Notas para uma História
dos Brancos no Solimões

Julio Cezar Melatti

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"Página do Melatti"

Introdução

Por força de minhas relações pessoais, tenho tomado conhecimento, ocasional e fragmentariamente, do andamento dos cursos destinados à formação dos professores indígenas do alto Solimões mantidos pela Organização Geral dos Professores Ticunas Bilíngües (OGPTB). Sem me referir à própria história e tradições de seu povo, que somente eles próprios, com ajuda dos mais velhos podem contar, comecei a pensar sobre que fontes de informação disporiam esses professores para preparar suas aulas de História e Geografia, relacionadas a sua situação no Brasil e no Mundo, além dos próprios livros escolares preparados nas grandes e afastadas metrópoles. Acredito que teriam de começar por aquilo que os toca mais de perto. A proposta seria tomar os eventos ocorridos no alto Solimões como oportunidades para discutir fenômenos de âmbito mais amplo aos quais estão relacionados. E o Solimões, junto a cujas margens vivem os ticunas, os cocamas, os caixanas, além de outros povos indígenas, se presta de modo muito favorável a esse propósito por ter sido a via percorrida por um significativo número de personagens envolvidos em acontecimentos, indagações, causas, interesses, relacionados a sucessivos ou concorrentes centros metropolitanos.

Um naturalista como La Condamine, por exemplo, que desceu o rio em 1743, serve de mote para desenvolver temas como a esfericidade da Terra e o achatamento dos pólos, o cálculo da longitude, a velocidade do som, a divulgação dos conhecimentos indígenas sobre o curare e a borracha, os tratamentos precursores da vacina anti-variólica. A descrição por Spix e Martius de coletas de quantidades gigantescas de ovos de tartaruga, inconcebíveis nos dias de hoje, seguida da confecção da chamada manteiga, bem como da captura indiscriminada das próprias tartarugas, dão uma idéia das conseqüências desastrosas que resultam da falta de preocupação com a conservação do meio ambiente, uma conseqüência que os dois pesquisadores já previam em 1819, quando presenciaram essas atividades. Henry Bates, um dos naturalistas que mais tempo passou na Amazônia (1848-1859), dá oportunidade a desenvolver o tema da evolução biológica, relacionado que era a Wallace e Darwin e por ter trabalhado sob esta orientação com o tema do mimetismo, e ainda tratar da diversidade biológica, pois coletou exemplares de mais de 14 mil espécies animais, sobretudo insetos, das quais 8 mil desconhecidas para a ciência da época; descreve também encontros com representantes de etnias hoje não mais reconhecíveis, apesar de, infelizmente, ser talvez quem menos acreditava na inteligência e força de vontade dos índios. A viagem de Gonçalves Dias, em 1861, e a de Mário de Andrade, em 1927, não só podem conduzir a atenção para a história das escolas ou para o estudo do folclore, respectivamente, mas também para dois períodos distintos da história da literatura brasileira. A presença de Candido Rondon, de 1934 a 1938, como representante da Liga das Nações, para supervisionar a execução do protocolo que punha fim aos combates entre Colômbia e Peru na disputa por Letícia, e os trabalhos de pesquisa de Curt Nimuendaju junto aos ticunas na década de 1940, dão oportunidade a desenvolver temas relacionados ao indigenismo e aos estudos etnológicos.

Pensando nisso, tenho tomado umas anotações e transcrições que ponho aqui à disposição daqueles professores que queiram desenvolver a presente proposta.

Tratado de Tordesilhas

Em 1494, portugueses e espanhóis assinaram em Tordesilhas (uma cidade da Espanha) um tratado, dividindo entre si as terras habitadas por não-cristãos, descobertas ou por descobrir. Segundo esse tratado, uma linha, traçada no sentido norte-sul, passando a 370 léguas a oeste das ilhas de Cabo Verde (arquipélago ao largo da costa ocidental africana) separaria as suas possessões: as que estivessem a oeste da linha seriam dos espanhóis; as que ficassem a leste seriam portuguesas.

Dessa maneira os espanhóis garantiam as terras americanas que Cristóvão Colombo descobrira dois anos antes, julgando ter chegado às Índias, e os portugueses asseguravam uma faixa oceânica ao longo da África que vinham explorando havia muitos anos na procura de um passagem para as Índias propriamente ditas.

Sabe-se que uma légua marítima portuguesa da época equivalia a 5,92 km. Por conseguinte, a linha separadora passaria a 2.190,4 km do arquipélago tomado como referência. Não se pode traçá-la com precisão, porque o Tratado de Tordesilhas não especificava qual das ilhas de Cabo Verde seria o ponto de partida da contagem. Mas calcula-se que ela passaria mais ou menos pela foz do rio Amazonas, talvez pouca coisa a oeste da atual cidade de Belém.

Por conseguinte, mesmo antes de os europeus se darem conta de que tinham encontrado um imenso continente que até então desconheciam, a América, já o tinham dividido, e a Amazônia estava quase todinha no lado espanhol.

Na América do Sul os portugueses não cumpriram o Tratado de Tordesilhas e ultrapassaram de muito a linha demarcatória. Mas essa linha não cortava apenas o continente americano, pois suas extremidades, que tocavam os pólos, podiam ser prolongadas, dividindo também o outro lado da Terra. A linha era, pois, um meridiano. Para melhor visualizá-la nos atlas ou globos geográficos, levemos em conta que estaria algo próxima do meridiano que corta a América a 50° W e a Austrália a 130° E. Observando-se esse meridiano, pode-se constatar que as Filipinas estavam na área atribuída a Portugal, mas foi a Espanha que as conquistou.

Por causa do Tratado de Tordesilhas é que os espanhóis ocuparam a parte ocidental e os portugueses a oriental da América no Sul; por isso é que os espanhóis chegaram ao alto Solimões descendo o rio, enquanto os portugueses o fizeram subindo; por causa dele é que a língua dos brasileiros é o português e a língua dos colombianos e peruanos é o espanhol.

A expedição de Orellana

Dentre os primeiros europeus a percorrerem o alto Solimões se contam Francisco de Orellana e seus comandados no ano de 1542. Nessa época, alguns portugueses que tinham sido aquinhoados com capitanias hereditárias ensaiavam a colonização de alguns pontos do litoral leste e sul do Brasil com o cultivo da cana e a produção de açúcar. No mesmo litoral portugueses e franceses continuavam a trocar com os índios objetos europeus por toras de pau-brasil. No outro lado do continente os espanhóis conduzidos por Francisco Pizarro tinham conquistado o Império Inca. Gonzalo Pizarro, irmão do conquistador, foi nomeado governador de Quito (hoje capital do Equador). Gonzalo então organizou e conduziu uma expedição em direção à Amazônia em busca de canela. Essa especiaria foi realmente encontrada, mas sua qualidade era inferior à da Ásia e as árvores das quais se extraía eram dispersas na floresta. A certa altura, a umas duzentas léguas de Quito, os expedicionários viram seus alimentos esgotados e sem plantações indígenas às quais recorrer. Francisco de Orellana, com mais 57 homens, foram encarregados de procurar alimentos rio-abaixo, enquanto Gonzalo Pizarro com maior parte da expedição iria retrocedendo, aguardando sua volta, caso fossem bem sucedidos. Depois de descerem longo trecho aparentemente desabitado, Orellana e seus companheiros encontraram indígenas que os receberam bem e lhes cederam alimentos. Treze chefes se apresentaram a Orellana. Este aproveitou essa primeira parada para a produção de cravos de ferro para a construção de uma nova embarcação, que deveriam fazer mais adiante. Aí se demoraram de 8 de janeiro a 2 de fevereiro de 1542, quando retomaram a viagem. Vinte léguas abaixo chegaram à boca de um rio pouco caudaloso que entrava pela direita, onde foram procurados em suas embarcações por um chefe chamado Irrimorrany ou Irimara. Como porém havia muitos redemoinhos e muitos troncos flutuando na água, viram-se impedidos de desembarcar e visitar a aldeia; e passaram adiante. Poucos dias depois encontraram um povo cujo soberano se chamava Apária, onde os indígenas os receberam bem e lhe forneceram alimentos. Vinte e seis chefes subordinados a Apária se apresentaram. Orellana aproveitou a hospitalidade para providenciar a construção do novo bergantim. Já então havia desistido de retornar rio-acima, dada a dificuldade de vencer a força das águas e porque, talvez, pelo tempo, Gonzalo Pizarro já tivesse a caminho de retorno a Quito.

Um dos religiosos que estava entre os acompanhantes de Orellana, Frei Gaspar de Carvajal [1], escreveu a crônica de toda a descida do grande rio.

Orellana se demora toda a Quaresma na aldeia de Apária e daí sai no dia 24 de abril. Por oitenta léguas continua a navegar dentro dos domínios de Apária, cujos súditos mantêm o fornecimento de alimentos até que ultrapassa seus limites.

Em 12 de maio a expedição alcança o território de um outro povo dirigido por um soberano chamado Machiparo. Aí, porém, são mal recebidos e, para conseguir alimentos, têm de invadir aldeias, enfrentando severa resistência. Esse senhorio tinha também cerca de oitenta léguas ao longo do rio.

Mais adiante os expedicionários entram em um outro domínio, dito de Oniguayal, Omagucei ou Omágua. Apesar da coincidência de nome, o etnólogo-historiador Antônio Porro [2] não admite que esse povo seja os omáguas que os europeus vão encontrar mais acima neste rio no século seguinte. Enquanto percorriam esse domínio, os espanhóis passaram por um rio que desembocava à direita e que seria o Purus. Era um domingo depois da Ascensão, ou seja, dia 18 de maio. É nesse domínio também que visitam uma casa, que Carvajal chama de "diversões", onde havia uma louça que ele considera magnífica, melhor que a de Málaga. Antônio Porro a identifica com a cerâmica arqueológica de Codajás. Carvajal toma essa aldeia como um local de recreio de algum senhor que vivia mais para o interior, para onde se dirigiam largos caminhos. E calcula que esse domínio se estendia ao longo do rio por cem léguas.

Começam a percorrer então a província de Paguana, onde Carvajal admite haver "ovelhas" do Peru (lhamas), da qual saem numa segunda-feira da Páscoa do Espírito Santo, ou seja, 29 de maio.

No sábado seguinte, véspera da Santíssima Trindade, portanto dia 3 de junho, passaram por um rio que desembocava à esquerda, com águas muito escuras que por vinte léguas não se misturavam com as águas do rio que navegavam. Deram-lhe o nome de rio Negro.

E assim continuam sua viagem os espanhóis, atacando aldeias para conseguir alimento, mas sem nunca ousarem uma penetração além das margens do rio, dado o enorme número de indígenas que as habitavam. É abaixo do rio Negro que vão passar por um povo dominado pelas amazonas, mulheres guerreiras que viviam no interior. Saem do rio Amazonas no dia 26 de agosto em dois bergantins, um dois quais chega no dia 9 e o outro no dia 11 de setembro à ilha de Cubágua, vizinha da ilha Margarita, no litoral da Venezuela.

Orellana voltou à Espanha, onde preparou uma nova expedição para fazer a conquista do rio Amazonas, mas dessa vez entrando por seu estuário. Saindo da Espanha com quatro navios, morreram-lhe mais de cinqüenta homens por enfermidade que os acometeu ainda no oceano Atlântico, quando parou num de seus arquipélagos (Canárias ou Cabo Verde?). Desfalcado de gente, teve de abandonar um navio. Naufrágios e outros problemas ao entrar no rio Amazonas dispersaram a expedição e ele próprio veio a morrer no rio que o tornara famoso.

A expedição de Pedro Teixeira

Quase cem anos depois de Orellana, na terceira década do século XVII, dois franciscanos espanhóis, Domingo de Brieva e Andrés de Toledo, fugindo de uma rebelião dos índios encabelados, entre os quais missionavam, no rio Napo, desceram com seis soldados o Solimões e o Amazonas. Diferentemente do tempo de Orellana, quando não havia habitantes brancos na foz do grande rio, agora ali se erguia um núcleo urbano português que daria origem à atual cidade de Belém. Os portugueses, depois de conquistarem o litoral sudeste e leste do Brasil, haviam avançado pelo litoral do Nordeste e expulsado os franceses que tentavam se consolidar na ilha onde ergueram o núcleo de São Luís, no Maranhão. Daí os portugueses seguiram para o estuário amazônico, disputando-o a franceses, holandeses e ingleses, que também nele tentavam se estabelecer.

Com sua fixação na foz do Amazonas, os portugueses haviam chegado ao máximo permitido pelo Tratado de Tordesilhas, pois a linha divisória passava por aí. Ouvindo o que contavam os missionários espanhóis que haviam chegado do rio Napo, os portugueses vislumbraram a possibilidade de conquistar o grande rio para si. Organizaram então uma grande expedição, sob o comando de Pedro Teixeira, que devia subir o rio Amazonas rumo a Quito. Seus guias eram os dois espanhóis recém-chegados. Nessa época as relações entre portugueses e espanhóis eram um tanto ambíguas, pois, embora pertencentes a diferentes reinos, eram súditos do mesmo rei. Entre 1580 e 1640, os reis de Espanha foram também reis de Portugal. A expedição de Pedro Teixeira partiu rio acima em 28 de outubro de 1637. Compunha-se de 70 soldados e 1.200 índios remadores e guerreiros. Acompanhavam-nos também mulheres e rapazes de serviço, fazendo um total de duas mil pessoas. No dia de São João, 24 de junho de 1638, chegou ao porto de Payamino, o mais avançado posto espanhol na direção do grande rio. Antes de alcançar esse ponto, a maior parte da expedição acampou na área dos encabelados, abaixo da foz do Aguarico, e ficou a esperar Pedro Teixeira por onze meses, enquanto ele se dirigia com o restante à cidade de Quito.

Os espanhóis de Quito receberam Pedro Teixeira surpresos e apreensivos. Pareceu-lhes que os portugueses podiam conquistar suas próprias possessões andinas. Mas, como tinham o mesmo rei, receberam-nos com festas, tendo o cuidado de estimulá-los a tomar o caminho de volta o mais breve possível. Dois jesuítas, um deles Cristobal de Acuña, foram encarregados de acompanhar Pedro Teixeira na sua volta e de fazer uma descrição pormenorizada da viagem ao governo espanhol.

Escrito quase cem anos depois do texto de Carvajal, o texto de Acuña [3] dele difere em vários aspectos. Foi escrito por alguém expressamente encarregado de fazê-lo, para dar conta ao governo espanhol; os povos indígenas tinham mudado suas posições ao longo do rio; modificações impostas pelo contato com os europeus já se faziam sentir, como a escravização de índios pelos portugueses no baixo Amazonas que já alcançavam pelo menos o Tapajós; e na altura da foz do rio Negro já se fazia uso de instrumentos de metal, introduzidos pelo comércio, mediado por outros grupos indígenas, com os holandeses que já haviam ocupado a Guiana. Sem dizer que, quanto à mentalidade, o cronista diferia do anterior, pois, apesar de religioso, era menos inclinado a ver a todo instante a atuação da providência divina.

Acuña faz primeiro uma descrição geral do rio, no que diz respeito aos acidentes naturais, clima, vegetação, fauna, recursos minerais, características gerais das atividades de seus habitantes, para depois dedicar-se à caracterização de cada povo que habitava o grande caudal. Começa pelos águas ou omáguas, que não são aqueles que Carvajal tinha chamado por este último nome. Os omáguas descritos por Acuña habitavam aproximadamente o mesmo trecho do rio onde Carvajal tinha visto o domínio de Apária. O território dos omáguas começava a sessenta léguas abaixo da confluência do Napo com o Marañón e terminaria a quatorze léguas abaixo do Jutaí. Sobre a maneira como o ocupavam diz Acuña, no capítulo LI:

Essa província tem mais de duzentas léguas de longitude, sendo seus povoados tão contínuos, que apenas termina um já começa o outro. Sua largura é, ao que parece, pequena, pois não passa da própria largura do rio, em cujas ilhas, que são muitas, e algumas delas muito grandes, têm sua morada. Mas, considerando que todas essas ilhas estão povoadas ou pelo menos cultivadas para o sustento destes nativos, poder-se-ia fazer uma idéia da grande quantidade de índios que em tão grande distância se alimentam.

Diz também que cultivavam muito algodão com que teciam panos para fazer suas roupas como também para comerciar com outros povos indígenas. Eram panos muito vistosos, tecidos em diversas cores ou pintados.

Informa também sobre uma característica dos omáguas que chamava muito a atenção dos estranhos:

Possuem todos a cabeça chata, o que causa fealdade nos varões, embora as mulheres a cubram com o cabelo abundante. Está tão arraigado nestes nativos o costume de ter a cabeça achatada que, desde que nascem as crianças, elas são colocadas numa prensa. Tendo sua fronte presa com uma tábua pequena, o recém-nascido fica de costas sobre outra tábua que lhe serve de berço e, apertado fortemente à anterior, fica com o cérebro e a fronte tão achatados como a palma da mão. E como estas tábuas não lhe permitem que a cabeça cresça mais que para os lados, ela acaba se deformando de tal maneira, que mais parece mitra de bispo mal construída que cabeça de um ser humano.

Acuña também informa sobre vizinhos dos omáguas que viviam mais afastados das margens, podendo-se destacar os dois parágrafos que fecham o capítulo LI:

Mantêm estas tribos, por uma e por outra margem do rio, contínuas guerras com os povos vizinhos que, pelo lado do sul, são, entre outros, os Curina tão numerosos, que não apenas se defendem, pelo lado do rio, da grande quantidade dos Água, como também sustentam armas, ao mesmo tempo, contra as demais nações que por via terrestre os atacam constantemente.

Pelo lado norte os Água têm como inimigos os Tecuna que, de acordo com boas informações, não são inferiores aos Curina nem em número nem em brio, já que também sustentam guerras com os inimigos que têm terra adentro.

Os prisioneiros de guerra eram escravizados. Mas os omáguas tinham muita estima por seus escravos e tudo faziam para escapar às propostas de compra dos participantes da expedição de Pedro Teixeira. Diziam os portugueses que os omáguas se negavam a vendê-los porque queriam comê-los. Mas Acuña rejeita essa acusação de canibalismo e a atribui à cobiça dos colonizadores em conseguir escravos.

No capítulo LIV, Acuña arrola os povos que viviam no Putumayo, mas sem indicar a que altura de seu curso, se junto às cabeceiras, que eram conhecidas, por estarem junto às áreas ocupadas pelos espanhóis, nos Andes, ou se perto da foz. Os únicos identificáveis são os próprios omáguas, que ocupavam ambas as margens do baixo curso, ou seja, o rio Içá, e que eram chamados pelos omáguas das ilhas de "Omaguasyeté", que quer dizer "Omáguas verdadeiros". Faz o mesmo com um rio que desembocava do lado oposto, a cinqüenta léguas mais abaixo, o Yetaú (Jutaí), enumerando seus habitantes. E inexplicavelmente acrescenta os omáguas que viviam mais perto do Peru, logo no alto Jutaí (que, por sinal, fica muito longe do Peru), gente riquíssima em ouro.

Vinte léguas abaixo da boca do Juruá, na margem sul do grande rio, iniciava-se o domínio dos curuziraris, que se estendia por oitenta léguas até abaixo da foz do Japurá. Em seu território ficava a aldeia do Ouro, assim chamada porque seus habitantes usavam ornamentos desse metal, que obtinham do outro lado do Solimões, cruzando as terras que o separam do Japurá e procurando um afluente deste último, conhecido como rio do Ouro. Acuña lhes dedica os capítulos LVI a LIX e nota que furavam orelhas e narizes e tinham grande produção de cerâmica.

A quatro léguas abaixo da foz do Japurá desembocava na margem sul um rio chamado Tapi, que deve ser o Tefé. Nas suas margens habitava uma infinidade de índios chamados paguanas.

Nos capítulos LXI e LXII o cronista conta que mais abaixo, por uma extensão de sessenta léguas na margem sul e também nas ilhas, estavam os índios mais belicosos do rio, os yoriman. Uma de suas aldeias tinha a extensão de uma légua. Os expedição de Pedro Teixeira, em sua descida, deles recebeu alimentos e aí parou cinco dias para fazer farinha e se fez tanta que bastou para o restante da viagem.

Duas léguas abaixo do final da província de Yoriman saía um rio na margem sul, onde viviam os índios Cuchiguarás. Era o Purus. A lista de grupos indígenas que viviam da boca para o alto desse rio termina com uma população de gigantes que usariam grandes patenas de ouro nas orelhas e nos narizes (capítulo LXIII).

Entre os rios Purus e Negro, pela margem norte, desembocava um rio que Acuña chama de Basururu, que só pode ser o Manacapuru. O cronista enumera no capítulo LXIV os povos que aí viviam e diz que alguns usavam instrumentos de ferro, como machados, machetes, podões e facas. Informaram os nativos que eles os obtinham de índios que vivem mais perto do mar, que por sua vez os conseguiam de homens brancos que usavam as mesmas armas daqueles que faziam parte da força de Pedro Teixeira, mas com a diferença de que tinham cabelos amarelos. O cronista soube entender com isso que esses instrumentos vinham dos holandeses que já então ocupavam a Guiana.

Ao alcançar o rio Negro, Acuña tem se esforçar em dissuadir os portugueses de nele fazer uma incursão escravizadora (capítulos LXVI e LXVII). E Acuña continua a descrever os povos do rio Amazonas até sua entrada no Oceano.

Vale notar que Acuña tinha uma opinião diferente da atual quanto curso superior do rio Amazonas. A leitura de seu texto nos permite perceber que ele considerava o que hoje tomamos como os cursos médio e inferior do Napo como rio Amazonas. O Napo se reduziria a seu curso superior, até o local onde recebe os rios Coca e Payamino. Daí para baixo seria Amazonas. Nessa confluência, que Acuña chama de "Junta de los Ríos" (capítulo XLVI), hoje se ergue a cidade equatoriana de Coca e teria sido aí que Orellana construiu o primeiro bergantim para descer o rio, quando ainda estava em companhia de Gonzalo Pizarro. Por ela também passou Pedro Teixeira, pois entrou pelo rio Payamino para chegar a Quito. O rio Marañón, que Acuña prefere chamar de Tungurágua, é tomado como um afluente do Amazonas, isto é, do Napo.

Carvajal disse que os espanhóis abateram sete ou oito das dez ou doze amazonas que vieram ajudar os índios contra os espanhóis e que deixaram os bergantins destes crivados de projéteis como porcos-espinhos. Acuña não as viu, mas não ousa admitir que não existam. Ambos os cronistas assiduamente fazem referência à existência de ouro, que quase sempre põem longe das margens do rio: com as amazonas, com os gigantes do alto Purus. É curioso que Carvajal faz duas referências a um grande senhor chamado Ica, com grande riqueza em ouro, que vivia ao sul, de que lhe falavam os índios de Apária, sem identificá-lo com o Inca. Digno de nota também é que, para Carvajal, a senhora que dirige todas as amazonas se chama Conhorí, nome muito parecido aos dos índios e do rio que serve de entrada a seu território, segundo Acuña, que é Cunuris. Este rio seria o Nhamundá, que faz a fronteira entre os atuais Estados do Amazonas e do Pará.

Acuña foi designado para acompanhar uma expedição portuguesa a percorrer um grande rio inteiramente situado dentro de território espanhol, numa situação ambígua, pois Portugal e Espanha tinham o mesmo rei. Entretanto, em 1640, Portugal passa a ter novamente seu próprio monarca. É após a restauração portuguesa que Acuña acrescenta a sua crônica um memorial dirigido ao rei de Espanha no qual faz algumas sugestões sobre o Amazonas. Recomenda, como era de se esperar, que os espanhóis ocupem o rio o mais breve possível, para não perdê-lo. Mas, surpreendentemente, sugere que a conquista deve ser realizada a partir das cabeceiras, de Quito. E faz uma outra sugestão que mostra quão grande era a população indígena do rio Amazonas: propõe que ela seja aproveitada para repovoar a região andina, onde a conquista e colonização espanhola tinha causado um severo déficit demográfico.

Reconstituição histórico-etnográfica

Não foram porém Orellana e Pedro Teixeira os únicos conquistadores a percorrerem o rio e nem Carvajal e Acuña os únicos cronistas a descrevê-lo. Orellana foi precedido pela expedição do espanhol Mercadillo, que alcançou a região de Tefé em 1538, e o mameluco português Diogo Nunes, que dela fazia parte, deixou uma crônica. Há quatro crônicas sobre a expedição inicialmente conduzida por Pedro de Ursúa. Partindo do rio Huallaga em 1560, desceu até a foz do Amazonas, passando pelo Marañón e Solimões. Ursúa foi assassinado durante o trajeto e substituído por Fernando de Guzmán, que, em franca rebelião ao rei da Espanha, se fez príncipe da região a conquistar, mas foi por sua vez assassinado por Lope de Aguirre, que tomou seu lugar. Instalando um regime de terror entre os membros da própria expedição, Aguirre chegou ao oceano e rumou para a ilha Margarita, que saqueou. Foi morto na Venezuela em 1561. Duas crônicas se baseiam em dados dos dois franciscanos que desceram até Belém, sendo uma delas a atribuída a Alonso de Rojas [4]. Os críticos admitem que algumas informações e passagens de Acuña dela foram tomadas. O próprio Pedro Teixeira deixou um depoimento sobre sua expedição e Maurício de Heriarte, que dela participou, escreveu uma descrição da região.

Com base no exame de textos como esses, Antônio Porro tem trabalhado na reconstituição da distribuição e características dos povos indígenas que habitavam o grande rio. Em um de seus textos, o exame das referidas fontes leva este pesquisador a supor que o povo de Apária visitado por Carvajal seja o mesmo que outros cronistas chamaram de Pariana, Ariana, Aricana. Cem anos depois Acuña viu no mesmo trecho, embora não inteiramente coincidente, os omáguas. Na p. 50 do capítulo 2 de O Povo das Águas, Antônio Porro [5] mostra-se relutante em identificar o povo omágua, mais recente, com o Apária, mais antigo, devido à ausência neste último de uma importante característica daquele: nenhum cronista faz referência à deformação artificial do crânio pelo povo de Apária. Mas na p. 79 do capítulo 3 já parece estar convencido dessa identificação.

Antônio Porro parece também não identificar como Apária a população dita Arimocoa, vista pela expedição de Ursúa no trecho onde desemboca o rio Tonantins. Asseados e em boa ordem de batalha, diferiam dos de Apária por andarem nus.

A província de Machiparo descrita por Carvajal, Antônio Porro a identifica com os curuziraris de Acuña, carapunas e aisuaris em outros cronistas.

Para Antônio Porro, o povo que Carvajal chama de oniguayal, omagucei ou omágua nada tinha a ver com o omágua que Acuña vai ver cem anos depois mais acima. Corresponderia sim ao yoriman de Acuña, também chamado de culiman, yurimágua e solimões por outros autores.

Ganha destaque no exame de Antônio Porro o deslocamento rio-acima que cada um desses povos estava fazendo. Isso se devia ao avanço das expedições escravizadoras portuguesas que então se iniciavam.

As tropas de "resgate"

Acuña narra como dissuadiu Pedro Teixeira de fazer uma incursão pelo rio Negro, para aprisionar índios, atendendo a pedidos de seus comandados, que não queriam chegar a Belém e São Luís e serem menosprezados por seus habitantes, por terem passado por tantos povos com escravos e não terem trazido nenhum que lhes compensasse os esforços e perigos por que tinham passado (capítulos LXVI-LXVIII). Narra também como, já tendo chegado quase ao final da viagem, viu sair, apesar de seus protestos, uma expedição portuguesa para submeter os índios do Tapajós, apesar de, quando passou por esse rio, ter testemunhado as boas relações que estes mantinham com os portugueses. Depois de humilhar os tapajós, os portugueses os obrigaram a fazer expedições para aprisionar outros indígenas, aceitando como tal seus próprios filhos quando perceberam que não traziam escravos em número que julgavam suficiente (capítulos LXXIV e LXXV).

