1.605-30, só que desta vez trazendo novidades
                   notoriamente prejudiciais às florestas brasileiras. A partir de então
                   sobrevieram mais duas reedições (as MP1.736-31 de dezembro de 98 e
                   1.736-32 de janeiro de 99) que agravaram ainda mais a situação da proteção
                   legal às nossas florestas.

                   É curioso notar que uma MP que teve por fundamentação original a
                   necessidade de reverter o quadro de acelerado crescimento do ritmo do
                   desflorestamento na Amazônia, por intermédio da promoção da reorientação
                   na atividade produtiva para um modelo de uso sustentável dos recursos
                   naturais da região, em suas três últimas reedições virou radicalmente o jogo.
                   Regras de proteção das florestas foram significativamente flexibilizadas, em
                   flagrante atendimento aos reclamos dos ruralistas.

                   2) COMPENSAÇÃO X RECUPERAÇÃO

                   De acordo com o § 4º, da MP 1.605-30, o proprietário rural que suprimiu
                   floresta dentro de reserva legal, ou utilizou e vem utilizando-se de área que
                   deveria ser ou ter sido destinada à sua criação, poderá optar por adquirir
                   outra propriedade (no mesmo estado, desde que pertençam ao mesmo
                   ecossistema e que tenham o mesmo valor ecológico) com floresta e averbá-la
                   como reserva legal a título de compensação pela área por ele suprimida ou
                   utilizada para uso alternativo do solo. Desta forma, o proprietário rural
                   exime-se da obrigatoriedade de recuperação da área mencionada.

                   Do modo como foi editada, a MP mencionada infringe dispositivo
                   constitucional basilar do Direito Ambiental (art. 225, § 3º) que impõe, ao
                   degradador, o dever de recuperar o dano ambiental por ele causado. Assim,
                   por exemplo, se um proprietário rural suprimiu 100% das florestas existentes
                   em sua propriedade e vem utilizando esta área para atividades agropecuárias,
                   poderá, de acordo com a nova MP, optar por adquirir outra área equivalente
                   à devastada e, assim, estará se eximindo da responsabilidade de recuperá-la.
                   É importante ressaltar que este dispositivo da MP somente se aplica às
                   reservas legais situadas na região Norte e porção norte da região
                   Centro-Oeste do país, pois refere-se ao artigo 44 do Código Florestal, que
                   trata exclusivamente das reservas legais nestas regiões.

                   Independentemente das críticas relativas aos critérios para que esta
                   compensação se dê - já que não foram estabelecidos limites, condicionantes
                   nem tampouco critérios técnico-científicos baseados em princípios de
                   conservação ambiental para tanto - este dispositivo da MP notoriamente
                   fragilizou a obrigação dos proprietários rurais de implementar a reserva legal
                   em suas propriedades, bem como debilitou o princípio constitucional da
                   obrigatoriedade de recuperação do dano ambiental.

                   Todavia, é importante reafirmar que a obrigatoriedade de recuperar a floresta
                   em área de reserva legal subsiste também no caso de proprietário que adquiriu
                   sua propriedade rural com a área de reserva legal já despida de floresta. Esta
                   obrigação qualifica-se juridicamente como obrigação real (propter rem), que,
                   portanto, independe do causador do dano, ressalvado-se o direito de regresso
                   do atual proprietário contra aquele que desmatou a área.

                   3) REDUÇÃO DO PERCENTUAL DE RESERVA LEGAL

                   Em sua 31ª reedição, de 14 de dezembro de 1998, desta vez sob o número
                   1.736-31, a MP reduziu significativamente o percentual de áreas de florestas e
                   demais formas de vegetação protegidas ao possibilitar a dedução das áreas de
                   preservação permanente (margem de curso d’água, nascentes, lagoas, topos
                   de morro, terrenos com alta declividade etc) no cômputo geral do percentual
                   mínimo necessário para a proteção de reserva legal. Além disso, a MP
                   desobriga o proprietário rural de registrar em cartório (averbar) as áreas de
                   preservação permanente consideradas no percentual mínimo de reserva legal
                   estabelecido pela Lei.

                   Em síntese, a título de exemplo, se uma propriedade rural na região Sudeste,
                   onde o percentual mínimo de reserva legal deve ser, por Lei, de 20%, possui
                   mais de 20 % de suas terras protegidas a título de área de preservação
                   permanente, esta propriedade estará desobrigada da criação de reserva legal.
                   Além disso, se já a criou poderá pedir a revisão deste percentual e sua parcial
                   desaverbação.