As chamadas tropas de "resgate" eram expedições promovidas pelos colonos portugueses para conseguir índios que eram prisioneiros de outros índios e destinados ao sacrifício antropofágico. Os índios que eram assim salvos da morte pelos portugueses deviam pagar-lhes esse favor tornando-se seus escravos. Além de não considerar se os índios preferiam ser ritualmente sacrificados (pelo menos era assim que os tupinambás pensavam), essa permissão legal fazia com que os portugueses, sequiosos de escravos, vissem qualquer povo indígena como antropófago. Tais expedições se permitiam qualquer tipo de abuso e chegavam a aprisionar até indígenas que as recebiam bem. Desse modo as expedições escravizadoras devastaram a população indígena que vivia às margens do rio Amazonas e no baixo curso de seus afluentes. Antônio Porro, na sua "História indígena do alto e médio Amazonas: séculos XVI a XVIII", já referida, faz uma lista dessas expedições, obviamente incompleta, já que foram inúmeras e muitas não deixaram registro. Dentre as que enumera, entraram no Solimões a de Bartolomeu Bueno de Ataíde, em 1651, se é que o rio do Ouro a que se dirigia era aquele das bandas do Japurá; a de Manuel Coelho, em 1671; a de Francisco Lopes, em 1673. Quando o Padre Fritz sobe o Solimões em 1691, escoltado por portugueses, como se verá abaixo, vai encontrando, até pouco acima da boca do Juruá, aldeias abandonadas, ou definitivamente, ou por terem os índios se refugiado no interior, alarmados com a aproximação dos lusitanos.

Se as "tropas de resgate" dos colonos portugueses começavam a despovoar de indígenas o Solimões de baixo para cima, esboçava-se no sentido oposto uma expansão do trabalho de catequese dos jesuítas espanhóis.

Sobre o confronto desses dois avanços coloniais, é valioso o diário deixado pelo Padre Samuel Fritz [6]. Este jesuíta, nascido na Boêmia (hoje República Checa), chegou à América do Sul em 1685 ou 1686 e foi encaminhado por seus superiores a trabalhar com os omáguas. Em janeiro de 1689, ele partiu da sede de sua missão em São Joaquim dos Omáguas e desceu o Solimões, passando pelas aldeias omáguas até alcançar uma aldeia iurimágua, onde fez construir uma capela dedicada a Nossa Senhora das Neves. Sentindo-se mal de saúde, resolveu procurar socorro junto aos portugueses e saiu à sua procura até alcançar Belém. Durou essa viagem de 3 de junho a 14 de setembro. Aí ficou em tratamento. Mas os portugueses, desconfiados de que a verdadeira razão de sua viagem era espionar sua colônia, não deixaram que ele retornasse às suas missões antes de consultarem o Rei de Portugal. Assim ele permaneceu em Belém por um ano e meio, até que chegou a resposta do Rei, ordenando que ele fosse conduzido novamente às missões. O governo do Pará ainda demorou três meses em preparar sua viagem, de modo que somente em 8 de julho de 1691 ele saiu de Belém para subir o rio Amazonas, conduzido por uma tropa que, além do comandante, tinha um cirurgião, sete soldados e 35 índios remeiros. Entre os soldados estava Francisco Palheta.

Chegaram ao forte da barra do rio Negro no dia 7 se setembro. Aí oitenta índios tarumãs ("taromases"), chefiados por Carabiana, lhes trouxeram muita comida e pediram ao padre que ficasse entre eles e prometeram-lhe não fazer mais guerras aos cuchivaras, ibanomas e iurimáguas.

Curiosamente no dia 9 a expedição começa a subir o Solimões acompanhada de doze tarumãs, para percorrer o trecho justamente habitado por seus referidos inimigos. Nos dias 16 e 17 a expedição alcançou uma aldeia abandonada dos cuchivaras, pois tinha sido incendiada no ano anterior pelos índios do rio Urubu (afluente que desemboca na margem esquerda do Amazonas, defronte à foz do Madeira). No dia seguinte, continuaram a subir o Solimões, levando um índio cuchivara agrilhoado, para não fugir, a fim de servir de guia. A expedição estava, portanto, na região da desembocadura do Purus.

No dia 19, a canoa dos tarumãs foi mandada na frente a uma aldeia dos ibanomas, que encontraram abandonada e queimada. Três dias depois os tarumãs fugiram, deixando os portugueses que escoltavam o missionário sem guia. No dia 2 de outubro chegaram à aldeia Joaboni, dos ibanomas, na foz do Japurá. Conduzidos pelo cacique Arimabana, que os acompanhou com sua gente (certamente ibanomas) em duas canoas, chegaram no dia 5 a outra aldeia ibanoma, que estava numa ilha, para onde tinha descido tempos atrás depois de os tarumãs terem matado quatro deles.

De 6 a 11 de outubro passam por seis aldeias aisuares, assim enumeradas de jusante para montante: ilha Quirimatate; uma de que não dá nome; Guaioêni; outra aldeia não denominada abandonada por seus moradores; Turucuaté, também sem gente; Samonaté, igualmente sem gente. A foz do Juruá estava entre essas duas últimas aldeias. Como o Padre Fritz usa mais de uma vez a expressão "Aisuares da ilha", talvez todas elas estivessem nas ilhas fluviais.

No dia 12 chegam à aldeia Guarapaté, dos iurimáguas, que também estava abandonada. No dia seguinte alcançaram dois iurimáguas que estavam fugindo e contaram que todos estavam foragidos, porque um ibanoma espalhara a notícia de que o padre não vinha, mas sim os portugueses, matando, queimando e escravizando. No mesmo dia chegaram à aldeia de Nossa Senhora das Neves, abandonada e com a capela queimada, esta, segundo o Padre Fritz, por descuido de um rapaz.. O missionário mandou procurar seus moradores e no dia 16 apareceram o chefe Mativa e alguns deles. Nesta última aldeia iurimágua, o Padre Fritz recomendou ao comandante da tropa que retornasse, pois já estava na sua missão e os índios estavam alarmados com a presença dos portugueses. Este insistiu em levá-lo até a primeira aldeia omágua, pois tinha ordens do governador para deixá-lo lá. Assim o fez. Na aldeia omágua o Padre voltou a recomendar ao comandante que retornasse, ao que este finalmente acedeu. O missionário acompanhou-o na descida até Nossa Senhora das Neves. Aí o comandante, mostrando suas verdadeiras intenções, intimou o Padre a retirar-se rio acima por ordem do governador, pois ali estavam em terras portuguesas. Depois que o missionário argumentou que sobre essa questão já tinha muito discutido com o governador e que ali ele estava antes de tudo em trabalho de catequese, a tropa portuguesa se retirou. E o Padre Fritz voltou a subir o rio Solimões.

De jusante para montante, o Padre Fritz passou por 23 aldeias omáguas: Maiavara, Euaratam, Arasaté, Maribité (quase em frente a uma boca do Jutaí), Canafia (diante da boca principal do Jutaí), Ibiraté, Uaté, Cuatinivaté, Cucunaté (depois da qual ficavam as terras altas dos Caivisanas na margem norte, que podemos supor ser Caixanas, e portanto o rio Tonantins), Maracaté, Catoreará (onde parou seis dias doutrinando), Joeté, Janasaté, Ameneuaté, Chipatité, Tucuté, Arapataté, Coquité, Guacaraté, Ameiguaté, Quematé (depois da qual passou pela boca do Junari), Joauaté (depois da qual passa por três correntes grandes) e São Joaquim (que ele chama de "princípio de minha missão").

O Padre Fritz saiu da aldeia omágua que estava mais abaixo no dia 3 de novembro e chegou a São Joaquim, provavelmente a que estava mais acima, em 22 de dezembro de 1691. Levando em conta que gastou uns 12 dias em suas paradas, ele gastou 38 dias percorrendo o trecho ocupado pelos omáguas. É curioso que o missionário oferece mais indícios para identificar, ainda que grosseiramente, as posições das aldeias mais abaixo do que as que estavam mais próximas da sede de sua missão. Descontadas as paradas, o missionário passava em média por uma aldeia por dia. Entretanto, do rio Junari até São Joaquim levou doze dias e só indica a aldeia de Joauaté nesse trecho. Não denomina as três correntes grandes por que passa antes de chegar a São Joaquim. Também é difícil identificar o rio Junari. Levando-se em conta que gastou 9 dias para subir da foz do Japurá à do Juruá e 10 dias desta última à do Jutaí, os 7 dias que gastou daí até as terras altas dos Caivisanas permite admitir que estas são mesmo as cortadas pelo Tonantins. Se da foz do Tonantins assim identificada gastou 15 dias até o Junari, este deve ser o Javari. É curioso que logo após o Tonantins vem o Içá, um grande rio, ao qual ele não faz qualquer menção. Se o Junari é mesmo o Javari, os 12 dias que gastou daí até São Joaquim não permitem situar essa última acima da atual Iquitos, como faz Rodolfo Garcia na nota LVI, que parece ser o local a que posteriormente foi transferida. São Joaquim estava então bem mais abaixo, como se verá a seguir.

Baseado nas informações do Padre Fritz, de Acuña e do franciscano Laureano de la Cruz (que esteve entre os omáguas desde Loreto até a foz do Içá de 1647 a 1650), Antonio Porro elaborou um mapa, que figura na p. 177 de seu livro O Povo das Águas, em que procura situar as aldeias omáguas da segunda metade do século XVII e as ilhas nas quais ou junto às quais estavam. É pena que não indicou São Joaquim dos Omáguas, que poderia figurar no extremo ocidental do mapa, pois consta da parte do mapa do Padre Fritz reproduzida na p. 175 como mais ou menos situada na posição da atual cidade peruana de Pebas. Aliás esse mapa do missionário poderia ter recebido uma especial atenção da editora, que o deveria ter copiado em escala maior e em papel que permitisse uma impressão mais nítida.

A missão do Padre Fritz não chegou a instalar-se plenamente no Solimões. Ela tinha no máximo três anos quando ele desceu até Belém. Os índios ainda moravam em aldeias construídas por eles próprios e não reunidos em aldeamentos erigidos de modo a favorecer o trabalho de catequese, como acabava sempre acontecendo com as missões. A aldeia de Nossa Senhora das Neves era uma aldeia iurimágua que teve apenas seu nome trocado; a capela que foi erguida na descida do Padre Fritz já não existia dois anos depois na sua volta. Durante o período em que esteve preso em Belém, nenhum missionário atuou em seu lugar. Além disso, percorrer o Solimões com tantas aldeias era extremamente demorado; note-se que levou três meses e meio para ir da foz do rio Negro até São Joaquim e sem dar muita atenção à maior parte das aldeias. E a escolta que o conduziu de volta já não deixava dúvidas que ele sofreria tenaz combate dos colonos escravocratas portugueses.

Na sua introdução ao Diário do Padre Fritz, Rodolfo Garcia, seguindo de perto um texto do século XVIII conhecido como Noticias Auténticas [7], nos dá uma idéia de como se encerraram as missões jesuíticas espanholas no Solimões. Depois de sua experiência com as pretensões portuguesas em Belém e na subida do rio, o Padre Fritz foi a Lima informar ao Vice-Rei sobre os avanço lusitano sobre o território espanhol e para pedir proteção para sua missão. Mas, toda vez que o missionário falava sobre isso em suas conversas com o Vice-Rei, este respondia evasivamente, dizendo que o continente era bastante grande para conter uns e outros colonizadores e que era preciso dar prioridade à defesa daquelas províncias que produziam mais rendimentos para os cofres reais. E apenas concedeu ao jesuíta uma quantia para equipar suas capelas com sinos e alfaias.

O Padre Fritz retorna ao Solimões, mas as relações com os portugueses continuam complicadas. Em 1697 encontra-se numa aldeia dos aisuares com um capitão e alguns soldados portugueses, acompanhados do provincial do Carmo, Frei Manuel da Esperança, que alegaram ter ido até ali tomar posse daquelas aldeias por ordem do governador e a pedido dos índios. Em 1704, tendo sido nomeado superior de todas as missões, ele se retira do Solimões. Em 1709, o capitão português Ignacio Correa notifica ao Padre Juan Baptista Sanna, missionário entre os omáguas, que se retire com os outros missionários do rio Marañón e Napo porque aquelas terra pertencem a Portugal desde o porto de Santa Rosa. Os missionários se retiram. Mas uma tropa de Quito derrota os portugueses e aprisiona Ignacio Correa. Em 1710, uma expedição portuguesa de 21 canoas, 130 soldados e 300 índios sob o comando de José Antunes da Fonseca depreda as aldeias omáguas e aprisiona 15 espanhóis inclusive o Padre Sanna. Esses choques e ameaças fizeram com que os iurimáguas, aisuaris e ibanomas fossem estimulados a se recolherem em São Joaquim, que por sua vez acabou por ser transferida ainda mais para cima.

O quarto e o quinto capítulos do livro que Anthony Stocks [8] escreveu sobre os cocamillas do rio Huallaga, afluente do Marañón, constituem um interessante histórico das missões que atuaram no período colonial no norte da atual Amazônia peruana, restringindo-se obviamente à área mais próxima do grupo étnico estudado. Neles podemos saber que a situação nas missões se estabiliza por volta de 1682, mas com uma população indígena bastante reduzida, após epidemias, transferências, levantes, punições exemplares. A sede religiosa das missões era em Lagunas, no baixo Huallaga, enquanto a sede do governo secular estava em Borja, no rio Marañón. Tanto uma quanto outra estavam sob suas respectivas jurisdições sediadas em Quito, local então de difícil acesso: pelo rio Napo era muito longo, pois este desembocava bem abaixo tanto de Borja quanto de Lagunas; pelo rio Santiago o trajeto era mais curto, mas logo abaixo de sua foz estava a inevitável passagem pelo perigoso pongo (corredeira) de Manseriche, no rio Marañón. Essa região era conhecida como as Missões de Mainas. Esse povo indígena, conhecido desde o final do século XVI, foi dividido em 24 encomiendas, na única ocorrência de aplicação desse sistema na região. A encomienda, comum nos Andes, consistia na entrega, pelo governo espanhol, de um certo número de índios a um colono, que teria a obrigação de providenciar a sua catequese, a troco de que eles deveriam pagar-lhe com seu trabalho. Em 1635 os mainas se revoltaram, mataram todos os encomenderos e soldados dispersos e atacaram Borba. A repressão aos mainas foi terrível, com enforcamentos, esquartejamentos, mutilações, sendo o açoite o menor dos castigos (pp. 54-55). Os poucos que restaram parece que deixaram de existir como grupo étnico distinto.

A missão do Padre Fritz estava na jurisdição de Salinas. Quando os portugueses começaram a escravizar os índios do Solimões, alguns iurimáguas e aisuares foram levados em 1709 para o Huallaga e em 1712 o Padre José Ximenes assentou cinqüenta famílias iurimáguas na confluência do Paranapura com o Huallaga, fundando a missão de Nossa Senhora das Neves, o mesmo nome que o Padre Fritz tinha dado à aldeia iurimágua onde erigiu uma capela no Solimões. Essa missão foi a origem da atual cidade peruana de Yurimaguas. Os omáguas, por sua vez, reduzidos a pequenos grupos pelos escravizadores e pelas enfermidades, foram assentados em 1726 em São Joaquim (o mesmo nome que o Padre Fritz tinha dado à sede de sua missão), perto da foz do Ucayali. Em 1731, os omáguas, junto com representantes de mais onze etnias, aí somavam 522 pessoas (Stocks, p. 75).

No Solimões, de que os portugueses terminaram por se apossar, a população indígena que se estendia ao longo do rio de modo quase contínuo, como mostraram os primeiros cronistas, se reduziu a umas poucas missões, dirigidas por carmelitas, separadas por grandes distâncias desabitadas, como indica o texto de la Condamine, abaixo comentado. A subida do rio pelo Padre Fritz em 1691, já referida, mostra que, até aquela data, não havia missionários portugueses no Solimões. Mas em 1697 ele encontra com o carmelita Frei Manuel da Esperança numa aldeia dos aisuares (em cujo trecho de ocupação desembocava o Juruá), que tinha ido até ali para tomar posse daquelas aldeias por ordem do governador do Estado do Maranhão e Grão-Pará. Deve datar dessa época o início da formação de aldeamentos carmelitas, onde iam sendo concentrados pouco a pouco índios de diferentes etnias.

O trabalho indígena

Quando começam a se instalar as missões carmelitas, um conjunto de leis régias [9], assinadas nas duas últimas décadas do século XVII, disciplinavam as relações com os índios, e vigorariam até o meio do século seguinte. Essas leis quase nada dizem de religião, mas sim de trabalho a que os índios estavam obrigados.

A Lei de 1° de abril de 1680 proibia qualquer tipo de escravização de índios e estabelecia punições para aqueles que a desobedecessem. Mesmo índios aprisionados em guerra não seriam escravizados, mas encaminhados a aldeamentos missionários. Ao invés de escravos índios deveriam ser importados pelo Estado do Maranhão e Grão-Pará de 500 a 600 escravos negros por ano. Os índios dos aldeamentos seriam divididos em três partes: uma ficaria cuidando das atividades de subsistência; outra serviria aos colonos; e a terceira auxiliaria os missionários. Essa repartição seria feita pelo bispo, pelo prelado de Santo Antônio e por uma pessoa eleita pela Câmara. As aldeias dos índios já convertidos ao Catolicismo seriam governadas pelos párocos e seus principais (líderes indígenas). As missões ao sertão e os aldeamentos dos convertidos seriam da competência dos jesuítas, exceto aqueles que já estivessem administrados por religiosos de outras ordens antes da chegada do bispo ao Estado. Os índios repartidos para servir aos colonos deveriam fazê-lo por dois meses, devendo o seu pagamento ser depositado previamente. Os índios que viviam em lugares remotos e não quisessem descer para os aldeamentos deveriam receber missionários em suas próprias aldeias. Ainda recomendava criar um seminário de noviços no Colégio do Maranhão para sujeitos aptos, práticos na língua (geral?) e afeitos ao clima continuarem ou completarem sua formação.

O Regimento das Missões do Estado do Maranhão e do Pará de 1° de dezembro de 1686 atendia a reivindicações dos colonos que, revoltados em 1684, haviam até expulsado os jesuítas (revolta de Manuel Bequimão). Essa lei confirmava os jesuítas (e também os padres de Santo Antônio, naquelas aldeias que lhes cabiam) na direção dos aldeamentos, entregando-lhes também a administração temporal. Criava o cargo de procurador dos índios, devendo haver dois em São Luís e um em Belém. Proibia a não-índios morarem nos aldeamentos. Dispunha para que pessoas de má fé não induzissem índios a se casarem com seus escravos, de modo a lhes gerar prole escrava, e estabelecia punições para aqueles que induzissem mulheres indígenas ao adultério. Recomendava aos missionários povoarem as aldeias, de modo a atenderem à segurança do Estado e colocar os índios descidos em aldeias que favorecessem tanto aos assim transferidos como ao serviço para os colonos. Recomendava o estabelecimento de preços adequados para o serviço dos índios, para os produtos florestais que extraíam e para as mercadorias que compravam. Só a metade do salário por seus serviços seria paga adiantadamente, sendo a outra entregue no final. Determinava que os índios para serviço aos colonos fossem matriculados em livros, desde 13 até os 50 anos de idade. Devido às grandes distâncias a serem percorridas pelos trabalhadores indígenas recrutados, modificava o tempo de serviço de dois meses para quatro no Maranhão (podendo ser de seis caso fosse conveniente) e seis no Pará. A mudança do tempo de serviço também levava à modificação da repartição dos índios aldeados, agora em duas partes para os casos em que o serviço fosse de seis meses. Essa nova maneira de repartir tirava dos jesuítas a terça parte dos habitantes dos aldeamentos; em compensação, os jesuítas de São Luís teriam direito exclusivo aos serviços da aldeia de Pinaré (do rio Pindaré), que não a eximia de fornecer um guia a cada canoa de colonos que subisse o rio em busca de cravos, e os de Belém, da aldeia do Gonçary. Outras aldeias seriam descidas para perto das concedidas aos jesuítas para compensar os colonos por essa perda. As residências de jesuítas que estivessem a menos de trinta léguas dessas cidades receberiam do governador 25 índios. A repartição dos índios seria presidida pelo governador ou seu substituto e duas pessoa eleitas pela Câmara com o parecer e assistência do superior das missões e párocos das aldeias que estiverem presentes. Dada a falta de índios nas aldeias sujeitas à repartição, os colonos só receberiam delas metade dos índios que necessitassem para remar as canoas, devendo procurar os demais em outras aldeias, pagando-lhes salário, serviço que os indígenas não deveriam recusar sem justa causa. Dispunha também que as índias farinheiras e de leite só fossem entregues a pessoas que reconhecidamente velassem pelo seu bem estar temporal e espiritual e pela sua honestidade sem abusar do tempo pelo qual elas lhes eram concedidas. Recomendava que as aldeias não fossem pequenas e dispersas, pois dificultaria o atendimento religioso, devendo ter 150 vizinhos; não se deveriam manter juntos representantes de povos inimigos, devendo-se separá-los dentro do mesmo distrito. Não deveria ser exigido serviço dos índios descidos nos primeiros dois anos, de modo a permitir-lhes se acomodar à nova situação e plantarem suas roças.

O Alvará de 28 de abril de 1688 voltava a permitir a escravização dos índios da corda, isto é, daqueles supostamente destinados ao sacrifício antropofágico e "resgatados" pelas expedições dos colonos. E também aqueles aprisionados em guerra.

A Carta Régia de 29 de novembro de 1794 dividiu a administração dos aldeamentos missionários por diferentes ordens religiosas. Aos jesuítas coube a região ao sul do rio Amazonas, desde o Tocantins até o rio Madeira. Aos capuchinhos, a margem norte, desde o Amapá até o Trombetas. Os mercedários ficariam com a área entre o rio Trombetas e o Urubu. E os carmelitas teriam as bacias dos rios Negro e Solimões [10].

Os poucos aldeamentos carmelitas do Solimões devem ter pautado sua vida durante a primeira metade do século XVIII por essas disposições legais. Dos produtos normalmente arrolados como amazônicos no período colonial, com quais deles contribuiriam os aldeamentos do Solimões? A Amazônia produzia cacau, tanto silvestre quanto cultivado. Produzia cravo. Também café, introduzido na colônia portuguesa por Francisco de Melo Palheta (aquele que fizera parte da escolta que levou o Padre Fritz rio acima), que conseguira as sementes na Guiana Francesa, versão da qual Arthur Cezar Ferreira Reis [11] discorda e atribui esse feito a Francisco Xavier Botero. Extraía-se também o cravo, a salsaparrilha. Esses produtos florestais extraídos eram conhecidos como "drogas do sertão". Dos produtos de origem animal havia a manteiga de ovos de tartaruga, a carne de peixe-boi, o peixe. Além disso, as embarcações que percorriam os rios amazônicos para cima e para baixo eram impulsionadas por remeiros indígenas. Os viajantes que serão abaixo comentados nos darão alguma idéia dos produtos e serviços indígenas do Solimões. La Condamine faz referência a cacau; a correspondência transcrita por Alexandre Rodrigues Ferreira mostra que quase todos os grupos muras que se aproximavam dos portugueses para fazer a paz traziam uma certa quantidade de salsaparrilha; Spix viu coleta de ovos de tartaruga; Martius viu morador do Solimões a colher salsaparrilha no Japurá; Bates conversou com um comerciante do rio Tonantins, da etnia juri, que negociava com salsaparrilha; e todos até Bates foram deslocados em suas embarcações pela força dos remeiros indígenas.

No lado espanhol, nas Missões de Mainas também havia uma produção indígena. Nesses aldeamentos os nativos não estavam sujeitos ao regime de encomienda. E estavam isentos de tributos diretos ao rei porque os produtos que tiravam da terra não tinham tanto valor que justificasse transportá-los até os Andes e subi-los; além disso, estavam a serviço da Igreja e serviam aos espanhóis na milícia. Os índios retribuíam os serviços religiosos do missionário com gêneros agrícolas e caça. Também coletavam cera branca, baunilha e resinas, que eram levadas a Quito, onde se trocavam por paramentos, farinha e vinho de missa, e ainda instrumentos de ferro. Em Lamas e Moyobamba, no rio Mayo, afluente da margem esquerda do Huallaga, buscavam venenos de pesca, tecidos de algodão e mosquiteiros [12].

La Condamine

Na primeira metade do século XVIII discutia-se se a Terra era perfeitamente esférica ou achatada nos pólos. Para resolver a dúvida, a França, por intermédio de sua Academia de Ciências, promoveu três expedições para observar a curvatura na Terra: uma dirigiu-se a Quito, na América do Sul, para fazer medições na altura da linha do equador; outra foi para a Lapônia, no norte da Europa, para realizar a mesma tarefa na altura do círculo polar; e ainda outra, para tomar medidas numa latitude intermediária, foi para o sul da África.

Em 1735 foram enviados para a América do Sul Charles-Marie La Condamine, Louis Godin e Pierre Bourguer, numa equipe com mais alguns técnicos auxiliares. Como as medições se fariam em terra então pertencentes à Espanha, dois oficiais da marinha deste país acompanharam os trabalhos da expedição. Nas extremidades de um segmento de três graus de meridiano, Bourguer nas vizinhanças de Quito e La Condamine ao sul de Cuenca deram os trabalhos como terminados em 1743.

La Condamine [13], ao invés de retornar à França pelo mar, acompanhando o litoral do Pacífico e cruzando o istmo de Panamá, resolveu, diferentemente de seus companheiros, fazer um outro caminho de volta, descendo o rio Amazonas, aproveitando a oportunidade para cartografá-lo.

Não chegou ao Amazonas pelo Napo. Desceu os Andes por um outro caminho, alcançando o rio Marañón acima do pongo (corredeira) de Manseriche. Desceu-o numa balsa, chegando a Borja, a sede das missões espanholas na região. Daí continuou descendo, subiu um pouco do rio Huallaga, chegando a Salinas, principal missão de Mainas.

Voltou a descer e, no trecho entre as bocas do Ucayali e do Napo, aportou na missão de São Joaquim, habitada por índios de várias nações, mas sobretudo de omáguas. La Condamine, que se interessava mais pelos fenômenos da natureza, não se ocupa muito dos seres humanos. Não enumera os outros povos indígenas da missão. E dos omáguas, além de dizer que também eram conhecidos por cambebas ou cabeças chatas (devido ao costume já descrito por autores anteriores), prefere falar dos vegetais que usavam. Refere-se a duas plantas purgativas, o floripôndio e a curupa. O primeiro também provocava visões. Diz ainda que os portugueses aprenderam com os omáguas a fazer seringas de caucho; e comenta a impermeabilidade e elasticidade desse látex (pp. 70-72). La Condamine será um divulgador das virtudes da borracha na Europa.

Continuando a descer, alcançou a foz do rio Napo. Aí, na noite de 31 de julho para 1° de agosto fez algo muito importante: posicionado em uma ilha diante da foz, determinou a longitude do local. Fez isso observando o momento em que o primeiro satélite de Júpiter saía de trás desse planeta, o que fez com uma luneta de 18 pés (seis metros). Marcou a hora local com a observação da posição de duas estrelas. Estabeleceu uma relação entre as três observações com um relógio de precisão que trazia. Este deveria funcionar mais como um cronômetro; infelizmente não o descreve, decerto muito diferente de qualquer aparelho medidor do tempo atual. Com isso dispensou-se de dar corda e regular o pêndulo, que também trazia, mas que seria uma tarefa muito mais demorada. Se alguém em Paris (ou em outro lugar) estivesse fazendo as mesmas observações e as anotasse como ele, seria possível saber a diferença de horas entre esses dois locais e, portanto, a longitude. Achou quatro horas e três quartos de diferença entre os meridianos de Paris e da foz do Napo (p. 73). Certamente a conclusão do cálculo foi feita após ter retornado à capital francesa.

Voltou a descer o rio, passou em Pebas, que era a última das missões espanholas. Continuou descendo, entrou em águas de domínio português, alcançando a missão que então era o posto lusitano mais ocidental: São Paulo de Olivença. Por conseguinte, em 1743 não existia Loreto nem Tabatinga e muito menos Letícia. A passagem da fronteira leva La Condamine a comparar a pobreza das missões espanholas, com um maior conforto que encontrou nas missões portuguesas, o que se devia ao fato de ser muito mais fácil a estas últimas fazerem suas trocas comerciais com Belém, na foz do rio, do que àquelas com Quito nos Andes. Diz ele (pp. 76-77):

Em São Paulo começamos a ver, em lugar de casas e igrejas de bambu, capelas e presbitérios de pedra, de terra e tijolo, e muros alvejados com asseio. Fomos ainda agradavelmente surpreendidos por ver, no meio daqueles desertos, camisas de pano de Bretanha sobre todas as mulheres índias, malas com fechaduras e chaves de ferro em suas casas, e por achar aí agulhas e pequenos espelhos, facas, tesouras, pentes, e diversos outros utensílios da Europa, que os índios obtêm todos os anos no Pará, nas viagens que fazem até lá para levar o ‘cacau’, que eles colhem sem nenhuma cultura pelas margens do rio. O comércio com o Pará dá a estes índios e a seus missionários um ar de conforto que logo distingue as missões portuguesas das outras castelhanas do alto Maranhão [Marañón], nas quais tudo se ressente da impossibilidade em que vivem os missionários da Coroa de Espanha de conseguir qualquer dos cômodos da vida, não tendo nenhum comércio com os portugueses, seus vizinhos, rio abaixo: eles tudo procuram em Quito, aonde enviam gente uma vez por ano, e donde estão mais separados pela cordilheira do que estariam se houvesse um mar de mil léguas.

Certamente La Condamine se referia não somente a São Paulo de Olivença, mas a outras missões que seguiam rio abaixo: Iviratua, Tracuatua, Paraguari, Tefé e Coari, todas dos carmelitas como aquela.

Também vale notar que, ao descrever seu trajeto entre Pebas e São Paulo de Olivença, não faz nenhuma referência a habitantes indígenas. Entretanto, já no fim do livro, quando narra suas experiências em Caiena, na Guiana Francesa, e em Leiden, na Holanda, para testar a eficiência do curare para matar e do açúcar como antídoto, afirma que usou o veneno fabricado pelos ticunas. Diz ele (pp. 122-123):

Durante minha estada em Caiena, tive a curiosidade de experimentar se o veneno das flechas ervadas, que eu guardara havia mais de um ano, conservaria ainda a sua atividade; e ao mesmo tempo se o açúcar era efetivamente o seu antídoto, tão eficaz como me haviam dito. Uma e outra experiência foram feitas na presença do comandante da colônia, de vários oficiais da guarnição, e do médico do rei. Uma galinha ligeiramente ferida, soprando-lhe eu por uma sarbacana uma flechazinha envenenada havia pelo menos treze meses, viveu meio quarto de hora; outra, picada na asa com uma dessas mesmas flechas novamente mergulhada na poção diluída em água, e retirada a flecha imediatamente da chaga, pareceu abater-se um minuto após, e logo seguiram as convulsões, e apesar de que lhe fizemos devorar açúcar, veio a expirar. Uma terceira, picada com a mesma flecha remergulhada na droga, havendo sido socorrida imediatamente com o mesmo contraveneno, não mostrou o menor sinal de mal-estar. Refiz as mesmas experiências em Leide, na presença de vários célebres professores da mesma universidade no dia 23 de janeiro deste [1745]. O veneno, cuja violência deve ter sido atenuada pela idade e pelo frio, não agiu senão cinco ou seis minutos depois; mas o açúcar foi dado sem sucesso. A galinha que o tinha engolido viveu somente um pouco mais que a outra. A experiência não foi repetida. Esse veneno é um extrato feito por meio do fogo, do suco de diversas plantas, e particularmente de certos cipós. Asseguram que entram mais de trinta espécies de ervas e raízes no veneno feito pelos ticunas, que é aquele que experimentei, e que é o mais estimado entre os diversos conhecidos ao longo do rio Amazonas. Os índios o compõem sempre da mesma maneira, e seguem sem discrepar o processo que aprenderam de seus antepassados, tão escrupulosamente quanto os farmacêuticos entre nós para a composição da teriaga de Andrômaco, sem omitir o menor ingrediente prescrito; sem embargo de que provavelmente essa grande multiplicidade não seja necessária no veneno índio, como no antídoto da Europa.

La Condamine não era um cientista como os de nosso tempo, especializado. Interessava-se pelos temas mais diversos. Era um naturalista. Além dos problemas já apontados, fez experiências para medir a velocidade do som, uma vez que das montanhas de Curu (Kourou) se podia ver o fogo e ouvir o atroar do canhão do forte de Caiena, situado a dez léguas de distância; podia ainda comparar os resultados aí obtidos com os conseguidos com a mesma experiência em Quito, de clima diferente (p. 121). Além da longitude da foz do Napo, também calculou a de Belém (valendo-se duas vezes da ocultação do primeiro satélite de Júpiter atrás do planeta e ainda do eclipse da Lua de 1° de novembro de 1743) e a de Caiena (pp. 112 e 121). Quanto à latitude, determinou as de inúmeros lugares, assim como calculou geometricamente larguras de trechos do Amazonas e de fozes de rios que nele desembocam. Fez experiências com o pêndulo em Belém e comparou resultados com os obtidos nos testes feitos em Quito e na montanha do vulcão Pichincha (p. 112-113). Lamentou não poder observar em terra o cometa que apareceu quando estava em viagem de Belém para Caiena (p. 115). Em Caiena fez testes relativos à multiplicação dos grandes polvos do mar, mas, devido a uma moléstia, não as prosseguiu (p. 123).

Uma das preocupações de La Condamine que certamente teria sido de mais interesse para os indígenas da época era sobre como debelar a varíola. A vacina contra essa moléstia ainda não tinha sido descoberta. Ele teve de atrasar sua saída de Belém para Caiena por não ser possível conseguir uma equipe de remadores para a embarcação que o levaria. Os remadores eram recrutados entre os indígenas e estes fugiam da cidade, refugiando-se nas aldeias das vizinhanças devido a uma epidemia de bexigas ou varíola. Lembra então La Condamine da varíola artificial ou por inoculação, um recurso que quinze anos antes um missionário carmelita dos arredores de Belém tinha aprendido numa gazeta européia. Depois de morrerem metade dos índios que estavam sob sua direção num surto de varíola, inoculou os ainda não contaminados e nenhum deles contraiu a doença. Um missionário do rio Negro seguiu seu exemplo com muito sucesso. Espantava-se La Condamine que durante a epidemia de varíola de 1743 até sua partida ninguém ainda tomara a iniciativa de aplicar a inoculação. E ironiza: "É bem verdade que ainda não tinha morrido metade dos índios" (pp. 113-115). Diz Basílio de Magalhães, em seu prefácio à tradução do livro de La Condamine, que este, em escritos que se estenderam por vinte anos (1754-1773), revelou o mais vivo interesse na profilaxia da varíola (p. 25). Nessa época várias pessoas deviam de estar à procura de alguma solução para a varíola. Por exemplo, no já referido livro de Stocks (p. 77) consta que, nas epidemias de varíola de 1757-1758 ou 1761-1762 que assolaram o vale do Huallaga, os índios chamicuros foram imunizados por meio de um preparo com material pustuloso pelo Padre Esquini. Mas a verdadeira vacina contra a varíola só viria a ser finalmente descoberta em 1796 pelo inglês Edward Jenner. As chamadas inoculações que a precederam se faziam com o pus das feridas de pessoas afetadas por uma forma branda de varíola. Se às vezes alcançavam a imunização desejada, por outras provocavam a forma mais grave da moléstia nas pessoas em que eram aplicadas, que se tornavam novos focos de contaminação. Já a vacina de Jenner usava como fonte de material uma outra varíola, que tem origem no gado bovino e que afeta os seres humanos de forma muito branda, apenas uma ligeira febre. Por causa de sua origem, o nome dessa nova forma de prevenir a doença recebeu o nome de "vacina", derivada da palavra "vaca".

Nota-se no livro de La Condamine um problema que vai perdurar até a segunda metade do século XIX. Os europeus conheciam as cabeceiras, nos Andes ou próximas a eles, de vários rios que corriam para o Amazonas, e conheciam muitas fozes de tributários no próprio Amazonas; mas nada sabiam do curso médio desses rios. Isso faz com que, na tentativa de explicar como o Orenoco se comunicava com o Amazonas, uma vez que já se tinham vagas notícias dessa passagem e até exemplos de missionários do Orenoco que haviam chegado à foz do rio Negro, La Condamine faça uma curiosa suposição. Imagina que o rio Caquetá, que tinha seu curso superior andino conhecido, ao passar por essa área intermediária desconhecida, se dividiria em três ramos: um desembocaria no Solimões como Japurá; outro iria se juntar ao mesmo rio mais abaixo como Negro; e o restante rumaria para o oceano como Orenoco (p. 91). Certamente faltavam aos escravizadores de índios, remeiros indígenas, missionários, formação suficiente para cartografar os trechos que já conheciam; por outro lado, aqueles que dispunham dessa formação, como La Condamine, não conheciam pessoalmente esses trechos para fazê-lo.

No que tange ao alto Solimões, ainda interessa uma informação constante de uma carta dirigida por Godin de Odonais a La Condamine, incluída no apêndice do volume. Contando a subida do rio por um emissário seu, refere-se à existência das povoações de Loreto e de Tabatinga em 1766, que ainda não existiam quando La Condamine por ali passou em 1743 e nem quando Odonais fez o mesmo em 1749 (pp. 184-185). A primeira, espanhola, estava abaixo de Pebas; a segunda, portuguesa, estava acima de São Paulo de Olivença.

Tratados de Madri, do Pardo e de Santo Ildefonso

Em meados do século XVIII as relações entre Portugal e Espanha eram boas; D. João V, rei de Portugal, era sogro de Fernando VI, rei de Espanha. Foi em clima de boa vontade que as duas metrópoles resolveram rever os limites entre suas colônias sul-americanas, que não mais obedeciam ao disposto no antigo Tratado de Tordesilhas.

Assim, as duas monarquias assinaram em 13 de janeiro de 1750 o Tratado de Madri [14]. Esse tratado estabelecia que a cada qual caberia o território que efetivamente tivesse ocupado. Estipulava também que, ao invés de uma linha somente perceptível por mensurações e complexos cálculos astronômicos e matemáticos, se escolheriam preferencialmente rios, serras ou montes para marcar os limites, desse modo mais imediatamente visíveis. E ainda, que os rios que serviriam de limites poderiam ser navegados por embarcações tanto portuguesas quanto espanholas, mas os rios que tivessem ambas as margens controladas pela mesma potência só por esta poderiam ser navegados.

Era preciso, portanto, fazer um reconhecimento das cidades, vilas, povoados portugueses e espanhóis e dos acidentes geográficos mais adequados para marcar a fronteira. Para tanto, cada potência deveria designar duas comissões, uma para os limites do norte, amazônicos, e outra para os limites do sul. Aqui nos interessam apenas as comissões encarregadas dos limites do norte. Para dirigir a comissão portuguesa foi nomeado o governador do Estado do Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, irmão do Marquês de Pombal (Sebastião José de Carvalho e Melo). Este era quem governava Portugal de fato, pois era o ministro do rei D. José, sucessor de D. João V, que morrera no mesmo ano da assinatura do Tratado de Madri. Francisco Xavier de Mendonça Furtado partiu de Belém para o rio Negro em 1754 com 796 pessoas em 25 embarcações. Escolheu como residência a aldeia de Mariuá, mais tarde chamada Barcelos, e mandou construir aposentos para abrigar a comissão espanhola. Esta era mais numerosa e dirigida por José de Iturriaga; vinda da Espanha, chegara ao Orenoco no mesmo ano, subindo-o. Em 1756 fundou San Fernando de Atabapo, como base de operações. Mas a partir daí achou tão difícil o caminho que só alcançará Barcelos em 1758, quando Mendonça Furtado é afastado da direção da comissão portuguesa, o que motivou os espanhóis a retornarem.

A boa vontade entre os dois reinos não era unanimidade entre os súditos dos reis que presidiram à assinatura do tratado. As comissões encarregadas da demarcação dos limites procuravam consolidar e expandir seus territórios antes de diplomaticamente se encontrarem. Assim, apesar da instalação da capitania de São José do Javari, devendo a capital do Solimões se assentar próximo dos limites ocidentais (o que deve ter motivado a criação da povoação de São José do Javari), Mendonça Furtado prefere situar a sede no rio Negro, donde os espanhóis estavam mais afastados, permitindo-lhe maior expansão. No seu tempo, foram fundados o forte de Marabitanas no rio Negro e o de São Joaquim, na confluência dos rios Uraricoera e Tacutu, formadores do Branco.

Porém o Tratado de Madri tinha uma cláusula que tornou problemática sua aplicação no sul. Como a Espanha não queria que Portugal tivesse direito à navegação do rio da Prata, o tratado estipulava que Portugal lhe entregaria a Colônia do Sacramento, que se erguia em frente a Buenos Aires, na outra margem desse estuário. Em troca, a Espanha lhe entregava os sete povos das missões jesuíticas situadas na parte oriental da bacia do rio Uruguai, fundadas entre 1687 e 1707: São Nicolau, São Miguel, São Luís Gonzaga, São Borja, São Lourenço, São João e Santo Ângelo. Entretanto, os índios guaranis que aí habitavam não quiseram ser transferidos e, resistindo, foram atacados tanto por espanhóis como por portugueses. Foi a chamada "Guerra Guaranítica", que teve lugar em 1756. Os portugueses se apossaram das missões, mas não devolveram aos espanhóis a Colônia do Sacramento. Esse conflito foi um dos motivos da expulsão dos jesuítas dos domínios portugueses e da anulação do próprio Tratado de Madri. Com o falecimento do rei da Espanha Fernando VI, subiu ao trono Carlos III, que havia muito tempo discordava desse tratado e concorreu para anulá-lo em 1761 pelo Tratado do Pardo.

Uma guerra na Europa que colocou Portugal e Espanha em lados opostos concorreu para choque de forças no sul, fazendo a linha de fronteira se modificar bastante. Mas em 1777, tendo morrido o rei D. José com o conseqüente afastamento do Marquês do Pombal do poder, Portugal e Espanha assinam um novo tratado, o de Santo Ildefonso. Esse tratado se pautava pelos mesmos princípios do de Madri. Só que agora, para efeitos de demarcação, a fronteira estava dividida em quatro trechos, cada qual ao encargo de duas comissões, uma de cada reino. Os trechos de interesse para a Amazônia eram aquele que ia do rio Jauru ao Japurá e o que ia do Japurá ao Negro.

No Solimões compareceu a comissão espanhola dirigida por Francisco Requena, que entrou em contato com o representante português Chermont. A margem esquerda do Solimões deveria de ser espanhola, desde a boca do Javari até a boca mais ocidental do Japurá. A identificação da boca do Japurá que estaria mais a oeste gerou muitas discordâncias, dificultada pela presença de furos e paranás e nunca foi decidida. A guarnição portuguesa de Tabatinga estava bem a oeste de qualquer que fosse a foz mais ocidental do Japurá e, portanto, em terras que caberiam à Espanha. Entretanto, quando Francisco Requena pediu a entrega de Tabatinga, Chermont não quis assumir a responsabilidade de fazê-lo e deixou a decisão para seu superior João Pereira Caldas, governador da Capitania de São José do Rio Negro. Este declarou que só entregaria Tabatinga se os espanhóis lhe dessem em troca São Carlos, no alto rio Negro, um forte fundado pela comissão espanhola encarregada da aplicação do Tratado de Madri. Enfim, a questão não teve solução formal pelo resto do período colonial, ficando a cargo dos novos Estados independentes que surgiram no início do século XIX resolvê-la.

O Diretório dos Índios

O Marquês de Pombal era um "déspota esclarecido", expressão com que vieram a ser chamados vários governantes europeus de seu tempo. "Déspota" porque mantinha o regime absolutista; "esclarecido" porque fazia algumas concessões a teses liberais da filosofia iluminista do século XVIII. As novas medidas legais referentes aos indígenas postas em vigor no tempo do rei de quem era ministro, D. José I, eram influenciadas pelas idéias iluministas. Mas, por outro lado, pareciam decorrer também da necessidade de as colônias portuguesas da América (o Estado do Brasil e o Estado do Grão Pará e Maranhão) mostrarem-se mais coesas frente às espanholas, dada a presença das comissões de demarcação de limites conforme os princípios ajustados pelo Tratado de Madri. Além disso, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador do Estado do Grão-Pará e Maranhão, queixava-se a seu irmão, que era o próprio Marquês de Pombal, do excessivo poder dos missionários nos aldeamentos, que ignoravam as autoridades, mantinham os índios afastados dos núcleos coloniais e insistiam em manter a língua geral, ao invés da portuguesa.

Diante dessa situação, uma série medidas legais [15] foram assinadas pelo rei. Uma delas foi o Alvará de Lei de 4 de abril de 1755, que determinava que os vassalos da Coroa portuguesa que se casassem com indígenas não ficariam com infâmia alguma; pelo contrário, teriam preferência para conservarem as terras em que se estabelecessem e estariam habilitados a quaisquer empregos, honras e dignidades, bem como a sua descendência; deveriam ser punidos todos aqueles que aplicassem aos mestiços qualquer denominação injuriosa, como a de "caboclo".

Outra foi a Lei de 6 de junho de 1755, que reconhece a liberdade dos índios, com exceção daqueles que fossem oriundos de pretas escravas. Mas mesmo neste último caso seriam livres aqueles que já se achassem reputados como índios. Dispunha sobre salários suficientes para os índios se alimentarem e se vestirem de modo condizente a suas profissões. Determinava que as aldeias que tivessem uma população indígena de tamanho adequado fossem transformadas em vilas, repartindo-se as terras adjacentes para gozo de seus habitantes e herdeiros. Na impossibilidade de fazer descer índios que vivessem em lugares remotos, deveriam ser aldeados e catequizados em seu próprio ambiente, estimulados a cultivar a terra e manter relações comerciais com o restante da colônia.

Já no dia seguinte, 7 de junho de 1755, era expedido o Alvará que retirava dos missionários o poder temporal que exerciam nos aldeamentos indígenas, mantendo apenas o espiritual. Determinava ainda que, para juízes ordinários, vereadores e oficiais de justiça das vilas, fossem designados preferencialmente índios naturais delas ou de seus distritos, quando julgados idôneos para esses cargos. As aldeias independentes das vilas deveriam ser dirigidas pelos seus próprios principais, secundados por sargentos-mores, capitães, alferes e meirinhos também a elas pertencentes.

Francisco Xavier de Mendonça Furtado, diante dessas novas leis que chegavam de Lisboa, e também daquelas disposições legais antigas que não tinham sido por elas revogadas, divulgou-as, detalhou-as e complementou-as, redigindo o Diretório que se deve observar nas povoações dos índios do Pará, e Maranhão, enquanto Sua Majestade não mandar o contrário, que assinou em 3 de maio de 1757 [16].

Além de repetir as determinações do rei, o Diretório, ao longo de seus 95 parágrafos, dispõe sobre a obrigação do ensino da língua portuguesa; a instalação de escolas públicas para meninos e meninas nas vilas e aldeias; a obrigatoriedade de honrar os índios que ocupassem os cargos públicos, oferecendo-lhes assento e não lhes impondo atividades não condizentes, como a de remeiros; a proibição de chamá-los de negros; a atribuição de sobrenomes aos indivíduos indígenas; a modificação das moradias indígenas em casas semelhantes às portuguesas, com divisões internas; o combate à embriaguez; a necessidade de se cobrirem com vestes. Dado que os indígenas não saberiam como desempenhar inicialmente os cargos da administração portuguesa, cada vila ou aldeia deveria ter um diretor branco, não para governar, mas para orientá-los. Esse diretor deveria averiguar a existência de terras suficientes para uso dos índios; estimular as roças de mandioca, feijão, milho, arroz, algodão, tabaco; assistir os índios nos seus negócios com estranhos à vila ou aldeia; estimular o comércio, inclusive entre aldeias. Para o comércio haveria necessidade da presença de pesos e medidas bem aferidos nas vilas e aldeias. Deveria ser providenciada a construção de prédios condignos para a câmara e a cadeia pública. Os índios teriam a obrigação de pagar o dízimo, como os demais súditos. Além disso, teriam de pagar ao diretor pelos seus serviços de orientação a sexta parte de sua produção agrícola; a sexta parte dos produtos silvestres não comestíveis que coletassem; e a sexta parte dos produtos silvestres comestíveis que vendessem. Brancos que quisessem viver nas vilas e aldeias indígenas poderiam fazê-lo, mas sem prejudicar os direitos dos índios, sem perturbar a ordem da comunidade, sem recusarem-se aos trabalhos manuais, sem romper a prioridade indígena sobre os cargos honoríficos.

A par disso o Diretório mantinha velhas práticas apoiadas em legislação mais antiga: permanecia a repartição dos indígenas de cada vila ou aldeia em duas partes, uma para os trabalhos dos próprios índios e outra para servir aos moradores. Estes deveriam pagar todo o salário dos índios com antecedência; para evitar a deserção do trabalho, o diretor entregaria aos índios a terça parte desse pagamento, guardando o restante num cofre, que lhes seria entregue após a conclusão da tarefa. Os descimentos de índios deveriam continuar, agora não mais a cargo dos missionários, mas pelas autoridades indígenas, estimuladas pelos diretores.

O rei aprovou esse Diretório e o estendeu ao Estado do Brasil [17]. Logo após, pela Lei de 3 de setembro de 1759, expulsa os jesuítas dos domínios portugueses. A brusca retirada do poder temporal dos missionários, a sua substituição pelo exercício de cargos portugueses por indígenas que com eles não estavam familiarizados, o abuso dos diretores, que não se limitaram a sua atribuição legal de orientar, mas exploraram o trabalho indígena (quanto mais os índios produzissem maior seria a sexta parte que cabia aos diretores) tornaram a administração de vilas e aldeias indígenas algo caótico. Por isso, pela Carta Régia de 12 de maio de 1798, o Príncipe Regente D. João (mais tarde Rei D. João VI), aboliu o Diretório. Mantinha, porém, a total liberdade dos índios, proibia os descimentos, premiava os brancos que casassem com índias isentando-os de tarefas públicas. Mas contraditoriamente concedia prêmios a quem reduzisse (atraísse, aldeasse, descesse) qualquer nação indígena.

Haverá textos, publicados ou não, que informem como a aplicação do Diretório se fez no Solimões?

Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio

O ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, intendente geral da capitania de São José do Rio Negro (que corresponde ao atual estado do Amazonas) escreveu três trabalhos com base em suas viagens de inspeção pela capitania realizadas no final do terceiro quartel do século XVIII que são uma das mais importantes fontes de informação sobre aquela época. Não temos à disposição esses trabalhos, mas pudemos consultar a interessante tabela "Mapa dos índios, fogos e de todas as mais circunstâncias que a respeito de cada vila, e lugar de índios na capitania do Rio Negro observou o intendente Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio na correição que delas fez no ano de 177..." que Carlos Moreira Neto reproduz nas pp. 214-215 de seu livro Índios da Amazônia [18].

Como a tabela se refere a toda a capitania de São José do Rio Negro, dela extraímos apenas as linhas correspondentes a localidades do Solimões e, como ela é muito extensa horizontalmente, fizemos um desdobramento em três seções, com adaptações. As localidades não estão nem em ordem alfabética e nem se sucedem por contigüidade geográfica, mas mantivemos a mesma seqüência para não nos perdermos na transcrição dos números. Não temos plena certeza sobre a localização de quatro desses núcleos no Solimões ou imediações (São Fernando, Santo Antônio, São Matias e São Joaquim), mas como na tabela seus nomes estão precedidos e seguidos de outros sem nenhuma dúvida nas margens desse rio, julgamos que também aí estivessem.