                   A despeito da discussão acerca das distintas funções ecológicas da reserva
                   legal e das áreas de preservação permanente, de fato esta inovação veio para
                   eliminar algumas situações injustas onde pequenas propriedades rurais,
                   situadas ao longo de grandes rios ou localizadas em terrenos com alta
                   declividade, tinham grande percentual de suas terras inviabilizadas em função
                   das limitações trazidas pelo Código Florestal. Contudo, esta não é a regra,
                   mas sua exceção, e a Lei, mesmo que prevendo exceções à sua
                   aplicabilidade, deve ter caráter geral e abstrato.

                   Com o propósito de eliminar situações pontuais, a MP favoreceu mais uma
                   vez uma grande maioria de proprietários rurais que eliminou suas florestas em
                   detrimento daqueles que, conscientemente, ou mediante coerção pelo poder
                   público, preservaram as áreas de preservação permanente e ainda
                   implementaram e protegem a reserva legal.

                   Importa alertar que este dispositivo possibilita aos proprietários rurais que já
                   criaram e mantêm preservadas suas reservas legais, mas que também possuem
                   em sua propriedade áreas de preservação permanente intactas, que requeiram
                   o direito de suprimir floresta dentro da reserva legal, mediante sua
                   desaverbação parcial (alteração no registro em cartório), em extensão
                   correspondente às áreas de preservação permanente existentes em suas
                   propriedades.

                   Este dispositivo refere-se às florestas e demais formas de vegetação situadas
                   em todo território nacional.

                   4) REDUÇÃO DA PROTEÇÃO AO CERRADO NA AMAZÔNIA

                   Na mesma reedição mencionada no item anterior, a MP reduziu
                   significativamente o percentual de área coberta por Cerrado a ser protegida a
                   título de reserva legal, na região Norte e na parte norte da região
                   Centro-Oeste. O artigo 44 do Código Florestal, vigente desde 1965, previa
                   que no mínimo 50% da cobertura arbórea existente nesta região deveria ser
                   protegida.

                   Embora o Cerrado não seja compreendido pela legislação como fitofisionomia
                   florestal - pois com exceção do chamado cerradão, a cobertura arbórea do
                   Cerrado não possui dossel contínuo com sub-bosques e suas árvores são
                   esparsas -, este ecossitema possui nas suas diversas formas cobertura
                   arbórea, aliás das mais ameaçadas de extinção no Brasil em função da
                   desordenada expansão agrícola tanto na região Amazônica como na
                   Centro-Oeste. Este percentual a ser preservado sob a forma de reserva legal,
                   portanto, foi reduzido de 50% para 20% a partir da reedição de dezembro da
                   MP em questão.

                   5) MEDIDA PROVISÓRIA X CONSTITUIÇÃO FEDERAL:
                   RECUPERAÇÃO DE RESERVA LEGAL

                   O artigo 7º da MP 1.736-31, reeditado pela MP 1.736-32, revogou o artigo
                   99 da Lei de Política Agrícola (Lei nº 8.171/91), que obrigava o proprietário
                   de terras rurais a recuperar as florestas dentro das reservas legais em sua
                   propriedade, num prazo máximo de 30 anos, a um ritmo de um 30 avos por
                   ano, independentemente de ter sido o responsável pela sua supressão.

                   No entanto, de acordo com a Constituição Federal (art. 225 § 3º) - que
                   obviamente não é revogável por Medida Provisória - a obrigatoriedade de
                   reparação do dano ambiental por aquele que o causou persiste. E esta
                   responsabilidade de implantar e/ou recuperar a reserva legal é assumida pelo
                   adquirente da propriedade degradada pelo fato desta obrigação ser
                   qualificada juridicamente como obrigação real, portanto, atrelada ao bem
                   lesado, no caso, a propriedade rural que teve sua reserva legal suprimida ou
                   não implementada como manda a Lei.

                   De fato, a revogação deste artigo de Lei Agrícola dá a impressão de que os
                   fazendeiros não mais serão obrigados a recuperar suas áreas de reserva legal.
                   No entanto, importa alertar que o artigo 99 da Lei de Política Agrícola, na
                   verdade, beneficiava os fazendeiros, na medida em que lhes concedia um
                   dilatado prazo de 30 anos para que procedessem a recuperação exigida tanto
                   pela Constituição Federal como pela Lei de Política Nacional do Meio
                   Ambiente (art. 14, § 1º).

                   Assim sendo e não mais estando vigente o artigo 99 da Lei de Política
                   Agrícola, os fazendeiros poderão vir a ser obrigados a recuperar sua reserva
                   legal imediatamente e em sua totalidade, por via da ação civil pública ou até
                   mesmo administrativamente pelo órgão público competente, se vontade
                   política houver.