A primeira seção apresenta a população indígena por sexo e idade. Vale a pena notar as faixas de idade em que estão distribuídos os indivíduos. A primeira faixa é dos que na tabela original são chamados de "Rapazes índios de 7 anos"; supomos que inclua todas as crianças do sexo masculino até esta idade, pois a coluna da mesma faixa de idade para as mulheres especifica "Raparigas índias até 7 anos". Que razões teriam levado o ouvidor a estabelecer uma faixa dos de mais de 90 anos? Por outro lado é possível que a faixa dos de 15 a 60 anos (para o sexo masculino) e de 15 para 50 (para o feminino) correspondesse àqueles sujeitos ao trabalho compulsório temporário remunerado. A coluna "Administração" é a fusão de seis colunas da tabela original, que discrimina "Principais", "Capitães Mores", "Sargentos Mores", "Capitães", "Ajudantes" e "Alferes", que devem ser indígenas, pois entram na soma dos índios.
Vilas e lugares Índios Índias Total
Adminis-
tração
De 7 anos De 7 a 15 anos De 15 a 60 anos De 60 a 90 anos Mais de 90 anos Total De 7 anos De 7 a 14 anos De 14 a 50 anos De 50 a 90 anos Mais de 90 anos Total
Ega 7 47 31 154 12 1 252 15 35 124 20 3 197 449
Olivença 3 53 52 142 4 - 254 55 31 148 15 - 249 503
Javari 1 13 16 22 2 - 54 10 14 40 2 - 66 120
Arvelos 3 49 34 94 10 - 190 42 43 94 9 - 188 378
Nogueira 8 51 26 112 13 - 210 41 28 104 21 - 194 404
Alvarães 6 40 23 97 13 - 179 31 17 82 18 - 148 327
S. Fernando - 3 11 7 5 1 27 4 8 5 2 - 19 46
S. Antônio 1 18 11 37 8 2 77 17 9 32 6 - 64 141
S. Matias 2 14 8 30 7 - 61 14 5 26 10 - 55 116
S. Joaquim 3 18 23 82 9 3 138 12 19 42 9 4 86 224
Fonte Boa 9 40 22 129 10 - 210 38 11 92 12 - 153 363
C. Avelães 2 9 14 41 10 - 76 15 8 53 10 2 88 164
Tabatinga - 13 4 15 - - 32 15 6 16 3 - 40 72
Total 45 368 275 962 103 7 1760 309 234 858 137 9 1547 3307

A outra seção da tabela mostra em que os indígenas estavam ocupados. Em sua maioria estavam em sua própria vila ou lugar, mas não está claro se tudo que aí faziam era em benefício da subsistência de suas famílias (roças, pescarias, construção de casas) ou de eram também tarefas exigidas pela administração. Por exemplo, numa localidade (Nossa Senhora de Loreto) que não era do Solimões, nessas atividades estão incluídos os "descimentos", que era buscar índios de suas aldeias para os lugares controlados pelos colonizadores. Também não está claro se esta coluna inclui apenas o trabalho masculino. Depois dessa, a coluna que inclui o maior número de indivíduos é a do trabalho nas canoas de negócio, onde certamente os índios eram os remeiros.
Vilas e lugares Índios   Índias
Ausentes No serviço d'El Rei No serviço dos moradores Nas canoas de negócio Ocupados nos seus lugares Ausentes No serviço d'El Rei No serviço dos moradores
Ega - 38 4 25 77 - - -
Olivença 11 15 - 44 77 - - -
Javari 8 1 - 9 11 6 40 2
Arvelos 8 8 2 25 20 8 - 5
Nogueira 3 18 6 24 60 6 - 2
Alvarães 3 6 6 21 65 - - 2
S. Fernando 1 - - - 10 - - -
S. Antônio - - 6 13 24 - - 1
S. Matias - - - 4 33 - - -
S. Joaquim - - - - 9 - - -
Fonte Boa 6 12 2 34 56 - - -
C. Avelães 5 9 1 7 15 2 - -
Tabatinga 11 - - 4 10 12 30 -
Total 56 107 27 210 467 34 70 12

Finalmente, na terceira seção estão as opiniões do ouvidor sobre o estado das localidades e sobre o desempenho dos diretores de índios.
Vilas e lugares Estado em que se acham as igrejas, cadeias, casas de câmara e dos moradores Qualidade e circunstâncias dos diretores
Ega Tudo em bom estado, cadeia não há. Altivo e bom procedimento.
Olivença O mesmo. Negligente e pouco zeloso.
Javari Igreja e casas dos moradores em mediano estado, cadeia não há. De probidade, mas com negligência.
Lugar de Arvelos Tudo em bom estado. É o de Tabatinga.
Nogueira Tudo com asseio. Zeloso e desinteressado.
Alvarães Igreja indecente e as casas dos moradores boas. Dado a interesses e ríspido.
S. Fernando Igreja não há e casas dos moradores andam-se fazendo. Pouco ativo.
Sto. Antônio Igreja por acabar, casas dos moradores menos más. É o de Castro de Avelães.
S. Matias Não há igreja e principiam-se novamente as casas. De bom procedimento.
S. Joaquim O mesmo. O de Santo Antônio.
Fonte Boa Igreja em mau estado e em bom as casas dos moradores. O de São Matias.
Castro de Avelães Tudo em bom estado. Negligente e pouco asseado.
Tabatinga Tudo em estado ordinário. Desinteressado, mas com negligência.

Para bem compreendermos as observações do ouvidor relativas aos diretores de índios parece que temos de dar à expressão "desinteressado" e "dado a interesses" o sentido de, respectivamente, "sem interesse em tirar proveito para si" e "interessado em aproveitar-se daquilo que não lhe pertence". De outro modo, como alguém poderia ser "zeloso e desinteressado"?

Uma palavra deve ser dita sobre a identificação das localidades especificadas nos quadros. Algumas mantêm os mesmos nomes até hoje: Tabatinga, [São Paulo de] Olivença, Fonte Boa, Alvarães. Ega é a atual Tefé; e Nogueira era um lugar que lhe ficava próximo. Lugar de Arvelos (Alvelos) é a atual Coari. Javari era São José do Javari, localidade criada com a intenção de se tornar a sede da capitania, o que não aconteceu e que já estava extinta quando o zoólogo Spix (ver adiante) por ali passou. Castro de Avelãs deve ser a atual Amaturá (a julgar pelos indícios dados pela Corografia Brasílica do Padre Aires de Casal, conforme diremos mais adiante). Santo Antônio, a julgar pelo nome do santo padroeiro, seria Maripi, no rio Juruá, a dez léguas do rio Solimões (p. 336 da mesma Corografia Brasílica) ou talvez Santo Antônio do Içá. Não sabemos localizar São Joaquim, mas, conforme o último quadro, tinha o mesmo diretor de índios de Santo Antônio e de Castro Avelãs. Também ignoramos o local de São Matias, mas, segundo o mesmo quadro, tinha o mesmo diretor de índios de Fonte Boa. Menos ainda sabemos de São Fernando, mas era o lugar de menor população indígena conforme o primeiro quadro.

Os trabalhos do ouvidor Ribeiro de Sampaio constituíram uma fonte informativa muito utilizada, pois, como veremos nas linhas a seguir, Alexandre Rodrigues Ferreira se valeu de seus textos, Spix e Martius o citam, e Bates, cerca de oitenta anos depois, ainda a ele se refere.

Alexandre Rodrigues Ferreira

Os tratados de limites também despertaram no governo português a necessidade de conhecer melhor as terras sob seu domínio na América do Sul, e a longa pesquisa de Alexandre Rodrigues Ferreira certamente foi promovida para atender a esse propósito. Ele nasceu na Bahia em 1756 e estudou na Universidade de Coimbra. Foi encarregado pelo governo português de fazer um estudo da Amazônia, tanto da flora quanto da fauna e também das populações humanas. Sua pesquisa na Amazônia durou de 1783 a 1792 e ficou conhecida como a "Viagem Filosófica" [19]. Acompanhavam-no os desenhistas Joaquim José Codina e José Joaquim Freire e o jardineiro botânico Joaquim do Cabo. Ferreira percorreu a ilha de Marajó, o baixo Tocantins, o rio Negro e finalmente subiu o Madeira, prosseguindo pelo Guaporé até Mato Grosso.

Não subiu o rio Solimões, mas conseguiu que lhe trouxessem desse rio um dos poucos omáguas ou cambebas que ainda tinham a cabeça artificialmente alongada. Sua memória sobre os cambebas foi assinada em Barcelos, então sede do governo da capitania de São José do Rio Negro, e foi para aí certamente que lhe levaram o índio que mandou buscar. O cambeba que foi levado até Alexandre Rodrigues Ferreira chamava-se Dionísio da Cruz e tinha habilidade em carpintaria. Fez diante do pesquisador a palheta que os cambebas usavam para lançar dardos. Também fez o dispositivo de talas de costaneiras de flechas ou canas para dar o formato característico nas cabeças das crianças. Pousou também no ato de lançar dardo com a palheta para que José Joaquim Freire o desenhasse. Contou o cambeba que então somente havia uns vinte de cabeça chata como ele; e os demais, sem essa característica, chegariam a uns cem. Muitos tinham morrido, devido às doenças, às guerras com os ticunas e às longas viagens que faziam como remeiros. Queixou-se de que, apesar das habilidades dos cambebas na tecelagem de panos de algodão e confecção de roupas, não eram dispensados do trabalho de remeiros. Ele próprio, para evitar a sorte de tantos cambebas que adoeciam e morriam nessas viagens, desertou em 1765 de uma expedição que subia os rios na direção de Mato Grosso.

Os dados resultantes do contato com Dionísio da Cruz constituem a parte original dessa memória. De resto ela reproduz informações de autores anteriores, como reconhece o próprio Ferreira. Um deles é Bernardo Ferreira de Berredo, do século XVII, e outro seria o já referido ouvidor e intendente geral Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que redigiu um diário ao fazer a correição da capitania, viagem na qual visitou São Paulo de Olivença em 1774.

Também não consta que Alexandre Rodrigues Ferreira tenha subido o rio Japurá. Como não explicita suas fontes, não se sabe como conseguiu as informações para as suas memórias sobre os índios miranhas. Provavelmente foi de representantes dessa etnia que por uma razão ou outra (quiçá como remeiros) chegaram até Barcelos, tal como o cambeba Dionísio da Cruz. Tanto que Ferreira faz referência a desenhos que retratam esses índios.

Na memória sobre os miranhas, que habitavam a margem esquerda do Solimões, entre o Japurá e o Içá (pp. 91-92), fala nas penas de arara que traziam inclinadas para baixo de ambos os lados do nariz, segundo interpretação dele para incutir terror aos inimigos. Faziam guerra aos seguintes vizinhos, que aprisionavam ou eram por eles aprisionados, sendo em ambos os casos a venda como escravo o destino dos cativos: tabocas, mauás, curacis, iumas, pazes (passés?), cueretus, mucunãas, amaniuarás e outros. Mas o centro do território miranha, onde outros índios não entravam, era o rio Carauini, afluente da margem direita do Japurá, alguns dias acima da cachoeira de Cupati. Descreve um modo peculiar que os miranhas usavam para conservar o peixe (pp. 91-92):

Um costume é notável neste gentio. Como habita em uma paragem muito faminta de peixe, vê-se obrigado a descer abaixo da sobredita cachoeira [de Cupati] para fazer, pela vazante do rio, as suas provisões de peixe seco; fazendo-as porém pela maneira seguinte: — como eles não têm sal que chegue para as suas grandes salgas porque o pouco que tiram pela combustão das plantas, além de não ser da natureza do sal marinho, apenas chega para temperarem o comer. Estendem o peixe inteiro, como o pescam, em uma grelha de pau ao fumo, para lhe dissipar a umidade. Dissipada ela o escamam e o extirpam e cortadas as cabeças a uns poucos os vão unindo a uma figura cilíndrica b, b [letras que se referem a figuras], cingindo-os por fora com a casca dos talos da pacova-sororoca, de maneira que, há cilindro destes que pesa boas 3 arrobas e outras tantas carregam as mulheres.

Uma de suas memórias sobre os índios jurupixunas ou juris (pp. 85-86) quase que se limita à descrição da tatuagem que faziam no rosto, em etapas, conforme iam crescendo em idade, de modo a chegar a cobri-lo todo. A tatuagem era feita com picadas de espinho de pupunheira pulverizadas com as cinzas de suas folhas. Essas diversas etapas foram registradas em desenho pelos auxiliares de Ferreira, pois ele faz referência a diferentes cabeças da tábua I conforme as vai descrevendo. Era a tatuagem que motivava o nome que lhes era aplicado em língua geral, jurupixuna, em que "juru" significa "boca" e "pixuna", "preta".

Habitavam o rio dos Párcos (seria o Puréos do mapa de Spix e Martius ou o Puruê dos mapas do IBGE?) e outros da margem direita do Japurá. Eram muito humildes e, quando vinham habitar em povoações dirigidas pelos brancos, alguns envergonhavam-se de suas tatuagens e tentavam apagá-las. Os outros índios os desprezavam e, quando jurupixunas participavam da equipagem de embarcações com remeiros de outras etnias, faziam nas paradas ranchos separados para comer e dormir.

A outra memória descreve as máscaras e camisetas que faziam os jurupixunas (pp. 41-46), usadas nas suas danças marciais e festivas. Diz Alexandre Rodrigues Ferreira que ele próprio assistiu a uma dessas festas em dezembro de 1785 na povoação de Caldas, na margem oriental da foz do rio dos Cauburé.

Assim ele descreve as máscaras (p. 41):

São duas máscaras inteiras, que na imaginação dos gentios, que as fizeram, representa uma delas a figura de um peixe, e a outra é um mero capricho do seu entusiasmo, sem objeto real a que se possa aplicar. Da casca de algum vime tecem eles primeiramente a forma para cada máscara. Sobre ela vão assentando o pano, que lhes subministra a entrecasca da árvore Caxinduba, depois de sacada do tronco e batida com um tolete, para os dois fins: o de a estenderem e de lhe espremerem a humidade. Ela adquire a consistência do papelão. Pintada a máscara com a ocra, com o urucu e carajuru, fica em termos de servir para o baile. Note-se que, quando ela não cobre a face do mascarado, descendo-lhe até ao pescoço, então da mesma entrecasca, porém mais delicada, fazem a máscara separadamente para a face, golpeando-a aonde é preciso que tenha os olhos e a boca; e sobre a cabeça fica a outra máscara servindo de capacete.

Os motivos para semelhantes bailes são muitos, como logo direi. Por agora, basta que se saiba, que um deles são as caçadas e as pescarias. Se a caçada foi bem sucedida, que eles caçaram, assim é a máscara que fazem para o baile. O festejo por causa de uma boa caçada de porcos, por exemplo, se faz com uma máscara que representa a cabeça de um porco. O da pescaria de algum peixe, com outra máscara, que o representa, e assim por diante.

E assim descreve como obtêm o pano de que são feitas as máscaras, que Ferreira chama de farsas (p. 43); a técnica lembra os atuais tururis dos índios ticunas:

São duas farsas em forma de camisetas, que também as fazem da entrecasca da dita Caxinduba, com a diferença de serem mais largos os panos, que tiram para elas. Para os tirarem mais largos, escolhem os troncos mais grossos. Cortados eles com o comprimento que deve ter a farsa, fazem-lhes na casca uma incisão longitudinal, introduzindo-lhes por entre os dois lábios da incisão, uma cunha de madeira, em ordem a despegarem do tronco a casca, que está unida a ele. Porém a casca exterior é guarnecida de uma epiderme, ou ainda verde ou já lenhosa, a qual também a separam da entrecasca mais branca e interior. Com esta vestem o tronco, que já está despido; servindo-se desta disposição, para se lhes facilitar a operação de baterem o pano; batem-no, até ele escorrer a humanidade [sic, deve ser "umidade"], que têm, e até chegar a adquirir as dimensões do comprimento e da largura precisa para a execução da obra. Pinta-se diferentemente, e fica feita a farsa para o baile.

Descreve também o instrumento sonoro que usavam (p. 43):

São dois canudos de taboca, que o mascarado traz nas mãos, cingidos de um cíngulo de cascavéis; servem para compassar os movimentos da dança, batendo o mascarado com os pés e com os canudos no chão, para soarem os cascavéis. Estes são feitos das sementes de algumas frutas silvestres, enfiadas em algum cordel, ou de pita ou de tucum.

Vale a pena ler também a crítica que Alexandre Rodrigues Ferreira, a propósito das danças jurupixunas (que ele chama de bailes), faz à atitude dos missionários perante as crenças indígenas, não sendo entretanto de se esperar que ele próprio estivesse acima de muitos preconceitos da época, como demonstram os dois seguintes parágrafos (p. 42):

Não se pode logo asseverar tão decididamente como tenho ouvido, que todos estes bailes são instituições ímpias e supersticiosas, que todos eles consagram ao inimigo comum; nem que todas estas máscaras sejam outras tantas representações dos seus ídolos, e ainda mesmo vivas imagens do Demônio. Os missionários, que têm sido entre nós as pessoas encarregadas de espreitar as suas opiniões e práticas religiosas, desconfiam de tudo quanto vêm fazer os gentios; principalmente se entre os seus usos e costumes, lá chegam a descobrir alguma coisa, que lhes represente ser um dos objetos da sua maior veneração. Se desconfiarem de tudo quanto fazem os gentios, não vêem senão obras do Demônio. Se a conciliá-los com o cristianismo, passam de um a outro extremo, é porque desde logo lhes atribuem idéias que, eles sim, são tão capazes de as adquirirem, como os outros homens, porém que ainda as não têm. De onde procede, que em não poucas ações dos gentios, estão alguns missionários descobrindo bem profundos vestígios dos mais sublimes mistérios, interpretando a seu jeito certas expressões e cerimônias, que eles não entendem, e transformando tudo quanto vêem, do que verdadeiramente é, para o que se lhes representa ser.

É certo que, entre os diversos princípios de religião, que alguns dos gentios professam, um deles é o de sustentarem que há Deuses autores dos males que afligem a espécie humana. Tais foram os Manáos habitantes nas margens e nos confluentes do rio Negro, dos quais escreveu no seu Diário o R. José Monteiro de Noronha, que com uma espécie de maniqueísmo, criam que haviam dois Deuses, um chamado Mauaré, autor de todo o Bem, outro por nome Sarauá, autor de todo o Mal. A este representam os gentios debaixo de formas as mais horríveis, e todo o culto que lhe dão, o dirigem a fim de aplacarem a cólera desta terrível divindade. Crêem, como os antropomorfistas, que os seus Deuses têm forma humana, mas com uma natureza superior à do homem; e sobre as qualidades e operações destes Deuses, imaginam fábulas as mais absurdas e incoerentes que se podem imaginar. Porém estes mesmos nenhuma forma têm do culto público, não erigem templos em honra das suas divindades e não têm ministros especialmente consagrados ao Seu Serviço. Em uma palavra, nem todos professam uma e a mesma superstição, nem esta se envolve em todos os seus bailes e festejos.

No restante da memória (p. 43-46), Ferreira vai discorrer sobre o amor à dança por parte dos indígenas do continente, abandonando o foco sobre os jurupixunas.

A memória sobre os índios catauixis do Purus (pp. 87-89), também assinada em Barcelos, parece igualmente baseada em dados de terceiros, no caso o mesmo Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, autor do diário de viagem de correição em 1774 e 1775. Refere-se a um severo jejum expiatório que mantinham e também às manchas de pele freqüentes entre eles. Enumerando e caracterizando três tipos de mancha de pele que conhecia, Alexandre Rodrigues Ferreira se inclina a identificar as que afetavam os catauixis com a chamada "leuci" em grego ou "vitiligo alba" em latim e sugere que contra elas se deve experimentar os mesmos remédios para a sarna e a lepra dos gregos. Ele ainda faz referência a uma "tábua" constante do seu material de pesquisa que representa uma mulher catauixi.

Durante a permanência de Alexandre Rodrigues Ferreira na Amazônia, os índios muras começaram a aproximar-se pacificamente dos portugueses e a sugerir as localidades em queriam permanecer ou vir a se estabelecer ou aceitar aquelas que lhes fossem propostas. Isso ocorreu nos anos de 1784 a 1786. Anteriormente mantinham relações hostis, atacando ou ameaçando os núcleos coloniais do centro da Amazônia, como o rio Negro, o baixo Solimões, o baixo Purus, o Japurá. Os muras constituem um exemplo daqueles povos indígenas que, vivendo no médio e alto curso dos afluentes do rio Amazonas, desceram para o rio principal após os conquistadores europeus terem esvaziado este último de sua população indígena. Anteriormente os muras estariam no interior do vale do rio Madeira. Ferreira apresenta duas memórias sobre os muras.

Uma delas (pp.103-161) não contém texto de Ferreira, sendo a pura e simples reprodução da correspondência entre as autoridades portuguesas da capitania de São José do Rio Negro referente muras. Por ela se sabe que eles se apresentavam em localidades bem distantes entre si como Ega (atual Tefé), Borba (no baixo Madeira), Moura (no rio Negro). Alguns dos intérpretes por meio dos quais se comunicavam com os portugueses eram pessoas que tinham sido moradores dos núcleos coloniais por eles raptadas ainda jovens. Estabeleceram-se em diferentes lugares, uns no Japurá, outros nos lagos ao norte de Codajás (o Anamá e o Piorini), outros em Manacapuru, outros em Airão ou junto a Moura. As recomendações entre as autoridades era de tratá-los bem, fornecer-lhes farinha de mandioca, que sempre pediam, fornecer-lhes ferramentas de modo a virem prover seu próprio sustento nos lugares em estavam se estabelecendo. Curiosamente, à medida que as autoridades se sentiam aliviadas com a disposição dos muras para a paz, começavam a se preocupar com uma nova ameaça, a dos mundurucus, que haviam feito sobre os muras uma grande carnagem.

A outra memória (pp. 59-67) se inspira no já referido Diário de Viagem em Visita e Correição das Povoações da Capitania de São José do Rio Negro, do ouvidor e intendente geral Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio, que faz um terrível retrato dos muras, antes da paz, como bárbaros ferozes e cruéis. Transcreve também correspondência entre o missionário de Airão e o capitão-geral sediado em Barcelos. A Ferreira cabe propriamente a iniciativa de ter providenciado o retrato de um mura, dentre aqueles que, saindo de Airão, foram visitar Barcelos, desenhado por Joaquim José Codina. E também a descrição de alguns artefatos muras representados numa "tábua". Um deles é o chapéu sem copa tecido de folhas de palmeira ou penas de aves. Outro, a tanga de fio da folha de palmeira muriti pintada com fécula do urucu ou do carajuru. Também o tubo de tomar paricá (pp. 63):

Cachimbo em que tomam o tabaco do paricá. Lançado ele em pó dentro da caçoleta do cachimbo, o que se destina a tomá-lo, com as suas próprias mãos aplica a caçolete a uma das ventas, enquanto outro assopra o tabaco com força pelo bocal, vindo por este modo a ser tão violento o efeito do tabaco assoprado que, a primeira assopradela, basta para os alienar dos sentidos e promover uma extraordinária descarga da pituíta.

E os arcos e flechas (pp. 64):

Arcos e flechas do seu uso. Aonde há que notar, quanto aos arcos, que estes são mais compridos do que os dos outros gentios. Fazem-nos de diferentes cascas de madeiras, que vergam como o pau-d'arco, a itajuba-poca, a paracuúba, a murapiranga e outras. Reforçam-nas por fora ou com os anéis das caudas dos lagartos, para lhes servirem de braçadeiras ou com as cordas de fio de piteira e de tucum. Se as cordas dos arcos também são de piteira, têm eles grande cuidado que se não molhe, para que não apodreçam, de sorte que, molhadas elas as enxugam ao fumo. Esta é a razão porque, em sobrevindo a noite, todos eles desarmam os arcos, para os dois fins, de afrouxarem as cordas e dissiparem-lhe ao fumo a umidade.

Quanto às flechas, todas têm a ponta feita de taquara, com a diferença, porém, que as pontas ou são simples ou farpeadas. Estas são as que servem para as ocasiões de empenho, quando eles tratam de segurar a presa. Raras são as pessoas que escapam, quando lhes flecham o tronco com elas. A não haver risco de dilacerar alguma das vísceras contidas em qualquer das duas cavidades, mais fácil fica sendo sacar a flecha pela sua extremidade do que dilacerar cada vez mais as partes, que são ofendidas. Umas e outras são as armas com que pelejam, caçam e pescam.

E acrescenta um detalhe sobre os batoques labiais (p. 64):

Note-se que, todos eles, homens e mulheres, furam ambos os lábios e nos ditos furos, introduzem uns ricos feitios de pedras, que acham no cérebro do peixe pirarucu.

Alexandre Rodrigues Ferreira não pesquisou apenas sobre costumes de artefatos indígenas. Também colheu dados sobre a fauna e a flora. Todas as amostras que ia conseguindo, enviava-as para Portugal. Diz José Candido de Melo Carvalho, no seu prefácio, que era o capitão Luís Pereira da Cunha quem se encarregara das remessas, fazendo as despesas do próprio bolso. Ao retornar à Belém a caminho de Portugal, Alexandre Rodrigues Ferreira se deu conta de que o capitão havia gastado muito com ele, o suficiente para pagar o dote de casamento de uma filha, como era o costume da época. Por isso, Alexandre se casou com a filha dele, Germana, dispensando-o de lhe dar o dote (p.6).

Em Portugal, entretanto, Ferreira teria grandes decepções. A primeira foi descobrir que aqueles que deveriam velar pela guarda da sua coleção tinham sido descuidados e uma parte de suas amostras tinha se deteriorado. A outra foi a invasão francesa de Portugal pelo General Junot, ordenada por Napoleão, que motivou a transferência da família real para o Brasil. Aproveitando-se da ocupação francesa, o zoólogo Etienne Geoffroy de Saint-Hilaire levou de Lisboa para o Museu de História Natural de Paris 68 mamíferos, 443 aves, 62 répteis, 162 peixes, 490 moluscos, 12 crustáceos e 722 insetos. O saque do naturalista francês, que incidiu certamente em boa proporção sobre as coleções de Alexandre Rodrigues Ferreira, incluiu também os manuscritos deste. Desse modo Saint-Hilaire e seus colegas de Paris puderam publicar trabalhos com base nesse material pilhado. Foi só após a queda de Napoleão que Portugal conseguiu a devolução dos manuscritos. Mas Ferreira falecera em 1815 [20].

Padre Aires de Casal

O Padre Manuel Aires de Casal publicou em 1817 sua famosa Corografia Brasílica [21]. É um livro digno de nota por três motivos. Um, porque o trabalho gráfico foi realizado pela Impressão Régia, no Rio de Janeiro, algo impensável antes da chegada de D. João, quando talvez não houvessem no Brasil tipografias habilitadas a realizar trabalhos com a sua extensão. Outro, porque transcreve a carta de Pedro Vaz de Caminha, até então desconhecida, que conta como os portugueses chegaram pela primeira vez ao Brasil. Finalmente, porque a Corografia (termo que outrora se aplicava a uma simples descrição geográfica), que reúne informações tomadas de diferentes fontes e autores, dá uma idéia geral do Brasil às vésperas da independência.

A consulta ao texto de Aires de Casal mostra ao leitor quão poucos eram os núcleos coloniais do Solimões nos anos de precediam o fim da dominação portuguesa, ainda que muito provavelmente as fontes mais recentes consultadas pelo autor devessem ser do final do século XVIII. A maioria eram oriundos de aldeamentos dirigidos por missionários carmelitas e habitados por indivíduos de diversas etnias indígenas. Somente um meticuloso trabalho de pesquisa histórica permitiria descobrir as áreas originais de habitação de vários desse grupos étnicos, dos quais Aires de Casal não oferece mais que o nome. De montante para jusante enumeramos a seguir esses núcleos.

Tabatinga (p. 332), presídio (não se entenda como penitenciária; seria mais uma guarnição) em frente à foz do rio Javari, dedicado a São Francisco Xavier.

São José (p. 332), vila três léguas abaixo da foz do Javari e dez léguas acima de Olivença, povoada por índios "tacunas", isto é, ticunas. Quando o zoólogo Spix (ver adiante) no final de 1819 por aí passou, a vila não mais existia e o mato tomava conta do lugar, que ficava na margem direita do Solimões.

Olivença (p. 332), antes chamada São Paulo [hoje São Paulo de Olivença], e que já tinha estado em vários outros lugares próximos, inclusive na margem oposta. Ao retornar à margem direita do Solimões, incorporou a aldeia de São Pedro. Seus primeiros habitantes foram cambebas, ticunas, juris e passés. Quando La Condamine desceu o Solimões no século XVII, era o núcleo colonial português que estava mais a montante e era uma missão carmelita.

Castro Avelães (p. 332), povoação de índios de diversas etnias, com uma igreja dedicada a São Cristóvão, seis léguas acima da foz do Içá. Esteve antes em vários outros lugares, um deles chamado Eviratiba. Esse nome lembra o de uma missão carmelita chamada Iviratua, pela qual passou La Condamine. Deve ter sido a origem da atual Amaturá, pois seus deslocamentos se deram nas vizinhanças de igarapés denominados Maturá e Maturacupá.

Fonte Boa (p. 331), povoação pouco mais de seis léguas acima da foz do rio Juruá e onze abaixo da foz do Jutaí. Esteve antes em vários outros lugares, um deles chamado Taracoatiba, nome que lembra Tracuatua, como chama La Condamine uma missão carmelita pela qual passou. Entretanto, diz Aires de Casal que o pesquisador francês viu essa missão após ter-se mudado de Taracoatiba. Aliás, é um nome que lembra também o da aldeia Turucuaté dos aisuares, citada pelo Padre Fritz. Diz Aires de Casal que ignora a qual etnia pertenciam os primeiros índios a habitarem a missão, mas quando ela estava no quarto local que ocupou (que foi onde La Condamine a viu), Frei João de São Jerônimo levou para lá os índios pacunas; mais tarde para aí foram levados araicás, marauás, momanás e finalmente tacunas (ticunas, certamente), tumbiras e passés.

Alvarães (p. 330), vila anteriormente chamada Gaiçara [Caiçara], junto a um lago próximo à margem do Solimões, cinco léguas cima da foz do rio Tefé. Tinha igreja dedicada a São Joaquim. Habitada por índios de várias etnias e muitos mestiços.

Nogueira (p. 330), vila na margem esquerda do rio Tefé, quase defronte a Ega. Era antes uma missão carmelita erigida mais para oeste, que reunia índios jumas, ambuás, cirus, catauixis, uaiupés, hiauauais, mariaranas. Depois mudou para a ponta Parauri, onde, diz Aires do Casal, La Condamine a encontrou em 1743. De fato, La Condamine se refere à missão carmelita de Paraguari. Daí, em 1753, Frei José de Santa Tereza Ribeiro a transferiu para Nogueira.

Ega (pp. 329-330), vila na margem direita do rio Tefé, com igreja dedicada a Santa Tereza de Jesus. Seus habitantes seriam quase todos índios puros e descendentes dos uaiupis, sorimões, coretus, cocurunas, jumas, hiupiuás, tamauanas e achouaris. Alguns desses é possível identificar: os sorimões, que deram nome ao rio Solimões, são iurimáguas; os achouaris seriam os aisuaris, curuziraris da chamada província de Machiparo pela expedição de Orellana; os coretus seriam os curutus ou koeretus a que Alexandre Rodrigues Ferreira (pp. 23-25) dedicou uma memória, que moravam na margem esquerda do Apapóris (afluente do Japurá), acima da quarta cachoeira, portanto em território da atual Colômbia e possivelmente semelhantes aos índios do alto rio Negro, não fosse sua maloca cilíndrica com teto cônico em duas etapas, conforme a reproduziu um de seus desenhistas. Era certamente a missão carmelita de Tefé pela qual passou La Condamine. Corresponde à atual cidade de Tefé.

Alvelos (pp. 328-329), vila quatro léguas acima da boca do rio Coari, do qual teve anteriormente o nome. Seus habitantes eram a maior parte descendentes dos uamanis, sorimões, catauixis, jumas, irijus, cuchiuaras, uaiupés. Sua igreja era dedicada a Sant'Ana. Mudou várias vezes de lugar, tendo passado pela direção de Frei José da Madalena, Frei Antônio de Miranda e Frei Maurício Moreira. La Condamine refere-se a uma missão carmelita por que passou chamada Coari.

Em resumo, com exceção das localidades acima de Olivença, as vilas do Solimões referidas por Aires de Casal em 1817 eram as mesmas missões carmelitas que La Condamine havia visto, não exatamente nos mesmos sítios, em 1743.

Spix e Martius

Nos anos de 1817 a 1820 o zoólogo Spix e o botânico Martius fizeram uma longa viagem de estudos desde o Rio de Janeiro, passando por São Paulo, Minas Gerais, Bahia, Nordeste e subindo o rio Amazonas. Eles relataram sua viagem num livro [22] em três volumes, publicados a partir de 1823. Eles eram bávaros (da Bavária ou Baviera, um reino dentre as muitas unidades políticas que, cinqüenta anos mais tarde vieram a se juntar para formar a Alemanha). Faziam parte de um grupo de naturalistas e técnicos da Europa central (entre os quais Pohl e Natterer) que vieram ao Brasil por ocasião do casamento de D. Leopoldina, Arquiduquesa da Áustria, com D. Pedro, herdeiro de D. João VI e que viria a ser o primeiro imperador do Brasil.

Ao entrarem no rio Solimões, cerca de duas léguas abaixo da foz do Purus, na praia de Guajaratuva, Spix e Martius tiveram a oportunidade de assistir ao preparo da manteiga de tartaruga. Era novembro de 1819. Vale a pena ler a descrição (no vol. 3, pp. 147-150):

Aí, pela primeira vez deparou-se-nos o espetáculo da colheita dos ovos de tartaruga e o preparo deles em manteiga de tartaruga. Numa extremidade da ilha de areia haviam os colhedores construído umas palhoças de folhas de palmeiras; grandes montes de ovos desenterrados, canoas cheias de ovos já quebrados, soltando o conteúdo, panelas cheias de gordura a ferver, e cerca de 150 homens, índios, mulatos, negros e alguns brancos, ocupados nesses diversos trabalhos: tudo isso constituía espetáculo novo e alegre, em seguida à costumada solidão da viagem. Nos meses de outubro e novembro, quando as águas do [ri]o chegam a baixo nível, sobem as grandes tartarugas fluviais a certas ilhas de areia emergentes e põem os ovos. Vigias, encarregados pelo governo, fiscalizam quando a postura se termina nas ilhas, conhecidas desde muitos anos como lugares habituais, e protegem as praias, de perturbações por índios nômades, particularmente dos muras. Em seguida acodem (sobretudo na ocasião da lua nova de outubro, a melhor época) numerosos colhedores, vindos às vezes de regiões afastadas, e um fiscal (capitão da praia), especialmente nomeado para manter a ordem entre essa gente, divide a colheita e cuida da entrega do dízimo para o erário. A escolha do funcionário para negócio, via de regra muito rendoso, é feita pelo governador da província, e quase sempre ele designa um membro da guarnição ou outro cidadão distinto. Faz-se rigorosa medição das camadas de ovos, que em geral se apresentam em trechos seguidos, em cada ilha, raramente em vários lugares, sob a indicação de índios práticos assinalando-se os limites por meio de compridos paus, que, entrando na areia, mais resistência encontram do que nos ninhos. Todo o areal é então dividido entre os presentes, na proporção do número de operários que traz cada cidadão. A décima parte do total é designada como posse da coroa por uma bandeira. Logo que a divisão é feita, os presentes se precipitam sobre a parte do trecho que lhes cabe, cada qual remexe a areia, sondando-a na profundeza de alguns pés, onde ainda encontrar vestígios de ovos. Os ovos jazem ora numa, ora em diversas camadas, umas sobre as outras, por isso variando o rendimento nos diversos pontos da praia. Trata-se logo de os desenterrar o mais depressa possível, porque os ovos, no fim de sete a oito dias, começam a apodrecer. Assim, em poucas horas, formam-se colossais montes de ovos, de 15 a vinte pés de diâmetro e proporcional altura, constituindo um espetáculo singular; e o areal, antes plano, agora todo revolvido, cheio de covas e montículos, fica entregue à enchente, para que ela o aplaine de novo. De manhã cedo, os botes, bem calafetados, enchem-se até ao meio com ovos, que são quebrados com tridentes de pau, semelhantes aos nossos forcados, e, finalmente, esmagados com os pés. Como os ovos contêm pouca clara e muita gema, a mistura parece uma papa amarela, na qual sobrenadam pedaços de casca. Deita-se água por cima, e fica essa massa exposta à ação do sol tropical, que, já ao cabo de três a quatro horas, faz subir à superfície o óleo gorduroso por ser o ingrediente mais leve. Dali é ele apanhado com cuias e colheres feitas de grandes conchas fluviais e juntado em grandes potes de barro. Repete-se em cada canoa o processo de esmagar, mexer e colher duas a três vezes, obtendo-se com isso a maior parte do óleo. Esta papa tem agora a cor e consistência de gemas batidas. Despeja-se em grandes caldeirões de cobre ou de ferro, colocados sobre um fogo brando, onde, durante algumas horas, é mexido, espumado e clarificado, com o que a parte coagulante se precipita. A parte líquida, cuidadosamente retirada, é segunda vez cozida sobre fogo ainda mais brando, até não formar mais bolha alguma, quando então toma cor e consistência de banha derretida. A manteiga de tartaruga, depois de esfriar, é guardada em grandes potes de barro, de boca grande e contendo umas 60 libras, fechados com folhas de palmeiras ou entrecasca de árvores, e assim são despachados. É tanto mais saborosa e pura, quanto mais depressa é preparada depois de desenterrar os ovos, e quanto mais frescos estes forem. Com o devido preparo, a manteiga perde inteiramente o cheiro da tartaruga, mas conserva sempre algum sabor oleoso com o qual só mesmo o paladar dos habitantes pode acostumar-se. Quando, porém, as tartaruguinhas, já demais desenvolvidas, apodrecem ao sol, o cheiro e sabor são extremamente repugnantes, e só para os sentidos embotados dos índios pode ainda ser considerado um petisco. O óleo de pior qualidade é empregado nas lâmpadas, como azeite de iluminação. O número de potes de manteiga, anualmente preparados nas Ilhas do Solimões, monta a mais de 8.000, e os de toda a província a 15.000. As tartarugas evitam as praias onde as colheitas foram feitas rigorosamente ano após anos; voltam para ali, todavia, com o tempo, em maior número. Como, já desde quase um século, tem a mão do homem furtado ao desenvolvimento natural tão enorme quantidade de ovos; como, além disso, os urubus, jaburus e tuiuius, os iguanos ou camaleões (sinimbus) e jacarés, lhes comem os ovos; como muitos são quebrados, por ocasião da postura, e também muitas das tartaruguinhas são devoradas pelos mesmos inimigos antes citados; e, apesar disso, ainda agora se fazem tão rendosas colheitas: causa admiração o número destes animais, que ainda existe hoje, e deve-se dar crédito às tradições dos antigos índios ao dizerem que outrora o Solimões fervilhava de tartarugas, como de formigas os formigueiros. O Sr. von Humboldt calculou pouco mais ou menos que, para o total de 5.000 potes a 25 botijas, cada, que se preparam anualmente, nas três ilhas do Orinoco, são necessários 33.000.000 de ovos, produzidos por 330.000 fêmeas. De diversos colhedores práticos, que exploram as praias no Solimões, ouvi os seguintes números reduzidos: Para um pote (que contém igualmente umas 25 botijas), calculam-se os ovos de 16 covas (supondo-se uma média de 100, perfazem 1.600 ovos); o número de fêmeas, cujos ovos, no Solimões, são anualmente transformados em manteiga, importariam, portanto, avaliadas com rigor, em 240.000. Tartarugas adultas, anualmente matadas no Solimões, montariam a 20.000, e o número total que vivem nesse rio e nas suas águas interiores montaria no mínimo a 2.000.000. Estas grandes cifras são alegadas pela incúria dos habitantes, quando lembrados da possibilidade de esgotar-se essa rica fonte de alimentação.

Note-se como há 180 anos atrás os homens de ciência já se preocupavam com a extinção das espécies animais. O governo tomava então umas precárias medidas, como se vê no parágrafo seguinte (vol. 3, pp. 150-151):

Aliás não há dúvida de que o sistema atual as exterminará, não obstante toda a produtividade desses úteis animais; e o governo procura, por esse motivo, coibir ao menos as irregulares caçadas, que sofrem as posturas e os animaizinhos, ao saírem da casca, por parte dos índios nômades. Costumam estes também secar grande número de ovos para guardá-los como provisão. Fazem isto ou ao fogo (em moquém) ou ao sol (urubu-moquém "secar ao modo dos urubus"). O ovo seca, perdendo dois terços de seu peso, e toma sabor oleoso repugnante. Como a época da postura dura um mês inteiro, conservam-se os índios, assim como os demais colonos, na vizinhança do rio, por esse tempo todo, e colhem, quando podem, apesar das patrulhas, cestos inteiros das tartaruguinhas recém-nascidas para comê-las, ou assadas de espeto ao fogo ou em caldo gordo. Estes pratos são, sem dúvida, os mais saborosos que o reino das águas oferece. Para a diminuição do útil animal concorrem também os já citados inimigos, as cobras e as onças, que todas perseguem gulosas a ninhada inerme, quando esta se dirige para a água. Por mais de uma vez vi na margem arenosa formigarem esses bichinhos, e alguns jacarés velhos deitados à espreita, na praia, para abocanharem os inexperientes que se atreviam na goela escancarada. As tartarugas adultas são em grande parte apanhadas nesse período, quando voltam das praias, e são conservadas na margem em taipais. Chamam-nas de "gado do rio", por serem o manjar de carne mais comum em todo o curso do Amazonas, e um ou diversos pratos dessa carne não faltam em mesa bem servida. As tripas derretidas dão igualmente uma gordura saborosa, que se emprega no preparo de certos pratos. Também a outra tartaruga, a tracajá (Emys tracajá Spix) é utilizada do mesmo modo.

Acima da foz do Purus, mas ainda na área do complexo de canais a ela ligado, Spix e Martius chegaram à praia das Onças, onde um número ainda maior de homens, uns 350, preparavam a manteiga de tartaruga, uma mistura de gente de todas as cores ainda maior que na praia anterior. Aqui tiveram contato com pessoas portadoras de uma moléstia, desta região, como contam (vol. 3, pp. 152-153):

Entre os índios estavam diversos da horda dos purupurus, que ofereciam seus serviços, como serventes, durante o período da colheita dos ovos, em troca de um machado ou de um côvado de tecido de algodão. Dois deles estavam atacados de doença de pele singular que seria hereditária entre eles e considerada pelos demais como marca da tribo. Todo o corpo parecia semeado de manchas escuras, irregulares, de diferentes tamanhos, em geral arredondadas, isoladas ou reunidas constituindo um aspecto repugnante. Essas manchas pareciam ao toque como leve endurecimento da pele, e não mostravam separação eczematosa, bem que a superfície delas, era desigual e mais seca que a do resto da pele. A margem em torno era, quase sempre, mais pálida do que a pele sã, mesmo quase branca, mas, pela inflamação, tomava tonalidade mais escura, de sorte que esse tom esbranquiçado parecia ser o primeiro grau da doença. Ambos esses indivíduos demonstravam constituição forte e tendência para obesidade, sem outra qualquer anomalia; porém, mais rigoroso exame nos fez verificar que traziam o fígado inchado, e mesmo num ponto doloroso ao apalpamento. Como nos interessássemos muito por essa circunstância, nos veio de moto próprio terceiro índio da tribo catauixis, apresentando idêntica anomalia. Tinha ele em particular, no rosto e no braço grande quantidade de manchas e pontos esbranquiçados. O homem parecia caquético; era muito magro e tinha extraordinariamente forte crescimento da cabeleira. Embora também essa doença da pele deva ser hereditária, nos recém-nascidos, ainda não se mostra e sim somente ao entrar na puberdade. Segundo Ribeiro [seria o já referido ouvidor Francisco Xavier Ribeiro de Sampaio], seria mesmo contagiosa. Sobre as causas dessa deformação feia da pele, só posso apresentar hipóteses. Os próprios índios crêem que esse mal está no sangue das tribos dos purupurus, catauixis e amamatis, e chamam-nos provavelmente, por isso, de malhados ou pinipinima-tapuias. Deve-se possivelmente procurar sua origem na vida quase anfíbia desses indígenas, na má alimentação, e no costume de se untarem amiúde com a gordura de jacaré ou do peixe-boi.

O rio Tefé antes de desembocar no Solimões, forma um lago, em cuja margem ocidental estava a vila de Ega (atualmente a cidade de Tefé) e, na ocidental, a localidade de Nogueira. Nesta última, Martius teve a oportunidade de assistir a um batizado de indígenas que mostra bem a indiferença com que eram tratados, após o fim das missões (vol. 3, pp. 165-166):

Enquanto o Dr. Spix se aproveitava da nossa demora aqui para obter mais alguns peixes-bois, botos e jacarés, destinados às nossas coleções (todos esses animais são apanhados; não raro, no lago e nos igarapés próximos), eu levei adiante as minhas excursões para além do Tefé, a Nogueira, outrora Parauari. Essa aldeia está situada duas léguas a oeste noroeste de Ega, numa região um tanto mais alta, extraordinariamente fértil e agradável, na margem ocidental. Ao aproximarmo-nos, notamos diante da igreja, na barranca da margem, uma fila de índios inteiramente nus, ao lado do padre, e uma mulher velada. Quando me aproximei da igreja aberta, ouvi, com surpresa, que justamente estava no ato de realizar o batismo desses silvícolas. Eram seis homens da tribo dos iupuás e cauixuanas, do Japurá. Tendo chegado da mata na véspera, ouviram uma explicação dogmática, para eles ininteligível, dada pelo padre, que os deixou indiferentes; depois acompanharam-no instintivamente à igreja, onde se realizou a cerimônia, nisso entregando o padre a uma mulata robusta, encarregada do papel de madrinha (maia angaba, isto é, mãe das almas), e a mim, uma vela acesa para tornar mais solene a cerimônia. Não me lembro de mais dolorosa emoção da que senti ao presenciar essa inútil solenidade. Somente a madrinha talvez poderia ser capaz de sentimento de devoção, praticando tal ato de misericórdia. Os índios retiraram-se dali sem mais, depois de uma desajeitada genuflexão e de terem recebido da madrinha uns presentinhos; à tarde observei-os em suas igaras, remando de regresso às suas matas pátrias. Pareceu-me cheia de ironia amarga toda a cerimônia, e com pesar devo dizer que não são raros esses casos. O rude íncola considera o batismo, ora supersticiosamente, como proteção contra a arte negra de seus inimigos, ora interesseiramente, como meio de obter dos brancos enganados algum objeto útil. Não é raro apresentarem-se os mesmos indivíduos diversas vezes a diferentes párocos...

Ao deixarem o rio Tefé, Martius subiu o Japurá e Spix continuou a subir o Solimões até Tabatinga. No rio Tonantins (que infelizmente na tradução do livro está grafado como "Tocantins"), Spix viu os índios cauixanas. Assim os descreve (vol. 3, p. 177):

Um dia depois, atravessei para a margem setentrional do Solimões, e alcancei, escapando com felicidade de algumas tempestades, em sete dias depois da partida de Fonte Boa, a povoação no Tocantins [Tonantins]. Este rio nasce a apenas alguns dias de viagem, mais ao norte, na direção do Japurá. Aqui existem muitas roças de mandioca. O Tocantins [Tonantins] é habitado pela tribo dos cauixanas, conhecidos por se alimentarem de jacaré, e há poucos anos mataram o seu missionário. Ao meu aparecimento em suas moradas, no mato, mostraram-se assustados no primeiro momento, mas logo saíram das cabanas, os homens todos nus e atrás deles diversas das suas mulheres e filhos, com os rostos salpicados de preto e vermelho, enfeitados com tiras de entrecasca e penas nos braços e pernas. Essas choças de teto cônico são feitas com folhas de palmeira, e têm uma parte baixa, pela qual a gente entra e sai de rastos. Homens, mulheres, crianças e cães deitam-se todos juntos nessa morada escura, cheia de fumaça. Trouxeram-me muitos bugios, os negros coatás, os peludos macacos ursinos (guaribas ruivos), rãs azuis, variedade de colibris, muitos insetos, ovos verdes de inhambu, etc.; parecia que esses índios viviam numa zona muito mais rica em alimento do que seus vizinhos do Japurá, que têm que se habituar à fome, por causa da quase contínua escassez de caça. Também diversos ingazeiros, cujas vagens longas e doces são comestíveis e oferecem aos cauixanas agradável alimento.

Continuando, na véspera de Natal de 1819 chega ao rio Içá, e assim relata como viu os índios passés e juris (vol. 3, pp. 177-178):

A 24 de dezembro alcancei o quartel militar do rio Içá, que nasce a noroeste, na cordilheira, onde é chamado Putumayo, e verte as suas águas pretas pelo lado setentrional, no Solimões. A minha chegada foi festejada com luminárias à noite, para cujo fim queimam manteiga de tartaruga em cascas de laranja. Duzentos dos mais belos índios da tribo dos passés, com caras tatuadas de preto, inteiramente nus, alguns com compridas varas na mão, outros com flautas de caniço, marchavam em fila, seguidos pelas mulheres e crianças, formando ora um círculo singelo, ora um círculo duplo. Semelhante marcha militar também executavam os menos numerosos juris, alternando com os outros. Ambas as nações são habitantes principais das margens do baixo rio Içá. Entre os passés, o pajé é tido em grande consideração. É ele quem aparece logo depois do parto, e dá o nome à criança. A mãe fura as orelhas do recém-nascido. A força e insensibilidade do menino são postas à prova com surra. Jovens donzelas casadouras são suspensas na cabana e jejuam durante um mês. A parturiente fica um mês de resguardo no escuro e só pode comer mandioca, e igualmente o marido, que, durante esse período, se pinta de preto e também fica deitado na rede. Usam-se aqui as insuflações com o pó de paricá e clisteres com o decocto do mesmo. O tuxáua tem, em geral, diversas mulheres; os demais, apenas uma. O jus primae noctis não faz parte dos costumes destes. Há festas freqüentes com mascarados. Enterram os defuntos em covas redondas. Só o corpo do chefe é que tem acompanhamento, e suas armas são-lhe incineradas sobre o túmulo. Entre estes índios, encontram-se indivíduos da tribo dos jumanas, miranhas, de asas nasais furadas, ujaquas, ariauenas de orelhas alongadas e pendentes e também muriatés, cujas mulheres, em seguida ao parto, se escondem no mato fechado, a fim de que o luar não lhes provoque nem ao recém-nascido, alguma doença. Dos juris, conhece-se o costume usual aqui e acolá na América do Sul de deitar-se o marido na rede, logo que a mulher dá à luz, e ser servido por ela.

Ao ler este trecho, é preciso separar três tipos de informação: a) aquilo que o naturalista dá a entender que ele próprio presenciou; b) aquilo que ele provavelmente ouviu dos que o acompanhavam ou dos moradores locais a respeito dos índios; e c) aquilo que decorre dos seus próprios preconceitos trazidos da Europa. Assim, a descrição do desfile, das tatuagens, dos orifícios e pendentes auriculares parece ser mais confiável, porque o narrador viu. Já os costumes relacionados ao parto, à morte e às provas aplicadas aos jovens, ele não teve oportunidade de examinar, porque não permaneceu muito tempo no local e deve ter ouvido a descrição e interpretação de terceiros. Por sua vez, a indagação sobre a prática ou não do jus primae noctis, isto é, "o direito da primeira noite", entre os índios visitados decorre da projeção sobre outras sociedades humanas de um costume da Europa medieval, de existência não comprovada, que permitia aos senhores feudais serem os primeiros a se deitarem com as mulheres de seus vassalos na noite de núpcias.

O mesmo cuidado deve ter o leitor diante do trecho em que Spix descreve os ticunas (vol. 3, pp. 179-180):

Mais mansos e mais amigos dos brancos [se comparados aos indígenas do Javari] são os tecunas. Quando cheguei a Tabatinga, vi diversas igaras dirigidas para terra, cheias de índios nus, enfeitados com braçadeiras, ligaduras, ombreiras e testeiras de penas, e os quadris revestidos com delicado cinto de entrecasca. Apenas desembarcaram, ouvi uma atordoadora música, e presenciei a festa, para a qual tinham vindo de suas matas esses índios. Consistia a cerimônia em arrancar a cabeleira de uma criança de dois meses, entre danças e música. Os índios haviam convidado para isto os vizinhos, tocando numa buzina de caniço grosso, e festejaram a bárbara solenidade com dança bacânica, excitando-se cada vez mais aos goles de uma bebida fermentada, feita com a raiz do aipim doce (macaxera). Formavam um verdadeiro préstito. Aquele que figurava o diabo jurupari, com máscara de macaco, abria a marcha; a cauda do seu vestido, feito de entrecasca, era levada por duas pequenas índias. Em seguida, vinham outros mascarados, um figurando um veado, outro um peixe, um velho tronco de árvore, etc. Fechando a procissão, vinha uma mulher velha, feia, toda pintada de preto, que batia monótono compasso numa casca de tartaruga. Nesse préstito, os indivíduos dançavam e pulavam como bodes, parecendo fantasmas ou malucos. Um desses horrendos comparsas dirigiu-se logo para mim e queria arrancar-me os botões luzidios do paletó, parecendo-lhe um conveniente enfeite para as suas orelhas. O espantoso espetáculo dessa bárbara festa, na qual muitas vezes a criança morria, durou desta vez três dias e três noites consecutivas. Outras festas são celebradas pelos tecunas, quando se furam as orelhas da criança e quando as raparigas chegam à puberdade. Enterram os seus defuntos em potes e incendeiam a cabana com tudo quanto possuía o morto, quando os filhos não reclamam as armas. Esta nação dos tecunas pratica nas suas matas a circuncisão em ambos os sexos. Negociei a troca de suas armas, seus adornos e utensílios por miçangas, espelhos, facas, etc. O tempo também aqui foi muito desfavorável, chovendo sem cessar. No segundo dia, puseram-se às minhas ordens 30 tecunas, que me trouxeram aves de incomparável beleza, da mais variada plumagem. Como aqui e em Olivença é que particularmente são abundantes essas magníficas aves, são os tecunas hábeis não só na caçada, mas também em as esfolar, e para a operação apenas se servem de um pauzinho. Em quatro dias, era tão grande o fornecimento, que enchi quatro caixas.

Será que era mesmo uma cerimônia para arrancar os cabelos de uma criança de dois meses? Spix não dá detalhes sobre essa criança. Ele viu o momento de arrancar os cabelos? Ou seria uma festa da moça nova? Por sua vez, o diabo jurupari deve ter sido a interpretação que aqueles que acompanhavam Spix lhe deram para um personagem cuja posição na mitologia e cosmologia ticuna eles desconheciam. Quanto a sua apreciação desfavorável da dança e música os ticunas, deve-se levar em conta que Spix era zoólogo e não se podia esperar dele a isenção de um antropólogo, especialista que ainda não existia naquele tempo. Mas, quando os ticunas desempenham aquelas tarefas que estavam mais ligadas à profissão de Spix, apanhando e esfolando habilmente aves para sua coleção, o zoólogo não lhes poupa elogios.

A população do Solimões em 1840

Carlos Moreira Neto, no seu já referido livro Índios da Amazônia, reproduz nas pp. 320-321 o "Mapa Estatístico da Comarca do Alto-Amazonas em 1840", extraído do Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo..., do capitão-tenente Lourenço da Silva Araújo e Amazonas, publicado em 1852 e do qual há uma reedição em fac-simile pela Associação Comercial do Amazonas de 1984.

Tomamos do dito Mapa a parte referente ao Solimões e, dada a sua extensão horizontal, a dividimos em duas partes, uma para a população propriamente dita e outra para a indicação das etnias que deram origem aos moradores de cada localidade. Fizemos algumas adaptações, como a supressão de algumas colunas e a disposição das localidades na ordem de oeste para leste. Mantivemos a coluna referente ao santo padroeiro porque ajuda a identificar certas localidades, uma vez que o Mapa se refere a algumas delas com nomes mais antigos.