                   6) DESMATAMENTO DE FLORESTAS DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE

                   A MP 1.605-30, de novembro de 98, alterou a redação do §1º, do artigo 3º,
                   do Código Florestal consagrando a expressão "... florestas de preservação
                   permanente de que trata esta Lei", possibilitando ao poder público autorizar a
                   supressão tanto das áreas de preservação permanente criadas por ato
                   administrativo do próprio poder público (art. 3º do Cód. Florestal) como
                   daquelas criadas por força do próprio Código Florestal (art. 2º). Em outras
                   palavras, todas as categorias de áreas de preservação permanente previstas
                   no Código Florestal, sejam as do artigo 2º, sejam as do artigo 3º, são
                   passíveis de supressão em caso de obras, planos, atividades ou projetos de
                   utilidade pública ou interesse social. Vale dizer que os órgãos ambientais já
                   adotavam esta interpretação e este dispositivo da MP veio eliminar qualquer
                   interpretação controvertida.

                   Entretanto, remanesce a necessidade de determinação do conceito de
                   utilidade pública e interesse social para efeito de aplicabilidade deste
                   dispositivo.

                   Pela MP 1.736-31, o órgão ambiental poderá exigir compensação para o
                   caso de supressão de área de preservação permanente.

                   7) FLORESTAS DO PATRIMÔNIO INDÍGENA

                   A inclusão do § 3º ao artigo 3º do Código Florestal pela MP 1.605-30, de
                   novembro de 1998, que versa sobre as florestas que integram o patrimônio
                   indígena, deveu-se única e exclusivamente por necessidade de renumeração
                   dos parágrafos do artigo mencionado, pois tais florestas já constavam como
                   de preservação permanente no mesmo artigo do Código Florestal desde
                   1965. Vale lembrar que as regras para o corte de madeira em terras indígenas
                   estão previstas no Estatuto do Índio (Lei Federal nº 6.001/73) e nas
                   regulamentações do Ibama sobre manejo sustentável de florestas. Assim, em
                   relação às florestas que integram o patrimônio indígena não ocorreu nenhuma
                   alteração.

                   8) CONSIDERAÇÕES FINAIS

                   Como já era de costume (vide vetos do presidente à Lei de Crimes
                   Ambientais e sua falta de empenho para a aprovação da Lei da Mata
                   Atlântica), o governo federal, atendendo ao sempre presente lobby do
                   movimento ruralista, flagrantemente cedeu às pressões e fragilizou
                   significativamente alguns dos mais importantes instrumentos da Política
                   Nacional de Meio Ambiente no que se refere à recuperação das florestas
                   brasileiras, bem como reduziu drasticamente a extensão total das florestas
                   protegidas pelo Código Florestal.

                   A mudança nas regras veio à luz exatamente no final do ano passado, época
                   em que a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) iniciou forte
                   campanha contra as limitações impostas pelo Código Florestal, tendo inclusive
                   movido Ação Direta de Inconstitucionalidade contra o artigo 99 da Lei
                   Agrícola em resposta às inúmeras ações judiciais que os fazendeiros vinham
                   sofrendo por parte das ONGs e do Ministério Público para recuperar suas
                   áreas de reserva legal.

                   Em troca de apoio da pesada bancada ruralista no Congresso Nacional para a
                   aprovação das reformas "necessárias" ao enfrentamento da crise econômica, o
                   governo federal foi muito além do que os próprios ruralistas esperavam.

                   Conseqüência prática e imediata das medidas acima comentadas, afora a
                   desmoralização das normas ambientais frente àqueles que as cumpriram à
                   risca e foram ludibriados pelo poder público, será: a possibilidade de
                   desmatamentos legais de grandes extensões de Cerrado na Amazônia; a
                   interferência e tumulto em inúmeras ações judiciais que visam a recomposição
                   florestal das reservas legais; e uma corrida desenfreada para ocupação das
                   áreas ainda não transformadas em reserva legal na Amazônia (para se
                   beneficiarem da possibilidade de compensação por outras áreas menos
                   interessantes do ponto de vista do uso alternativo do solo).

                   Outra conseqüência temerária poderá ocorrer em propriedades onde as
                   reservas legais foram devidamente implementadas e protegidas, mas que
                   também mantêm preservadas as áreas de preservação permanente. Estará
                   aberta, em todo país, a temporada de pedidos de revisão da extensão das
                   reservas legais em função da possibilidade de cômputo das áreas de
                   preservação permanente para efeito de percentual mínimo de reserva legal.
                   Uma conseqüência provável será a desaverbação parcial das parcas reservas
                   legais implementadas com muito custo - inclusive, para o próprio poder
                   público - e o uso alternativo (leia-se supressão da cobertura florestal) dos
                   solos até então cobertos por florestas.(André Lima e Sérgio Leitão,
                   assessores jurídicos do ISA, em 22/01/98)



ISA - Instituto Socioambiental
www.socioambiental.org



Texto Produzido por:

ISA
André Lima e Sérgio Leitão

Disponibilizado para a Lista em 27/01/99

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