Fizemos uma correção na soma dos números referentes a Fonte Boa, de 600 para 605, o que elevou o total geral de 5.865 para 5.870. Note-se que o autor da tabela faz distinção entre mamelucos e mestiços. Se os primeiros são descendentes de brancos e índios, os segundos talvez sejam descendentes de índios e negros, ou de brancos e negros.
Localidades Santo padroeiro População
Brancos Mamelucos Indígenas Mestiços Escravos Total
Tabatinga S. Francisco Xavier 5 40 148 - - 193
São José S. José - 50 250 - - 300
Javari S. Paulo 100 250 515 73 12 950
Maturá S. Cristóvão 10 34 100 6 - 150
Boa Vista S. Antônio - - 200 - - 200
Tonantins Espírito Santo 5 60 71 - - 136
Fonte Boa N.S. de Guadalupe 60 200 302 38 5 605
Caiçara S. Joaquim 56 150 341 10 5 562
Parauari N.S.do Rosário 30 200 472 20 2 724
Tefé Sta. Teresa 84 176 540 20 20 840
São Matias S. Matias - - 50 - - 50
Maripi S. Antônio 30 60 300 10 - 400
Coari Sant' Ana 80 200 411 59 10 760
Total   460 1420 3700 236 54 5870

O que no Mapa figura como São José deve ser São José do Javari, a localidade que Spix viu tomada pelo mato em 1819. Já o que consta na tabela como Javari, deve ser São Paulo de Olivença, a julgar pelo santo padroeiro do lugar. Boa Vista, no rio Içá, também a julgar pelo santo padroeiro, deve ser Santo Antônio do Içá. No Mapa Alvarães consta com o nome mais antigo de Caiçara, e Nogueira com o seu antigo nome de Parauari. Com estas identificações e sabendo-se, como informa o mapa original, que São Matias e Maripi ficavam no Japurá, a indicação das etnias indígenas que povoaram estas localidades faz mais sentido. Note-se, por exemplo, que os ticunas figuram nas localidades do alto Solimões.
  Localidades Nações indígenas de que provém a população
Alto Solimões
Tabatinga Cambeba, ticuna.
São José [do Javari] Ticuna.
Javari
[S. Paulo de Olivença]
Cambeba, juri, passé, ticuna.
Maturá [Amaturá] Cambeba, caiuvicena, juri, pariana, xomana.
Boa Vista
[Sto. Antônio do Içá]
Caiuvicena, passé.
Tonantins Caiuvicena, passé, ticuna.
  Fonte Boa Araicá, cambeba, cumurama, cunamana, marauá, momana, pacuna,
passé, ticuna, tumbira, xama, xomana.
Vizinhanças da
foz do Japurá
Caiçara [Alvarães] Ambuá, araruá, cauiari, marauá, miranha, passé, uaiumá, uaruecoca, iucuna.
Parauari [Nogueira] Ambuá, catuxi, ciru, jauana, juma, juri, mariarana, passé, uaiupi.
Tefé Achoari, cocuruna, coretu, hiupiuá, janumá, jauana, juma, juri, manau,
passé, sorimão, tauana, tupivá, uaiupi, xama.
Japurá
São Matias Aniana, iucuna.
Maripi Baré, macu, mariarana, mepuri, passé, xomana.
  Coari Catuxi, iriju, juma, jurimaua, passé, puru, sorimão, uaiupi, uamani, uaupés.

Henry Bates, o zoólogo que morou na Amazônia

Henry Bates viveu na Amazônia de 1848 a 1859, portanto onze anos, tendo se demorado em Santarém, no rio Tapajós, e mais ainda em Ega (atual Tefé). Coletava animais para o Museu Britânico. Em 1863 ele publicou em livro [23] o interessante relato de sua experiência na Amazônia.

Na sua primeira viagem de Barra (atual Manaus) a Ega, a tripulação do barco era de índios cocamas e assim ele os descreve (pp. 193-195):

Depois dos dois ou três primeiros dias, entramos numa espécie de rotina a bordo. A tripulação era composta de dez índios da tribo Cucama, cujas terras de origem ficavam localizadas nas margens do curso superior do rio, nos arredores de Nauta, no Peru. Os Cucamas falam a língua tupi, mas seu sotaque é mais áspero do que o dos índios semi-civilizados encontrados de Ega para baixo. São um povo esperto e trabalhador, sendo os únicos indígenas que concordam de boa vontade em tripular, em grupo, as embarcações dos mercadores. O piloto, um sujeito equilibrado e merecedor de toda confiança, chamado Vicente, contou-me que fazia quinze meses que ele e seus companheiros estavam longe de suas famílias, acrescentando que ao chegarem a Ega eles pretendiam retornar a Nauta na primeira embarcação que para lá seguisse. Não havia nada na aparência desses homens que os diferençasse dos canoeiros em geral. Alguns eram altos e bem constituídos, outros tinham uma figura atarracada, com ombros largos e os braços e pernas excessivamente grossos. Não havia dois deles que apresentassem alguma semelhança no formato da cabeça. Vicente tinha o rosto oval e os traços finos e regulares, enquanto que um sujeitinho troncudo — o gaiato da turma — tinha feições inteiramente mongólicas: o rosto largo, as maçãs salientes, o nariz achatado e os olhos oblíquos. Esses, porém, representavam os dois extremos quanto a feições e constituição física. Nenhum deles apresentava-se tatuado ou desfigurado de alguma forma, e eram todos imberbes. Os Cucamas são notórios, nas terras ribeirinhas, por seus hábitos previdentes. O desejo de adquirir bens é tão raro entre os indígenas que os costumes dessa tribo são encarados com espanto pelos brasileiros. A primeira coisa que eles se esforçam por adquirir, quando descem o rio e entram no Brasil — que todos os indígenas peruanos consideram um país mais rico do que o seu — é um baú de madeira com cadeado e chave. Nesse baú eles guardam cuidadosamente todo o dinheiro que ganham, convertido em roupas, machadinhas, facas, pontas de arpão, agulhas, linhas, etc. Seu salário não vai além de quatro ou seis peniques por dia, geralmente pagos em mercadorias cujo preço é cem por cento mais alto do que no Pará, de forma que eles levam muito tempo a encher o seu baú.

Seria difícil encontrar, numa viagem, um grupo de homens mais bem comportados do que aqueles pobres indígenas. Durante os trinta dias que durou a nossa jornada eles viveram e trabalharam juntos na mais perfeita camaradagem. Jamais ouvi uma palavra de irritação ser trocada entre eles. O Sr. Estulano deixava-os manobrar o barco à sua maneira, exercendo a sua autoridade unicamente nos poucos momentos em que eles se mostravam inclinados à indolência. Vicente regulamentava o número de horas de trabalho, o qual dependia da maior ou menor escuridão da noite. No primeiro e segundo quarto da lua, o barco seguia em frente com a ajuda da espia ou dos remos, até a meia-noite aproximadamente; nos dois últimos quartos os homens tinham permissão para dormir logo depois que o sol se punha, sendo acordados às três ou quatro da manhã para reassumirem o seu trabalho. Nos dias frescos e chuvosos, todos nós dávamos uma mão junto à espia, correndo descalços em fila indiana, no convés escorregadio, ao som de uma cantiga maluca de barqueiro cantada em coro por todos. Só tivemos ventos favoráveis dois dias, dos trinta e cinco que durou a viagem; enquanto sopraram os ventos conseguimos percorrer cerca de sessenta quilômetros, mas o resto da longa viagem foi realizado literalmente à custa de arrastarmos o barco de árvore em árvore ao longo da margem. Quando encontrávamos um remanso as coisas melhoravam e conseguíamos avançar alguns quilômetros valendo-nos dos remos. Mas isso era um acontecimento raro. Nas horas de lazer os indígenas ocupavam o seu tempo costurando. Vicente era perito em cortar camisas e calças, fazendo o papel de mestre-alfaiate para todos os outros, os quais tinham, cada um, o seu próprio dedal de aço e um estoque de linhas e agulhas. Vicente fez para mim um par de camisas de algodão xadrez azul e branco durante a viagem.

A bondade desses índios — como ocorria com a maioria dos outros com os quais eu havia convivido — consistia talvez mais na ausência de qualidades más do que na presença de boas; em outras palavras, era mais negativa do que positiva. Seu temperamento apático e indiferente, a ausência de ambição e a frieza de sentimentos, bem como a falta de curiosidade e de agilidade mental fazem dos índios da Amazônia uma companhia muito desinteressante. Eles tem uma imaginação embotada, sem vivacidade, e aparentemente nunca se deixam dominar por sentimentos como o amor, a piedade, a admiração, o medo, o espanto, a alegria, o entusiasmo. Essas características são comuns a toda a raça indígena. O espírito de camaradagem de nossos Cucamas parecia originar-se não num sentimento de cordialidade para com os seus semelhantes e sim, simplesmente, na ausência de cobiça e egoísmo em relação a coisas de pouca importância. Na manhã em que o vento começou a soprar a favor, um dos tripulantes — um rapaz de dezessete anos — achava-se em terra no momento em que levantamos âncora. Tinha ido numa das canoas apanhar frutas silvestres. As velas foram içadas e o barco partiu célere, tendo nós viajado durante várias horas com o pobre rapaz, que havia sido largado em terra, a remar laboriosamente em nosso rastro, lutando contra a forte correnteza. Vicente, que poderia perfeitamente ter esperado pelo rapaz alguns minutos antes de dar a partida, apenas riu quando ficou sabendo dos apuros por que passava o seu companheiro. Finalmente o rapaz conseguiu alcançar-nos à noite, após ter labutado penosamente o dia inteiro sem nada para comer. Ele riu quando subiu a bordo, e entre ele e os outros não foi trocada nem uma dezena de palavras.

A falta de curiosidade dos indígenas é extraordinária. Certo dia desabou um temporal desusadamente violento. Os tripulantes achavam-se estirados pelo tombadilho, e a cada estrondo de um trovão todos soltavam uma gargalhada, com o gaiato da turma gritando: "Olha o titio caçando de novo!", uma frase que mostrava a absoluta vacuidade da mente de quem falava. Perguntei ao Vicente qual a idéia que ele fazia da origem do relâmpago e do trovão. Ele respondeu: "Timaá ichoquá" ("Não sei"). Ele nunca se tinha dado ao trabalho de pensar sobre o assunto! Acontecia o mesmo com tudo mais. Perguntei-lhe quem tinha feito o sol, as estrelas, as árvores. Ele não sabia, e nunca tinha ouvido referência ao assunto entre o povo de sua tribo. A língua tupi, pelo menos a que era ensinada pelos antigos jesuítas, tinha uma palavra — Tupã — que significava Deus. Vicente às vezes usava essa palavra, mas pela sua expressão era evidente que não associava a ela a idéia de um Criador. Parecia acreditar que se tratava de alguma divindade ou imagem concreta venerada pelos brancos nas igrejas que ele havia visto nos povoados. Nenhuma das tribos indígenas do Alto-Amazonas têm noção da existência de um Ser Supremo, e em conseqüência não têm nenhuma palavra que exprima essa idéia em sua língua. Vicente achava que o rio no qual velejávamos circundava o mundo inteiro, e que a Terra era uma ilha semelhante às que víamos no meio do rio, porém maior. Aqui vê-se um lampejo de curiosidade e imaginação fulgir na mente do indígena, pois foi sentida a necessidade de uma teoria relativa à existência da terra e da água, e essa teoria foi criada. Em todos os outros assuntos que não estavam associados às simples necessidades da vida a mente de Vicente era um vácuo absoluto, conforme era o caso com todos os indígenas em seu estado natural. Poderíamos perguntar se seria diferente dessa uma comunidade de homens de qualquer outra raça que vivesse isolada durante séculos na selva, como os índios da Amazônia, agrupada em pequenas tribos que se ocupavam unicamente em suprir as suas mínimas necessidades, uma comunidade sem linguagem escrita e destituída de uma classe mais elevada e rica que pudesse legar os conhecimentos adquiridos de uma geração a outra.

Em Ega, onde Bates viveu quatro anos e meio, muitos dos moradores indígenas, que incluíam todos os empregados domésticos, tinham vivido na beira dos rios vizinhos, como o Japurá, o Içá, o Solimões. Havia indivíduos de pelo menos dezesseis etnias diferentes, que tinham chegado a Ega ainda crianças, vendidas pelos caciques indígenas, apesar de as leis brasileiras proibirem semelhante tipo de tráfico de escravos. Ao chegarem à idade adulta, tornavam-se livres. Mas os rapazes geralmente fugiam em barcos de mercadores e as moças sofriam muito nas mãos de suas patroas ciumentas. E continua Bates (p. 207):

A taxa de mortalidade é muito alta entre as infelizes crianças cativas, logo que chegam a Ega. É singular o fato de que os índios que vivem às margens do Japurá e de outros afluentes sempre adoecem quando descem até o Solimões, ao passo que ocorre o contrário com os habitantes das margens do rio principal quando se metem pela primeira vez pelos seus afluentes acima. As tribos mais nobres que habitam as terras nos arredores de Ega são os Juris e os Passés, os quais se encontram agora, entretanto, praticamente extintos, deles restando apenas umas poucas famílias nas margens de isolados cursos d'água que vão desembocar no Tefé e no Jutaí. Trata-se de um povo pacífico, afável e industrioso, que se dedica à agricultura e à pesca e sempre foi amigo dos brancos. Posteriormente voltarei a falar dos Passés, que se distinguem por uma grande tatuagem quadrada em suas faces. A principal causa da diminuição de sua população é uma doença que sempre aparece no meio deles quando uma de suas aldeias é visitada por gente de povoados já civilizados. A doença começa com uma febre baixa e constante, acompanhada pelos sintomas de um resfriado comum, ou defluxo, como eles chamam, e acaba provavelmente por se transformar em consunção. Foi observado que esse mal surgia mesmo quando os visitantes não estavam atacados por ele; aparentemente, o simples contato com homens civilizados bastava, de alguma forma misteriosa, para desencadeá-lo. A doença era geralmente fatal para os Juris e os Passés, e a primeira pergunta que os pobres e conformados índios agora fazem a um barco que chega é: "Vocês estão com defluxo?"

Em 23 de maio de 1850, Bates foi visitar uma família de passés que vivia no alto de um igarapé que desembocava no rio Tefé, perto de Ega. Depois de descrever sua visita, comenta o autor (pp. 228-229):

A horda de Passés da qual Pedro-Açu era tuxaua achava-se na ocasião reduzida a um insignificante número de indivíduos. A doença a que me referi no último capítulo tinha causado grandes baixas entre eles no decurso de várias gerações. Muitos tinham, também, ido trabalhar para os brancos e, nos últimos tempos, eram freqüentes os casamentos entre brancos, mestiços e índios. O velho tuxaua lamentava a sorte de sua raça, para Cardoso, com lágrimas nos olhos. "O povo de minha nação", dizia ele, "sempre foi amigo dos cariwas (brancos), mas antes que os meus netos alcancem a velhice o nome dos Passés estará esquecido." Na medida em que os Passés se misturem aos imigrantes europeus os seus descendentes, tornando-se cidadãos brasileiros civilizados, dificilmente haverá razão para se lamentar a sua extinção como nação; mas causa tristeza ver como é grande o número desses indígenas que morrem prematuramente de uma doença que parece ter sua origem no fato de respirarem eles o mesmo ar que os brancos respiram. O território primitivo da tribo deve ter sido muito vasto, pois segundo a tradição os Passés foram encontrados no Rio Negro pelos primeiros colonizadores portugueses, havendo um primitivo povoado denominado Barcelos, à margem desse rio, que foi habitado originariamente por eles, tendo esses índios constituído também uma parte da população original de Fonte Boa, no Solimões. Por conseguinte, eles se achavam espalhados num território que cobria, de leste a oeste, uma extensão de seiscentos quilômetros. É possível, entretanto, que esses índios tenham sido confundidos pelos colonizadores com outras tribos vizinhas, que tatuavam seus rostos de forma similar à deles. Os indígenas da extinta tribo dos Iurimaúas, ou Sorimoas — que deu origem ao nome do Rio Solimões, segundo a tradição corrente em Ega — assemelhavam-se aos Passés pela sua figura esguia e seu temperamento afável. Essas tribos (com outras de permeio) povoaram as ribanceiras do rio principal e de seus tributários, desde a foz do Rio Negro até o Peru. Índios Passés genuínos viviam em estado primitivo nas margens do Içá, 360 quilômetros a oeste de Ega, conforme recordavam pessoas ainda vivas na época. O único agrupamento de grande porte dos Passés, ainda existente, acha-se localizado no Japurá, a uma distância de cerca de 230 quilômetros de Ega; esse agrupamento, entretanto, segundo pude apurar, compõe-se de quatrocentas pessoas, no máximo. Considero plausível que a região banhada pelo Rio Japurá, no seu curso inferior, e as extensas terras abrangidas pelo seu delta constituíam o território original dessa pacata tribo de índios.

Os Passés são considerados em toda aquela região como a nação indígena mais adiantada do Amazonas. É difícil imaginar que influências terá sofrido essa tribo para que fossem modificadas de maneira tão drástica as suas características, físicas, mentais e sociais. Os hábitos industriosos, a fidelidade e o temperamento afável dos Passés, bem como a sua docilidade e — é justo acrescentar — a sua beleza física, principalmente das mulheres e das crianças, tornaram-nos desde o princípio muito atraentes para os colonizadores portugueses. Conseqüentemente, eles se viram persuadidos a deixar suas aldeias, concordando em ser levados para Barra e outros povoados dos brancos. As esposas dos governadores e dos militares portugueses mostravam-se sempre muito interessadas em conseguir crianças indígenas para o serviço doméstico. As meninas aprendiam a costurar, a cozinhar, a tecer redes, a fazer renda de bilro, etc. Sempre foram tratadas com brandura, principalmente pelas famílias mais instruídas do lugar. Não deixa de ser agradável poder registrar aqui que nunca ouvi a menor referência a atos de violência ocorridos, tanto de um lado quanto de outro, nas transações feitas entre os colonizadores europeus e essa nobre tribo de selvagens.

Pouco se sabe sobre os costumes primitivos dos Passés. O modo de vida de Pedro-Açu, o nosso hospedeiro, em quase nada diferia do adotado pelos mamelucos civilizados. Contudo, ele e a sua gente mostravam-se mais industriosos e eram mais francos, mais cordiais e mais generosos em suas transações do que a maioria dos mestiços. A autoridade de Pedro, como a dos tuxauas em geral, era exercida com moderação. Esses caciques parecem contar facilmente com a obediência de seus comandados, já que cumpre a eles fornecerem homens às autoridades brasileiras, quando a isso requisitados; nenhum deles, porém, mesmo os das tribos mais adiantadas, parece fazer uso dessa autoridade para acumular riquezas; além do mais, a obrigação de recrutar homens só é exigida, geralmente, em tempo de guerra. Se a ambição dos caciques de algumas dessas industriosas tribos estivesse voltada para a aquisição de riquezas, é possível que pudéssemos encontrar no coração da América do Sul algumas nações indígenas semelhantes às existentes no Peru e no México. É bem provável que os Passés tenham adotado logo de início, e até certo ponto, as maneiras dos brancos. Ribeiro, um funcionário português que percorreu essas regiões em 1774/5 e escreveu um relato de sua viagem, declara que os Passés enterravam os seus mortos em grandes vasos de barro (um costume ainda conservado pelos indígenas do Alto-Amazonas) e que, na parte referente ao casamento, os moços faziam jus às suas noivas por meio de atos de bravura na guerra. Afirma também que os índios possuíam uma cosmogonia, da qual era parte importante a crença de que o Sol era um corpo fixo no espaço, com a Terra girando ao seu redor. O viajante português diz, além do mais, que esses indígenas acreditavam num Criador de todas as coisas, bem como numa vida futura, com recompensas, castigos, etc. Essas idéias são tão mais avançadas do que as de todas as outras tribos indígenas, e é tão pouco provável que tenham sido concebidas e aperfeiçoadas por um povo que não possui linguagem escrita nem uma classe privilegiada, que só podemos supor que tenham sido ensinadas aos dóceis Passés por algum antigo missionário ou viajante. No meu ponto de vista, esses indígenas nunca me pareceram ter mais curiosidade ou mais vivacidade mental do que os índios de outras tribos. Não existe o menor indício de uma crença numa vida futura entre indígenas que nunca tiveram muito contato com os colonizadores europeus, e, mesmo entre os que tiveram, apenas uns poucos indivíduos, mais bem dotados, mostram alguma curiosidade sobre o assunto. Suas mentes lerdas parecem incapazes de conceber ou sentir a necessidade de uma teoria sobre a alma ou sobre as relações do homem com o resto da Natureza ou com o seu Criador. Entretanto, não ocorre a mesma coisa com os povos que, mesmo nas regiões mais civilizadas do mundo, vivem isolados e em total ignorância? As boas qualidades dos Passés são de ordem moral. Eles levam uma existência feliz, pacata e sem ambição, sua vida doméstica é calma e ordeira, sendo sua tranqüilidade quebrada apenas ocasionalmente pelas bebedeiras rituais e as caçadas de verão. Eles não são tão astutos, ativos e dominadores quanto os Mundurucus, mas aprendem as coisas com mais facilidade porque seu temperamento é mais cordato do que o deles ou de qualquer outra tribo.

Se Bates foi pela primeira vez a Ega numa embarcação movida pelos braços dos cocamas, vale a pena notar que foi no tempo em que vivia na Amazônia que foi introduzida a navegação a vapor. Em 1856 ele foi a Tonantins viajando a bordo do "Tabatinga", um barco de ferro a vapor de 170 toneladas com motores de 50 cavalos, construído no Rio de Janeiro. Em Tonantins foi recebido por Paulo Bittencourt, um mestiço que tinha o cargo de Diretor dos Índios do Rio Içá. Assim ele caracteriza a população de Tonantins e descreve o seu encontro com os caixanas, dos arredores (pp. 281-283):

Com exceção de três famílias de mamelucos e um mercador português ali extraviado, todos os moradores do vilarejo e seus arredores eram índios semicivilizados das tribos dos Xumanas e dos Passés. As matas dos Tunantins, entretanto, são habitadas por uma tribo de índios selvagens chamados Caixanas, que se assemelham bastante, por suas maneiras e condição social, aos desprezíveis Muras do Baixo-Amazonas, não tendo, como eles, jamais mostrado aptidão para uma vida civilizada de qualquer tipo. Suas choças começam a aparecer depois de uma hora de caminhada através dos estreitos e sombrios caminhos no meio da mata. Minha primeira e única visita aos Caixanas foi acidental. Tendo um dia feito uma caminhada mais longa do que a habitual, seguindo por uma das trilhas abertas na mata até que ela se transformasse numa simples picada, fui dar repentinamente numa estrada muito batida, margeada por bonitas licopódias, cujos ramos estendiam suas pontas quase como gavinhas pelas encostas dos montes de terra que formavam a borda do caminho. A estrada, embora de chão batido, era estreita e sombria, e em muitos trechos bloqueada por troncos caídos, que haviam sido postos ali, aparentemente, pelos medrosos índios a fim de impedir o acesso às suas casas. Depois de andar cerca de oitocentos metros por esse escuro caminho, cheguei a um trecho descampado à beira de um riacho, junto ao qual se erguia uma choupana de formato cônico e com uma porta muito baixa. Havia também uma coberta com um girau feito de troncos de palmeira rachados ao meio e algumas grandes gamelas de madeira. Um homem e uma mulher, com duas ou três crianças de pele escura, estavam na coberta, mas ao darem pela minha presença correram espavoridos para a choupana, metendo-se pela portinha a dentro como bichos se enfiando em seus buracos. Instantes depois, o homem pôs a cabeça para fora, com ar de grande desconfiança, mas quando comecei a acenar para ele, fazendo todos os gestos de amizade de que conseguia lembrar-me, ele saiu da casa com as crianças. Seus corpos se achavam inteiramente lambusados de barro preto e de tinta; a única vestimenta que os adultos usavam era uma espécie de avental feito com a entrecasca da Sapucaia, acentuando-se ainda mais o aspecto selvagem do homem pelos cabelos que lhe caíam pela testa até os olhos. Passei duas horas ali, tendo as crianças adquirido suficiente confiança em mim para me ajudarem a procurar insetos. A única arma usada pelos Caixanas é a zarabatana, utilizada apenas na caça de animais para o seu próprio sustento. Esses índios não são um povo guerreiro como a maioria das tribos vizinhas, do Japurá e do Içá.

A tribo inteira dos Caixanas não conta com mais de 400 indivíduos. Nenhum deles é catequizado, e também não moram em aldeias, como os membros mais adiantados da linhagem dos Tupis; ao invés, cada família tem sua própria e solitária choupana no meio da mata. São bastante inofensivos, não tatuam o corpo nem perfuram as orelhas e o nariz. Sua condição social é muito baixa, e na verdade eles se acham bem pouco distantes dos animais selvagens que habitam aquelas mesmas florestas. Não parecem prestar obediência a nenhum chefe comum, não tendo eu conseguido descobrir se tinham pajés ou curandeiros — esses rudes e primitivos representantes da classe clerical. Danças simbólicas ou mascaradas, bem como festas rituais em honra do Jurupari, ou Demônio — costumes que prevalecem em todas as tribos vizinhas — são desconhecidas dos Caixanas. Eles encenam um arremedo de festejos rituais, mas a cerimônia consiste simplesmente em beber o caxiri ou outras bebidas alcoólicas feitas de milho fermentado, banana, etc. Esses festejos, entretanto, já se acham deturpados entre os Caixanas, pois eles nunca bebem até se embriagarem totalmente, nem prolongam as orgias por vários dias e noites como os Juris, os Passés e os Tucanas. Os homens tocam um instrumento musical feito com talos do capim-flecha cortados de vários tamanhos e dispostos à maneira de uma flauta rústica. Eles passam horas a fio soprando essa flauta e balançando em suas esfarrapadas redes de embira, dentro de suas choças escuras e enfumaçadas. Os habitantes do Tunantins dizem que os Caixanas perseguem com tal afinco os animais da floresta, nas proximidades dos povoados, que a caça ali já se está tornando rara. Quando eles matam um tucano, esse evento é considerado de grande importância; sua carne é cozida numa vasilha de barro, com molho de tucupi, e servida com beijus, sendo provada por mais de vinte pessoas. As mulheres não têm permissão de comê-la, devendo contentar-se em molhar pedaços de beiju no molho.

Deixando Tonantins, Bates volta a descer o Solimões, entrando no Jutaí, onde visita os Marauás, conforme ele próprio conta (pp. 283-284):

30 de novembro. — Deixei o Tunantins numa escuna mercante de oitenta toneladas, pertencente a um mercador de Ega chamado Batalha, que tinha estado viajando o verão inteiro, recolhendo produtos ao longo do rio. Comandava a embarcação um rapaz paraense chamado Francisco Raiol, que era meu amigo. Chegamos no dia 3 de dezembro à foz do Jutaí, um volumoso rio de cerca de oitocentos metros de largura e correnteza vagarosa, que faz parte de uma série de seis rios, cuja extensão varia de 600 a 1.600 quilômetros, que descem do sudoeste e atravessam as terras selváticas situadas entre a Bolívia e o Alto-Amazonas, desembocando todos neste rio, entre o Madeira e o Ucaiali. Ficamos atracados quatro dias na foz do Sapó, um pequeno afluente do Jutaí que vem do sudeste, pois Raiol tinha enviado uma igarité ao Cupatana, um volumoso tributário cuja foz ficava localizada alguns quilômetros rio acima, a fim de buscar um carregamento de peixe salgado. Durante esse tempo fizemos vários passeios de bote a diversos lugares das vizinhanças. A excursão mais demorada foi feita a algumas casas de índios situadas a vinte e poucos quilômetros subindo o Sapó, uma jornada que foi feita com apenas um remador indígena e na qual gastamos um dia inteiro. O Sapó não tem mais do que cinqüenta metros de largura; suas águas têm uma coloração mais escura do que as do Jutaí e, como a maioria desses pequenos rios, fluem parcialmente à sombra, entre dois paredões verdes da selva. Ao subirmos o rio, passamos por sete habitações, a maioria delas oculta no meio da luxuriante vegetação da margem, sendo sua existência notada unicamente por causa das pequenas brechas abertas na muralha verde e pela presença de uma ou duas canoas atracadas nos pequenos e ensombrados ancoradouros. Seus moradores consistem em sua maior parte de índios da tribo Marauá, cujo território primitivo incluía todos os pequenos cursos d'água secundários situados nas proximidades da foz do Jutaí e do Juruá. Vivem em pequenos agrupamentos ou em núcleos familiais isolados; não possuem um chefe comum e geralmente são considerados pouco inclinados a adotar costumes civilizados ou a se mostrar amigos dos brancos. Uma das casas pertencia a uma família Juri; ficamos conhecendo o chefe da casa, um ancião de porte ereto e aparência fidalga, com uma grande tatuagem no meio da face, segundo o costume de sua tribo; ele se achava pescando com linha e anzol no seu ancoradouro, à sombra de uma árvore colossal, e, quando passamos, cumprimentou-nos à maneira grave e cortês dos índios de boa linhagem.

Chegamos à última casa do lugar — que na verdade eram duas — às dez da manhã e ali permanecemos durante as horas mais quentes do dia. As casas, construídas no alto de um barranco argiloso, eram de formato quadrangular; uma parte era aberta, como nos ranchos, e a outra fechada com toscas paredes de barro, formando um ou mais cômodos. Seus moradores eram algumas famílias marauás, compostas de cerca de trinta pessoas. Receberam-nos de maneira cordial e franca, o que se deveu ao fato de ser o Sr. Raiol um velho conhecido deles, além de benquisto por todos. Nenhum deles tinha tatuagens, mas os homens exibiam grandes orifícios nos lóbulos das orelhas, nos quais introduziam batoques de madeira; seus lábios também eram perfurados, mas os buracos eram menores. Um dos rapazes, um belo tipo de homem de quase um metro e noventa de altura, robusto, de nariz grande e aquilino, parecia particularmente desejoso de me agradar e me mostrou qual era a finalidade dos orifícios feitos nos lábios, enfiando neles uma série de varetas brancas e em seguida contorcendo a boca e fazendo uma porção de caretas, para mostrar arrogância na presença do inimigo. Quase todos eles tinham a pele marcada por manchas escuras, causada por uma doença de pele muito comum nessa parte do país. O rosto de um dos homens apresentava-se totalmente negro, dando a impressão de ter sido pintado de preto. Outros tinham a pele apenas sarapintada. As manchas pretas eram duras e ásperas, mas não escamosas, e orladas por um friso de cor mais pálida do que o tom natural da pele. Vimos muitos índios e alguns mestiços em Tunantins com essas manchas, tendo mais tarde encontrado também alguns em Fonte Boa. A doença deve ser contagiosa, pois me disseram que um comerciante português ficou com a pele toda manchada depois de viver alguns anos com uma mulher índia. É um fato curioso que, embora essa doença exista em vários pontos ao longo do Solimões, nenhum morador de Ega exibisse sinais dela; os primeiros exploradores da região, ao notarem a freqüência com que eram encontradas pessoas com manchas na pele, em certas localidades, acharam que essas manchas eram características de certas tribos indígenas. Nas casas à beira do Sapó, as crianças mais novas não eram manchadas, mas duas ou três delas, de cerca de dez anos, já mostravam os sinais iniciais da doença por algumas manchas amareladas na pele; além do mais, tinham um aspecto macilento e doentio. Os adultos, entretanto, não davam a impressão de que as manchas afetavam a sua saúde. Um mestiço de meia-idade me disse, em Fonte Boa, que havia curado a si próprio desse mal com elevadas doses de salsaparrilha; as manchas escuras tinham feito cair sua barba e suas sobrancelhas, mas depois que ele se curou elas voltaram a crescer.

Quando meu novo amigo, o rapaz de elevada estatura, me viu recolhendo insetos nas vizinhanças das casas, depois do jantar, ele se aproximou e, segurando-me pelo braço, levou-me ao telheiro onde era guardada a mandioca e indicou por meio de gestos — já que sabia apenas umas poucas palavras de tupi — que tinha algo para me mostrar. Foi grande a minha surpresa quando ele, depois de subir no girau e retirar do alto de um mourão um objeto pendurado nele, me mostrou com ar de grande mistério uma enorme crisálida pendente de uma folha, a qual depositou cuidadosamente na minha mão, dizendo "Pana-paná curi" ("borboleta, daqui a pouco"). Fiquei sabendo, então, que a metamorfose dos insetos era conhecida daqueles selvagens. Achando-me, porém, impossibilitado de conversar com o meu novo amigo, não tive meios de apurar que idéias esse fenômeno teria feito nascer em sua cabeça. O bom rapaz não se afastou do meu lado durante o resto de minha permanência no lugar; acreditando que eu fora até ali em busca de informações, fez tudo o que podia para colocá-las ao meu alcance. Fabricou na minha presença uma certa quantidade de ipadu, ou pó de coca, para que eu visse qual o processo empregado, executando o trabalho com muitos gestos cerimoniais, como se fosse um feiticeiro fazendo uma interessante mágica.

Em 1857, Bates novamente embarcou no vapor "Tabatinga" para ir a São Paulo de Olivença. Entre os passageiros do barco encontrou um comerciante juri, que assim descreve (pp. 288-289):

Havia a bordo, entre os passageiros, um índio de meia-idade, da tribo Juri; era baixo e atarracado, com feições que lembravam muito as do falecido Daniel O'Connell [líder nacionalista irlandês, 1775-1847]. Seu nome era Caracará e seu rosto dava a impressão de estar permanentemente contraído num sorriso alvar, impressão essa que era acentuada pelas suas tatuagens — um círculo azul ao redor da boca, com um traço saindo dos cantos dos lábios em direção às orelhas. Vestia-se à moda européia — chapéu preto, calça e paletó — e parecia ressentir-se bastante do calor que, evidentemente, reina a bordo de um navio nas horas de sol a pino. Esse índio era um homem de espírito decidido, ambicioso e empreendedor, qualidades essas bastante raras em sua raça, já que um dos defeitos fundamentais do índio é a falta de firmeza do seu caráter. Estava de volta para a sua terra nas margens do Içá, vindo do Pará, onde tinha ido vender um grande carregamento de salsaparrilha que havia colhido com a ajuda de um punhado de índios, os quais sabia convencer, ou obrigar, a trabalhar para ele. Fiquei naturalmente interessado em saber que idéias um representante tão progressista da raça indígena teria adquirido depois de freqüentar tão longamente os ambientes civilizados. Ao conversar, porém, com esse nosso companheiro de viagem, fiquei bastante decepcionado; ele não havia visto nada nem formara idéia sobre coisa alguma que não se relacionasse diretamente com o seu insignificante ramo de comércio; sua mente continuava exatamente como era antes, isto é, totalmente vazia no que se referia a idéias gerais e a assuntos mais elevados. O raciocínio embotado dos índios da Amazônia, voltado unicamente para as coisas práticas, e a ausência de curiosidade e de inquietação intelectual, que parecem inerentes ao seu caráter — embora até certo ponto haja probabilidade de um certo progresso nesse particular — fazem deles pessoas de convívio totalmente desinteressante, à semelhança do que ocorre em qualquer lugar do mundo com as pessoas das classes baixas. Caracará desembarcou em Tunantins com a sua carga, que consistia numa volumosa quantidade de pacotes de artigos europeus.

O chefe de São Paulo de Olivença era Antônio Ribeiro, um mestiço de branco e ticuna. Ele era o Diretor de Índios. Bates ficou aí cinco meses. E assim é que descreve os ticunas (pp. 292-294):

Os índios Tucunas pertencem a uma tribo muito semelhante às dos Xumanas, Passés, Juris e Maués, no que se refere à sua aparência geral e costumes. Como essas outras tribos, eles são um povo agrícola e de vida sedentária, cada horda obedecendo a um chefe de maior ou menor influência, segundo sua energia e ambição, e possuindo um pajé, ou curandeiro, que incentiva suas superstições. São, porém, muito mais indolentes e depravados do que outros índios pertencentes a tribos mais adiantadas. Não se mostram tão aguerridos nem tão leais como os Mundurucus, embora se assemelhem a eles em muitos aspectos; também não possuem o físico esbelto, o ar digno e o temperamento afável dos Passés. Não existem, entretanto, diferenças marcantes entre eles e essa tribo — a mais adiantada de todas. Tanto os homens como as mulheres apresentam-se tatuados, consistindo essas tatuagens, às vezes, num arabesco desenhado em cada face; de um modo geral, porém, elas são compostas de uma série de linhas curtas e paralelas, traçadas no rosto. A maioria das pessoas mais velhas usam pulseiras nos pulsos e tornozelos e ligas de couro de anta ou de entrecasca de árvore. Andam sempre nus, a não ser nos dias de festa, quando se enfeitam com penas e usam máscaras feitas da entre casca de uma certa árvore. Eles se mostraram muito ariscos nas minhas primeiras visitas às suas casas, fugindo todos para o mato quando eu chegava, mas depois foram-se familiarizando comigo, tendo eu verificado que se tratava de um povo inofensivo e pacato.

A maior parte dos que viviam na primeira maloca ocupavam uma habitação comum — uma ampla choupana de formato ablongo, cuja parte interna era arranjada de forma tão desordenada e assimétrica que dava a impressão de ter sido construída por vários pedreiros que trabalhassem independentemente e fossem colocando vigas, esteios, etc. sem tomar conhecimento do que os outros estavam fazendo. As paredes e o teto eram cobertos com um trançado de folhas de palmeira. Redes penduradas entre os grossos mourões que sustentavam o teto deixavam uma passagem livre no centro, onde era acendido o fogo; num dos lados erguia-se um jirau feito de troncos de palmeira partidos ao meio no sentido longitudinal. Os Tucunas se sobressaem entre todas as tribos na manufatura de objetos de barro. Fabricam potes de boca larga, para o tucupi e a caiçuma — ou molho de mandioca — com capacidade para vinte ou mais galões, ornamentando-os na parte externa com listras diagonais cruzadas de várias cores. Esses potes, juntamente com panelas, vasos pequenos para água, zarabatanas, carcases, sacolas de matiri contendo vários objetos, cestos, peles de animais e muitas coisas mais constituem o principal mobiliário de suas choupanas, tanto das grandes quanto das pequenas. Os seus chefes, quando morrem, são enterrados no chão de suas choupanas, com os joelhos dobrados, dentro de grandes vasos de barro.

Os Tucunas se entregam às danças semi-religiosas e às bebedeiras rituais — comuns às tribos sedentárias do Amazonas — com muito mais desregramento do que a maioria das outras tribos. O Jurupari, ou Demônio, é o único ser superior de que eles têm alguma noção, e seu nome está associado a todas as suas cerimônias, mas é difícil determinar quais os atributos que eles lhe dão. Parece que o consideram simplesmente como um espírito entre travesso e maligno, que se acha por trás de todos os malfeitos que acontecem em sua vida diária e cujas causas não se tornam imediatamente óbvias para o seu curto entendimento. É inútil tentar arrancar alguma informação de um Tucuna sobre esse assunto; ele assume um ar de grande mistério e dá respostas inteiramente confusas às perguntas. Era evidente, entretanto, que a idéia de um espírito benfazejo que agisse como um Deus ou Criador ainda não tinha entrado na mente desses indígenas. Há uma grande similaridade nas cerimônias e rituais de todas as tribos, quer se trate de uma festa de casamento, da maturação das frutas, do corte ritual do cabelo dos filhos ou de uma festa organizada simplesmente para satisfazer o seu gosto pela orgia. Algumas das tribos se paramentam, nessas ocasiões, com vistosas penas de papagaios e araras. O chefe usa um cocar feito com as penas do peito do tucano, presas a uma rede tecida com a fibra de uma bromélia; esse cocar é encimado por um penacho feito com as penas da cauda da arara. As faixas que cingem seus braços e pernas são também ornadas com feixes de penas. Outros usam trajes mascarados, compostos de longas capas que vão até abaixo dos joelhos e feitos com a fibra esbranquiçada da entre casca de uma certa árvore; essa fibra é tecida de forma tão regular que se assemelha a um pano. A capa cobre também a cabeça, tendo dois buracos para os olhos. Dois pedaços de tecido, esticados sobre um aro de madeira flexível, são costurados dos dois lados da cabeça, para representar as orelhas, e as feições são pintadas no pano de maneira exageradamente grotesca, com fortes riscos amarelos, vermelhos e azuis. Os trajes são costurados com linha feita da entre casca da uaicima. Às vezes são usadas, nessas ocasiões, máscaras grotescas representando cabeças de macaco ou de outros animais, as quais são feitas esticando-se um couro ou pedaço de tecido por cima de um cesto, que serve de armação. A máscara maior e mais horrenda é a do Jurupari. Metidos nesses trajes festivos, os Tucunas executam suas monótonas danças, que se resumem num sapateado e no balanço do corpo de um lado para o outro, ao som de cantos e de instrumentos de percussão; isso se prolonga por três ou quatro dias e noites, ininterruptamente, durante os quais eles ingerem enormes quantidades de caiçuma, além de fumarem e cheirarem pó de paricá.

Não consegui apurar se havia algum significado simbólico mais profundo nessas danças com máscaras, nem se elas celebravam algum evento da história da tribo. Algumas delas parecem vagamente propiciatórias a Jurupari, mas o índio mascarado que representa o demônio muitas vezes se embriaga junto com o resto e nunca é tratado com reverência especial. Pelo que pude verificar, esses índios não preservam a lembrança de eventos anteriores à época em que viveram os seus avós. Quase toda data jubilosa é motivo para um festival, inclusive os casamentos. Quando um rapaz deseja casar-se com uma moça Tucuna, tem de pedir sua mão aos seus pais, que em seguida cuidam de todos os preparativos e marcam a data da cerimônia. Quando me achava em S. Paulo foi realizado um casamento na semana do Natal, o qual foi festejado durante três ou quatro dias com grande animação; nas horas mais quentes do dia o entusiasmo arrefecia um pouco, mas logo recrudescia ao cair da tarde. Durante todo o tempo a noiva, enfeitada de penas, permaneceu sob a guarda das índias mais velhas, cuja função consistia, ao que parece, em manter diligentemente o noivo à distância até o final do cansativo período de danças e bebedeiras. Os Tucunas têm o singular costume — juntamente com os Colinas e os Maués — de tratar as mocinhas da tribo, no momento em que se tornam púberes, como se elas tivessem cometido um crime. Elas são levadas para o jirau, junto ao teto sujo e fumarento da choupana, e mantidas ali às vezes durante um mês, em regime de fome. Contaram-me que uma pobre moça morreu ao ser submetida a esse tratamento.

E Bates também conta dos maiorunas do rio Javari (pp. 294-295):

A única outra tribo das redondezas [de São Paulo de Olivença] sobre a qual consegui obter algumas informações foi a dos Majeronas, cujo território abrange várias centenas de quilômetros na margem ocidental do Rio Jauari, um afluente do Solimões situado 180 quilômetros depois de S. Paulo. Esses índios são um povo feroz, hostil e indomável, como os Araras do Rio Madeira; são também antropófagos. A navegação do Jauari tornou-se impraticável por causa das emboscadas dos Majeronas, que sempre tocaiavam os viajantes nas margens do rio, principalmente os homens brancos.

Quatro meses antes de minha chegada a S. Paulo, dois jovens mestiços (quase brancos) do vilarejo foram vender alguns produtos no Jauari, uma vez que fazia um ano ou dois que os Majeronas não davam sinais de hostilidade. Não tardou muito que a canoa voltasse sem eles, com a notícia de que os dois rapazes tinham sido mortos a flechadas e devorados pelos selvagens. José Patrício, sempre pronto a defender a lei e a ordem, despachou para o local um grupo de homens armados, da Guarda Nacional, com o fim de investigar o fato e reagir à altura, caso o duplo assassinato tivesse ocorrido sem provocação. Quando eles chegaram à aldeia dos índios que tinham comido os dois rapazes, encontraram-na deserta, com exceção da presença de uma moça, que se achava ausente, na mata, quando o seu povo fugira; essa moça foi trazida pelos guardas para S. Paulo. Soube-se por intermédio dela e de outros indígenas do Jauari que os dois rapazes haviam traçado, eles próprios, o seu fim ao se comportarem de maneira condenável com as mulheres da tribo. A moça, ao chegar ao vilarejo, ficou entregue aos cuidados do Sr. José Patrício, que mandou que a batizassem com o nome de Maria e lhe ensinassem o português. Tive oportunidade de vê-la muitas vezes, pois o meu amigo a enviava diariamente à minha casa, para encher os jarros de água, acender o fogo, etc. Eu próprio conquistei a sua confiança, ao lhe extrair das costas uma larva da mosca Oestrus, curando-a de um doloroso tumor. Ela era, inegavelmente, a mais bem-humorada e, sob todas as aparências, a mais bondosa de todas as representantes de sua raça que eu tinha conhecido até então. Era alta e muito robusta; sua pele tinha um tom mais claro do que a dos indígenas em geral, e suas maneiras lembravam muito mais as de uma alegre e descuidada rapariga do campo — como as que encontramos todo dia entre as classes operárias nas aldeias da Inglaterra — do que as de uma canibal. Ouvi-a contar, com absoluta inocência e tranqüilidade, que havia comido um pedaço do corpo dos rapazes que haviam sido assados pela sua tribo. Mas o que tornou ainda mais incongruente a situação foi que entre os presentes, nessa ocasião, se achava a viúva de uma das vítimas, que era minha vizinha; a única manifestação de interesse pela narrativa, que essa mulher deu, foi rir-se do português estropiado que a moça falava ao contar sua horripilante história.

O poeta Gonçalves Dias
visita as escolas do Solimões

Em 1858 Antônio Gonçalves Dias tinha 36 anos de idade e estava, havia três anos, na Europa. Já tinha publicado toda a sua obra poética, que o tornara famoso. Era também membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, ao qual já apresentara pelo menos dois trabalhos relativos a indígenas, um em que comparava os nativos do "Brasil e Oceânia" e outro sobre a questão da existência ou não das mulheres guerreiras, as amazonas, ambos lidos na presença do imperador D. Pedro II. Foi então que o governo imperial o nomeou chefe da seção etnográfica da expedição científica para estudar as províncias setentrionais do Brasil, incumbindo-o também da narrativa da viagem. Essa "Comissão Científica", resultante de uma proposta do já referido Instituto, partiu em 1859 do Rio de Janeiro para o Ceará, sob as críticas dos opositores do governo, que não viam nesse empreendimento mais do que esbanjamento do dinheiro público e a apelidaram de "Comissão das Borboletas". O desempenho da Comissão não foi feliz. Os participantes da expedição não se entenderam e retornaram à capital do Império em 1861 com resultados muito pobres. Porém Gonçalves Dias já tinha deixado os outros participantes e estava no Maranhão, onde recebeu a notícia de que o governo havia retirado seu apoio à Comissão. Assim mesmo, resolveu visitar por conta própria o Pará e o Amazonas, como já havia planejado [24].

No Amazonas, Gonçalves Dias se dispôs a realizar algumas tarefas para o governo provincial. Uma delas foi fazer um levantamento da situação das escolas no rio Solimões. Sua viagem foi rápida e seu relatório, apesar de interessante, é bastante breve. Nomeado para realizar a tarefa no dia 28 de fevereiro de 1861, assina o relatório em 26 de março do mesmo ano, o que significa que subiu e desceu o Solimões em menos de um mês. Tal rapidez se explica porque, tendo percorrido o rio numa embarcação a vapor, cujo nome ele não dá, mas que devia de ser a que fazia a linha regular, tinha que tomar as informações sobre as escolas nas poucas horas que ela parava nos portos, e nela mesmo reembarcar para continuar a viagem.

Seu relatório [25] indica que ele assim visitou Coari, Tefé, Fonte Boa, Olivença e Tabatinga. Em Coari não encontrou a escola em funcionamento porque o professor havia deixado de dar aulas por se supor aposentado. Esse professor lhe informou que no último ano letivo a escola só contara com dez alunos, número inferior ao mínimo de doze exigido pela legislação provincial para uma escola funcionar. Queixou-se ainda o professor de que seu pagamento chegou a atrasar-se nove meses.

Em Tefé o professor era o Rev. Luís Gonçalves de Sousa. Gonçalves Dias encontrou a escola em funcionamento com 18 alunos. Segundo o professor, haveria mais 13 ou 15 alunos que estavam faltando porque, devido à carestia de víveres, as famílias menos remediadas haviam se retirado para outros lugares. O juiz municipal também tinha uma escola primária particular freqüentada por sete ou oito meninos. Calcula assim o visitador que haveria por volta 40 meninos em idade escolar e que, se fosse acrescentado outro tanto de meninas, esse número chegaria aos 80. A julgar por esse reparo, embora Gonçalves Dias não o diga explicitamente, as meninas não iam à escola. De fato, ele registra que houve ali uma professora para ensinar às meninas, que chegou a ter mais de doze alunas, mas a cadeira não estava preenchida por falta de pessoas habilitadas. O professor atribuía a falta à escola à ignorância ou desleixo dos pais, mas talvez a razão mais forte esteja na observação de que a freqüência diária às aulas parecia regular, menos nos meses de agosto a dezembro, quando tanto os pobres quanto os considerados ricos se retiravam com suas famílias para as pescarias. Segundo foi informado ao visitador, nas localidades vizinhas, Alvarães e Nogueira, haveria um número de meninos igual ao de Tefé.

Em Fonte Boa Gonçalves Dias não pôde visitar a escola em atividade porque só permaneceu em terra no intervalo entre o período da manhã e o da tarde. Mas o professor, Frei Bernardo de N.S. de Nazaré Ferreira, que também havia ensinado em Tabatinga, lhe deu as informações. A escola tinha 19 alunos. Havia mais 12 no lugar em idade de freqüentá-la, mas destes só quatro se matricularam. Aí também a freqüência caía na segunda metade do ano, nos meses de pesca. Considerava o professor que nem todas as famílias se retiravam para a pesca e aquelas que se ausentavam bem poderiam confiar seus filhos às que ficavam, de modo a não perderem as aulas.

Em Olivença o professor era o Rev. Manuel Ferreira Barreto, que Gonçalves Dias considerou como inteligente e zeloso, a manter a escola em boa ordem e asseio. Ele seria também o vigário e o diretor de índios do lugar. A escola tinha 18 alunos, mas no dia da visita estavam faltando seis. Também aí havia o problema das ausências durante os meses de pescaria. Um outro problema apontado era de os meninos costumarem deixar a escola antes de completar o curso e, assim, sem prestarem o exame final. Além de decepcionar o professor por não ver reconhecidos os seus esforços por essa conclusão formal, ainda o privavam da gratificação que a lei lhe concedia por cada exame final. Havia muitos meninos em idade escolar que não estavam matriculados na escola.

Em Tabatinga a escola funcionara até 1860. Seu professor fora aquele que agora estava em Fonte Boa. Gonçalves Dias sugeria que governo não extinguisse a escola, uma vez que poderia ser freqüentada por uns 15 alunos.

Apesar da rapidez de sua passagem pelas escolas, o relatório de Gonçalves Dias explicita ou nos deixa entrever alguns problemas interessantes. a) As escolas visitadas eram freqüentadas só por meninos, nunca por meninas. Provavelmente só docentes do sexo feminino seriam considerados adequados para dar aulas a meninas. Logo, as mulheres do Solimões deviam ser na sua grande maioria analfabetas. Talvez fosse essa a razão para não existir professoras, a não ser que fossem enviadas de fora da região. b) O período de pesca quase esvaziava as escolas. c) Apesar de ser obrigatório por lei, muitos pais deixavam de matricular seus filhos na escola. d) Os três únicos professores de escola pública que Gonçalves Dias encontrou em atividade eram sacerdotes. Explicitamente num caso, mas talvez em todos os três, o professor era também vigário e diretor de índios, o que faz Gonçalves Dias sugerir ao governo entregar as escolas a professores leigos, não sobrecarregados com outras atividades. e) Quando ocorre a Gonçalves Dias referir-se ao mobiliário, a escola não o tem, ele é emprestado. Mas aos alunos era distribuído o material escolar, embora só aos pobres: cartilhas, tabuadas, traslados, compêndios, tinteiros, papel. Difícil saber o que seriam os traslados; e também o que seriam outros textos que os alunos conseguiam e que às vezes dos professores solicitavam, como o método facílimo ou o tesouro de meninos. f) Reclama Gonçalves Dias que as aritméticas ainda ensinavam o velho sistema português de pesos e medidas, quando já então no próprio Portugal se havia adotado o sistema métrico decimal. A julgar pelas palavras dele, o Brasil ainda não o havia adotado ou se esforçado no sentido de sua aceitação pelo povo em geral. g) Faz também observações sobre a necessidade de se coletar dados de modo a organizar uma estatística relativa às crianças em idade escolar. Mas reconhece a dificuldade diante do fato de que na Amazônia boa parte dos mortos eram sepultados sem a certidão de óbito, e os nascimentos eram dificilmente contabilizados, uma vez que os sacerdotes em suas andanças por longas distâncias batizavam crianças de todas as idades (a certidão de batismo, no tempo do Império, fazia as vezes de certidão de nascimento, uma vez que a religião católica era oficial). h) E ainda faz considerações sobre a dificuldade de a escola alcançar seus objetivos na Amazônia enquanto um boa parte da população fora das vilas e povoados vivesse da caça, pesca, produtos silvestres, deslocando-se de um lado para outro. Enquanto não mudasse de hábitos e se fixasse, a escola teria poucos resultados. A essa observação (pp. 21-22) acrescenta uma outra que nos causa estranheza, vinda que é de um poeta indianista: Gonçalves Dias considerava que uma das vantagens da freqüência às escolas era fazer os alunos se desabituarem da língua geral e aprenderem a usar com correção a língua portuguesa (p. 16).

Louis Agassiz

Louis Agassiz era suíço de expressão francesa. Ainda jovem recebeu de Martius a incumbência de estudar a coleção de peixes do Brasil, levada para a Europa por seu colega de viagem Spix, que falecera precocemente em 1826. Assim, antes mesmo de conhecer pessoalmente o Brasil, Agassiz publicou um livro sobre seus peixes em 1829. Agassiz estudou as diferentes composições da fauna aquática em rios europeus, trabalhou na classificação de peixes fósseis e dedicou-se também ao estudo das glaciações de eras pré-históricas com base nos blocos de pedra por elas deslocados. Já era cientista de renome quando foi morar nos Estados Unidos, e pouco depois convidado a fazer parte do corpo docente da Universidade de Harvard.

Em 1864, por recomendação médica resolveu fazer um período de repouso em um outro clima e escolheu o Brasil. Mas, como o Brasil era a oportunidade de desenvolver mais o estudo dos problemas com os quais trabalhava, o que deveria ser repouso acabou por se transformar numa expedição científica, com vários participantes. Partiu dos Estados Unidos em 1865 acompanhado de cerca de quinze pessoas, algumas das quais, por motivo de saúde, desistiram logo nos primeiros meses. Durante a viagem marítima, Agassiz resolveu fazer uma palestra diária, para entrosar os participantes com os objetivos que almejava; fez um total de quatorze.

No Brasil, após as visitas a diversos locais no Rio de Janeiro e vale do Paraíba, o grupo se dividiu em três partes, cada qual dirigida à exploração de um região. Para a Amazônia foram Agassiz, sua esposa, Elizabeth, que havia se encarregado de manter um diário de viagem [26], o desenhista Jacques Burkhardt, os voluntários William James, Newton Dexter, Walter Hunnewell e S.V.R. Thayer. Para o vale do São Francisco, foram o geólogo Orestes Saint-John, o ornitologista John A. Allen, o preparador George Sceva e o voluntário Thomas Ward, sendo que o primeiro ainda foi ao rio Tocantins e o último ao rio Parnaíba. O geólogo Charles F. Hartt e o voluntário Edward Copeland excursionaram pelo Rio de Janeiro, Espírito Santo, sudeste de Minas Gerais e sul da Bahia. Na expedição da Amazônia ainda estavam com Agassiz pessoas que não vieram junto com ele dos Estados Unidos, como o colecionador e preparador Bourget, o major Coutinho e o rapaz chamado Talisman.

É digno de nota que dois participantes vão se destacar futuramente no mundo científico e intelectual: Charles F. Hartt, que retornará mais tarde ao Brasil e dará importante contribuição ao desenvolvimento da Geologia no país; e William James, que será mundialmente famoso como psicólogo e filósofo.

No Solimões Agassiz trabalha voltado para seus interesses científicos principais. Não se mostra muito interessado em descrever o modo de viver dos indígenas, dos quais raramente usa os etnônimos. Por outro lado, não faz a todo tempo comentários preconceituosos sobre eles, como é freqüente nos naturalistas anteriores. No livro de viagem que escreveu com sua esposa até faz comentários elogiosos a Alexandrina, uma cafusa de Tefé, onde ele ficou um mês, que muito o ajudou (pp. 294-295):

Decididamente Alexandrina foi uma preciosa aquisição, não somente no ponto de vista doméstico, como tambem no científico. Ela aprendeu a limpar e preparar muito convenientemente os esqueletos de peixes e se tornou muito útil no laboratório. Além disso, conhece todos os caminhos da floresta e me acompanha nas minhas herborizações. Com essa agudeza de percepção própria às pessoas cujos sentidos têm sido profundamente exercitados, ela distingue imediatamente as menores plantas em flor ou em fruto. Agora então que ela sabe o que eu procuro, é uma auxiliar muito eficiente. Ágil como um macaco, num abrir e fechar de olhos ela sobe até o alto das árvores para colher um galho florido; e aqui, onde numerosas árvores se elevam a grande altura sem que o tronco se ramifique, uma auxiliar como ela não presta medíocre auxílio. As coleções crescem com rapidez; cada dia chegam novas espécies; torna-se dificil cuidar de todas e o nosso artista não pode achar absolutamente tempo para desenhá-las.

William James, encarregado, junto com Talisman, da coleta de peixes nos rios Tapajós (também com Dexter), Içá e Jutaí (pp. 222 e 301-302), foi quem desenhou em Tefé o retrato de Alexandrina (p. 307). Pessoas como Alexandrina, que com seu saber e suas habilidades ajudaram os naturalistas do século XIX na coleta de espécimes da flora e da fauna brasileira, constituem o tema de um interessante artigo de Ildeu de Castro Moreira [27].

A Guerra do Paraguai

De 1865 a 1870 o Brasil manteve guerra com o Paraguai. Embora os combates tenham ocorrido numa região muito afastada da Amazônia, não deixaram de afetá-la e nem deixaram de chegar ao conhecimento de seus moradores que viviam longe dos centros urbanos mais importantes.

Curt Nimuendaju [28], que fez pesquisa junto aos Ticunas na primeira metade da década dos anos 1940, ouviu deles a respeito dos "varaváyu", isto é, "paraguaios", palavra com que designavam as tropas brasileiras que iam recrutar, entre índios e sertanejos, por bem ou por mal, soldados para a guerra. Os ticunas ofereciam resistência a essas tropas e os poucos que retornaram da guerra do Paraguai levaram uma nova epidemia de varíola, que causou devastação entre os seus (p. 9).

No volume organizado por Maria Helena P.T. Machado (p. 117), já referido em nota, um texto do jovem William James, então na expedição de Louis Agassiz, conta de sua dificuldade de encontrar canoa e remadores em São Paulo de Olivença, porque sendo a estação de pesca, quase todos os moradores haviam se retirado para as praias, e alguns estavam escondidos na mata fugindo ao recrutamento destinado à guerra do Paraguai.

O próprio Agassiz e sua esposa, numa outra parte da Amazônia, relatam o embarque de alguns recrutas em Pedreira (Moura), onde o rio Negro recebe o Branco. Embora não explicitem que eles se destinassem ao Paraguai, as expressões "se bater pelo governo" e "combater" parecem indicá-lo (pp. 412-413 e 415):

Tivemos esta manhã uma triste prova da brutalidade com que aqui se procede ao recrutamento. Bem nos haviam dito! Três índios, que foram presos em Pedreira, e que desde alguns dias aguardavam ocasião de serem enviados para Manaus, foram trazidos para bordo do nosso navio. Esses infelizes tinham as pernas presas num grosso barrote de madeira, contendo orifícios que mal davam para deixar passar os tornozelos. Só se mexiam por necessidade e com grande dificuldade. Vieram meio empurrados e meio içados para bordo, e um deles, presa de febres, tinha tais calafrios que, quando o quiseram deixar andar pelas próprias pernas, eu o vi tremer, do lugar em que me achava, embora entre mim e ele houvesse a metade do comprimento do tombadilho. Esses índios não pronunciam uma única palavra de português; não podem compreender por que os fazem partir; só sabem uma coisa: é que são pegados na floresta e tratados como os últimos dos criminosos, punidos barbaramente sem que nada tenham feito, e mandados se bater pelo governo que os trata desse modo. Devo dizer, para honra do nosso comandante, que este se mostrou vivamente indignado por ver em que estado lhe traziam aqueles homens. Fez tirá-los imediatamente da trave em que estavam presos, mandou dar-lhes vinho e alimento e tratou-os com toda a benevolência possível. Protestou contra tais processos inteiramente ilegais e contrários às intenções da autoridade central. Aí está no entanto como se faz o recrutamento nos distritos indígenas! e o argumento daqueles que pretendem justificar tal barbaria, é que os índios, como todos os demais cidadãos, têm obrigação de combater em defesa das leis que os protegem; que o Estado necessita de seus serviços, que aquele é o meio único de os conseguir, que a má vontade deles é patente, sendo sem parelhas a sua habilidade em fugir. Além desses três homens, havia ainda dois outros: um voluntário e o piloto para a travessia das cataratas do rio Branco. Um homem como este último devia estar isento do serviço militar, em bem da coletividade, pois bem poucos indivíduos há que conheçam a navegação desses perigosos rios, cujo leito é cortado de corredeiras; sem dúvida, o Presidente da província, quando souber da sua profissão, fa-lo-á voltar às suas ocupações.

Aliás, vale a pena assinalar que Agassiz saiu dos Estados Unidos no final da guerra de Secessão (1860-1865) para chegar ao Brasil no início da guerra do Paraguai (1864-1870). No seu primeiro dia de viagem (2 de abril de 1865), navegando junto à costa norte-americana, viu uma imensa nuvem de fumaça para os lados do continente; tratava-se do último assalto a Petersburg, na Virgínia, como os viajantes vieram a saber mais tarde (p. 15). Já no Brasil, a viagem do grupo de pesquisa que devia de sair do Rio de Janeiro para a Amazônia teve de ser adiada porque o navio em que iam viajar foi requisitado para levar tropas destinadas a enfrentar os paraguaios (p. 160).

Grandes modificações

Dos anos cinqüenta aos anos setenta do século XIX, a Amazônia, inclusive o Solimões, passa por grandes modificações.

Uma delas é a introdução da navegação a vapor, em 1853, sendo a primeira companhia a explorá-la a de um conhecido empresário do Império, o Barão de Mauá. A navegação dos rios amazônicos era até então feita por barcos impulsionados a remos e varas por remeiros indígenas e, quando possível, a vela.

Ainda quanto à navegação, uma outra modificação importante ocorre alguns anos depois, em 1867, quando o Brasil abre os rios Amazonas e Solimões à navegação internacional.

É nesse período também que começa a se intensificar a extração do látex da seringueira. A procura da borracha é tanta que não há trabalhadores suficientes. Um severo período de seca ocorrido em 1877 estimula a migração de nordestinos para a Amazônia.

Provavelmente foi o incremento de relações com o restante do Brasil, com a navegação a vapor, a guerra e a imigração nordestina, que provocou a crescente preferência pelo português, em prejuízo do uso da língua geral, uma língua tupi falada pelos brancos e pelos índios que viviam em contato íntimo com eles, mesmo que sua língua original fosse de outra família [29].

O tempo da borracha

Antes de La Condamine começar a divulgar na Europa as potencialidades da borracha, os portugueses já tinham aprendido com os omáguas ou cambebas a fazer uso delas, confeccionando pequenos artefatos como seringas. Até então os europeus só sabiam fazer seringas de duas peças: um tubo exterior e um cilindro fechado, o êmbolo, que deslizava dentro dele. A borracha permitia fazer uma seringa sem o êmbolo: bastava apertar a bola oca de borracha para fazer sugar ou esguichar o líquido. Daí talvez o nome "seringueira" dado à mais importante das espécies vegetais produtoras do látex. Confecção de recipientes, impermeabilização de tecidos, foram outros usos dados à borracha pelos indígenas e outros habitantes da Amazônia. O produto chamava a atenção dos europeus porque abria possibilidade de aprimorar certos artefatos: substituir as mangueiras de couro, que permitiam a saída da água pela costura, fazer capas com material menos pesado e mais barato que o couro, fazer bolas que não fossem de bexiga de porco.

Além da identificação das espécies que produziam a borracha, o outro problema que inicialmente se colocava para os pesquisadores era como fazer a borracha moldável, uma vez que o látex chegava duro à Europa. François Fresneau, amigo de La Condamine e que passou quatorze anos na Güiana Francesa, comunicou em 1762 ao governo francês a possibilidade de dissolução do látex em terebintina. Mas o único produto de látex que era usado correntemente na Europa no último quartel século XVIII era a borracha de apagar lápis. Em 1803 surgiu em Paris uma fábrica para produzir elásticos de borracha para ligas e suspensórios. Em 1823 Charles Macintosh passa a usar a nafta de carvão como solvente para a borracha e abre uma fábrica de tecidos à prova d’água. Em 1820, fabricantes de sapatos, em Boston, nos Estados Unidos, enviavam calçados ao Pará para serem recobertos com borracha ou então enviavam moldes de madeira para a moldagem dos calçados na própria Amazônia. Entre 1836 e 1839 o Pará exportou 454.930 pares de sapatos de borracha, 84% dos quais para os Estados Unidos. A borracha, entretanto, ficava muito dura no tempo frio e pegajosa no calor. A solução só veio em 1839 com a invenção do processo de vulcanização por Charles Goodyear, que consistia na mistura de enxofre à borracha em alta temperatura durante um certo número de horas. Vencido o problema da alteração dos artefatos de borracha por mudanças no tempo, sua indústria se desenvolveu e passou a demandar por mais matéria-prima.

A Amazônia não era a única região onde ocorriam espécies vegetais produtoras do látex, mas era a que dispunha do vegetal que produzia o látex mais procurado, a seringueira (Hevea brasiliensis), predominante na banda meridional da bacia amazônica. Na banda setentrional da mesma bacia predominava uma outra espécie de seringueira, do mesmo gênero, a Hevea benthamiana. As seringueiras ocorrem sobretudo nas várzeas e baixo curso dos rios, embora existam também junto às cabeceiras. Nas terras altas ocorrem pelo menos duas espécies de caucho, vegetal de outro gênero: Castilloa elastica e Castilloa ullei. Outros vegetais produtores de látex também ocorrem na Amazônia, como a sorveira (Couma guianensis). Alguns viriam a ter utilização mais específica, como a balata (Mimusops bidentata), utilizada em correias de transmissão e cabos submarinos; o sapotizeiro (Achras sapota), usado como goma de mascar. Produzem borracha vegetais não exclusivos da Amazônia, como a mangabeira (Hancornia speciosa), presente no planalto Brasileiro, de cujo látex os índios apinajés e craôs (Estado do Tocantins) confeccionavam uma bola para a realização de um rito e de que os parecis, nambiquaras e tuparis (Mato Grosso e Rondônia) fazem uma pelota para um jogo no qual só podem golpeá-la com a cabeça; em vez de futebol (football), seria o headball. Na América Central também existem vegetais produtores de látex, talvez as mesmas espécies presentes na Amazônia. Na África ocidental, em países como a Guiné-Bissau, Serra Leoa ou Libéria, o vegetal produtor de látex é uma trepadeira do gênero Landolphia. No sudeste da Ásia produzem látex o assam (Ficus elastica) e o jelutongue (Dyera costulata), este último usado em goma de mascar. Lembrar ainda a guta-percha (Payena leeri ou Mimusops huberi?), com que os dentistas vedam os dentes cujo tratamento ainda não terminaram. Mas de todas essas espécies, a mais procurada era a seringueira amazônica Hevea brasiliensis.

Conforme a procura de borracha ia crescendo nos centros industriais da Europa e dos Estados Unidos, mais ia se ampliando a atividade de extração do látex na Amazônia. A exploração do látex da seringueira se deu da foz para o alto tanto do Amazonas como de seus principais afluentes. Partes da Amazônia que até então tinham ficado à salvo da presença dos brancos foram invadidas por eles, como o sudoeste da região, onde correm o Purus, o Juruá, o Jutaí, o Jandiatuba, o Javari. Pelos dois primeiros os brasileiros chegaram até o Acre, então território boliviano, que, depois de uma intrincada questão, veio a ser incorporado ao Brasil pelo Tratado de Petrópolis de 1903. O caucho, por sua vez, motivou a ocupação das partes mais altas da Amazônia, a selva do Peru, do Equador e da Colômbia.

Apesar da extração da borracha mostrar números crescentes em área, árvores, trabalhadores, preços, e apesar de ter ganhado vulto sobretudo no tempo em que a importação de escravos negros já estava proibida e a escravidão de índios, ainda que ilegal, decadente, ela não concorreu para estimular o trabalho assalariado e nem o uso do dinheiro. Pelo contrário, o que se viu foi a expansão do sistema de aviamento. Nesse sistema, o seringueiro, isto é, aquele que lidava diretamente com a extração do látex, recebia do seringalista, proprietário ou arrendatário legal ou suposto do terreno onde estavam as árvores, um adiantamento em mercadorias (alimentos, roupas, equipamento necessário à extração), que, no tempo da safra, devia pagar com o látex. Já é de todos conhecido que os preços das mercadorias eram de tal modo majorados que o seringueiro permanecia em dívida. Como o seringueiro era considerado trabalhador autônomo, tinha de pagar até os machados (depois facas especiais) para fazer as incisões nas árvores, as tigelinhas, o balde. Estando em dívida, não podia deixar o local, e um acordo entre seringalistas impedia que um recebesse trabalhador que estivesse em dívida com outro. Geralmente o seringalista tinha seu barracão, isto é, a casa para onde eram levadas as pélas de borracha, na boca de um rio ou igarapé, que lhe permitia dominar todo o seu curso e vigiar a entrada e saída de pessoas, para o que contava com um certo número de capangas armados. Os alimentos fornecidos, além de caros, eram de qualidade inferior, quando não estragados, sendo conhecidos casos em que um funcionário do barracão era encarregado se furar as latas de conserva que estufassem pela expansão de gases e voltar a soldá-las, para assim entregá-las aos seringueiros.

O aviamento era constituído de relações encadeadas. Os seringalistas menores eram aviados por seringalistas maiores ou comerciantes. Estes, por sua vez eram aviados por grandes firmas comerciais. Estas recebiam empréstimos de bancos ou de empresas estrangeiras. Cada adiantador de mercadorias dessa cadeia procurava tirar os maiores lucros possíveis sobre a borracha que lhe era entregue.

O sistema fez concentrar nas principais cidades amazônicas, como Belém e Manaus, rendimentos capazes de lhes dar uma aparência mais moderna, com boas casas, prédios públicos suntuosos, enquanto nos seringais vivia uma população paupérrima, mal alimentada, sem atendimento para seus sérios problemas de saúde, sem instrução, que era desestimulada ou proibida até de fazer suas roças, de modo a não perder o tempo que deveria ser primordialmente aplicado na extração do látex.

Os seringalistas agiam como grandes senhores poderosos que, além de sua segurança particular, contavam com o apoio incondicional da polícia para deter os seringueiros que resolvessem fugir sem pagar suas supostas dívidas. São conhecidos alguns extremamente poderosos como Julio Arana, no rio Putumayo, ou Funes, na Venezuela, havendo lugar também para os extravagantes, como Fitzcarrald, no Peru. Romances retratam o difícil ambiente do seringal, como A Selva, do escritor português Ferreira de Castro, que foi funcionário de um seringal no rio Madeira, ou La Vorágine, do escritor colombiano José Eustasio Rivera, cujos personagens cruzam as terras dominadas por Funes. Já Fitzcarrald foi tema de um filme do cineasta alemão Herzog. Mas houve também reação contra a exploração por parte dos trabalhadores, como, por exemplo, a revolta dos seringueiros do rio Ituí, da banda brasileira da bacia do Javari, contra o seringalista colombiano Antônio Angarita em 1900 [30].

Quanto aos indígenas, tanto aqueles que já mantinham contato havia muito tempo com os brancos como os que até então deles estavam afastados foram envolvidos na atividades extrativas. No sudoeste da Amazônia pouco se sabe de quantos grupos indígenas foram atacados e seus rapazes levados a trabalhar nos seringais, enquanto as mulheres eram encaminhadas para os serviços domésticos. No Putumayo, a empresa de Julio Arana tornou insuportável a vida dos uitotos. Em toda parte os grupos indígenas sujeitos à direção de seringalistas, mesmo quando continuassem a morar em suas aldeias, tinham suas vidas extremamente controladas.

Mas a elite amazônica, tanto a brasileira quanto a dos países vizinhos, que com tanto desprezo tratava os trabalhadores de quem tirava a riqueza que produziam, não foi capaz de tomar a iniciativa de um sistema mais racional de produção e nem de prever que outras nações preparavam um sério rival para a borracha sul-americana. Havia, desde o século XIX, competidores da borracha amazônica, mas que produziam muito menos: a América Central, a África ocidental e a Índia. Mas em todos esses casos se tratava de espécies de borracha silvestre, como na Amazônia. Em 1876, o inglês Henry Wickham coletou 70.000 sementes de seringueira, escolhidas dentre as árvores mais desenvolvidas entre os rios Tapajós e Madeira. Delas, sete mil mudas brotaram em viveiros do Jardim Botânico de Kew, na Inglaterra, e foram transportadas para o Ceilão (hoje Sri Lanka), então sob domínio britânico. Holandeses, franceses, alemães também começaram a cultivar a seringueira em suas colônias tropicais. Assim, além do Ceilão, surgiram plantações de seringueiras na Malásia, Índia, Birmânia (atual Myanma), Bornéu Britânico (hoje parte da Malásia), Índias Orientais Holandesas (atual Indonésia), Sião (Tailândia), Indochina (Vietnã, Camboja). No Brasil houve alguns ensaios de plantio na Amazônia e na Bahia. As vantagens da seringueira cultivada sobre a silvestre eram várias. Entre outras, essas plantações eram acompanhadas por pesquisa científica e se conseguia das seringueiras cultivadas uma quantidade maior de látex que da silvestre. Outra, uma vez que as seringueiras estavam uma ao lado da outra, ao invés de dispersas na floresta ligadas por um longo caminho, a "estrada", era possível a um só trabalhador extrair látex de um número muito maior de árvores. A concentração das seringueiras nas colônias do Oriente era surpreendente: a média era de 200 seringueiras por hectare, enquanto na Amazônia era de 1,5 por hectare. Os preços da borracha chegaram ao máximo em 1910. Porém, a partir daí, como a produção de borracha cultivada oriental já era significativa, eles começaram a cair. Os seringalistas interpretaram essa queda como uma oscilação temporária de preços, e adiaram a venda da borracha produzida à espera de uma alta, que não veio. Tiveram de vender a borracha guardada a preço bem inferior e a crise se instalou. Empresas faliram, inúmeros barcos ficaram paralisados nos portos, seringais foram desativados, funcionários urbanos ficaram sem emprego.

O quadro abaixo [31] mostra que a produção da Ásia ou das colônias do Oriente era irrisória em 1901, pouco acima de um quinto da produção brasileira em 1910, ano em que esta chegou a seu ápice, e mais de dez vezes a produção brasileira em 1919. Mostra também que a produção brasileira não caiu tanto após a crise, pois em 1919 estava acima da de 1901. Entretanto, em 1919, o Brasil, além de produzir menos que em 1910, encontrava preços para a borracha reduzidos a 23% em Londres e 39% em Nova Iorque. Finalmente, a produção da Ásia ou Oriente em 1919 mostra que não era mais possível à borracha silvestre competir com a cultivada.
Anos Produção em toneladas Consumo
em
toneladas
Preços
Brasil África e
Am. Central
Ásia Total Londres
(libras)
N. Iorque
(dólares)
1901 30.290 24.549 4 54.843 52.543 275,5 1.276,9
1910 40.800 21.900 8.753 71.453 76.020 964,5 2.267,2
1919 34.285 7.350 381.860 423.495 381.497 227,4 885,6

Desde 1826 se conhecia a composição da molécula da borracha natural, C5H8, isto é, cinco átomos de carbono e oito de hidrogênio. A partir daí começaram as pesquisas com o fito de se chegar à produção química da borracha, a borracha sintética. Na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) a Alemanha deu início a uma modesta indústria de borracha sintética. Mas foi durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) que essa indústria se desenvolveu, agora nos Estados Unidos. Hoje há diferentes tipos de borracha sintética e é possível satisfazer a demanda só com a indústria química. Mas tanto os países mais industrializados continuam a comprar borracha cultivada do Oriente como o Brasil continua a consumir a borracha silvestre amazônica por motivos políticos e sociais. Em 1970, a produção mundial de borracha natural (silvestre e cultivada) alcançava 3.395.118 toneladas e a borracha sintética, pelo menos 6.228.058 toneladas.

Mário de Andrade

O paulista Mário de Andrade é mais do que conhecido por sua obra poético-literária e sua contribuição ao conhecimento do folclore, sobretudo no que diz respeito à música e à dança. É famoso o seu livro Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter, uma história que ele recria sobre os episódios da mitologia dos índios taulipang e arecunás, da fronteira Brasil-Venezuela, publicados pelo etnólogo alemão Theodor Koch-Grünberg. Foi também um dos participantes do evento marcante para a literatura e as artes brasileiras, a Semana de 1922.

Em 1927, Mário de Andrade fez uma viagem à Amazônia com intenções etnográficas, para observar e colher manifestações folclóricas. Apesar de ter combinado a viagem com vários amigos, percebeu na hora de embarcar no navio "Pedro I", no porto do Rio de Janeiro, que a maioria tinha desistido e que seria acompanhado apenas por três mulheres: Olivia Guedes Penteado, da alta sociedade paulista e mecenas dos modernistas; Margarida Guedes Nogueira, sobrinha dela; e Dulce do Amaral Pinto, filha da artista Tarsila do Amaral.

Mário de Andrade relata sua viagem no livro O Turista Aprendiz. Esse livro [32] foi consolidado após a morte do autor. A parte do livro de mais interesse para esta compilação é o trajeto pelo Solimões e alto Amazonas, de Manaus a Nanay (no Peru), ida e volta, de 8 de junho de 1927 a 2 de julho do mesmo ano (pp. 89-129). Não se trata de um diário de verdade. Embora as datas sejam reais e muito do que narra também, Mário de Andrade toma a liberdade de introduzir acontecimentos fictícios. Assim, o texto "A tribo dos Pacaás Novos", introduzido logo após a saída de Manaus, é pura fantasia. Outros, sobre os índios Do-Mi-Sol, são assumidamente fictícios. O discurso que um índio uitoto fez ao autor em Nanay, justificando porque não lhe vendia um punhado de coca, também é imaginário.

Mas há muitas coisas reais e curiosas. Ele viu uma brincadeira, a Ciranda, num lugar chamado Caiçara, que deve ser Alvarães. O texto que publicou sobre ela no Diário Nacional, de São Paulo, de 8 de dezembro de 1927, está no final do volume (pp. 335-336). Fez a viagem num vaticano, embarcação grande a vapor, que parava em certos locais para receber lenha. Em Tonantins conheceu dois alegres franciscanos, um dois quais alude a uma festa de Moça-Nova feita pelos caboclos, com cujo nome o autor malicia, mas sem nada procurar saber a respeito. Em São Paulo de Olivença encontra Frei Fidelis [33], sem nada acrescentar como apresentação. Pára em Santa Rita para comprar redes de tucum, mas não identifica quem as faz. O vaticano pára no porto de lenha do Assacaio; ali por perto ele vê (p. 103):

Índios legítimos, bancando negros, pintados com jenipapo. não pintam as articulações dos dedos, que ficam parecendo cicatrizes claras, é horrível. Fotei. Pouco depois do meio-dia portamos em Belém, onde vimos uns índios lindos, principalmente a cunhã tristonha, já bem mulher, fineza esplêndida de linhas.

O vaticano chega a Esperança, posto fiscal brasileiro, em frente à margem do Peru. É certamente a atual Benjamin Constant. Continua para Remate de Males, dentro do Javari. Hoje Remate de Males não mais existe. Ficava na margem direita do Javari, logo abaixo da boca do rio Itacoaí. Ao retornar a Esperança, Mário de Andrade vê uma festa de casamento. E o vaticano prossegue: Tabatinga, Letícia, Chimbote, San Pablo (colônia de leprosos), Iquitos, Nanay. Daí o vaticano torna a descer, passando pelos mesmos lugares, Remate de Males inclusive. Sobre a passagem de volta por Iquitos, numa nota avulsa (pp. 120-121):

Cada vez que descemos de bordo nos examinam. Mas há um ar delicioso de contrabando. Era 24 de junho e estava um vaticano no porto. Então os marujos se lembraram de fazer um Boi-Bumbá pra brincar na cidade. Armaram logo um boi enorme, que precisava até dois homens por debaixo pra mover. E um marinheiro era Mãe Catirina, outro Cazumbá, formaram o grupo todo que lá foi descendo do navio no cais flutuante. Os guardas divertidos deixaram o grupo passar com suas danças gozadas.

"Boi caprichoso não quer
comer capim

Vaqueiro, faça a vontade que
o boi quiser..."

lá foram. Bem dentro da cidade porém, num escuro, de combinação com peruano de algum boteco, viraram o boi. Estava cheio de garrafas de pinga e maços do famoso cigarro brasileiro. Ganharam um dinheirão.

Ainda em Iquitos (p. 121):

Me esqueci de contar: ontem, passeando, passamos pelo cinema local que com grande estardalhaço anunciava último dia do grande filme Não percas tempo com William Fairbanks. É que o filme ia e vinha no navio, conosco...

Questões de fronteira

A disputa de território entre Portugal e Espanha que marcou todo o período colonial no alto Solimões foi herdada e desdobrada pelo aparecimento dos novos estados soberanos: Brasil, Colômbia, Peru e Equador.

Desde o Tratado de Madri, de 1750, foi reconhecida a posse pelos portugueses, e depois pelo Brasil, das terras da margem direita do Solimões a leste do rio Javari. Já as terras da margem esquerda do Solimões somente o foram a leste do Japurá e de um afluente deste que teria as cabeceiras junto aos povoados portugueses do alto rio Negro. Por isso é que o chefe da comissão de limites espanhola Francisco Requena manteve estacionadas suas tropas em Ega (hoje Tefé), na margem reconhecidamente portuguesa do Solimões, quase em frente à foz do Japurá, à espera de que lhe fosse entregue o povoado português de Tabatinga, que estava na margem então reconhecida como espanhola. Não conseguiu, entretanto, seu intento e a margem setentrional do Solimões de Tabatinga para baixo continuou a ser tratada na prática como portuguesa, e depois, brasileira.

Após a independência, Colômbia, Peru e Equador, herdeiros das pretensões espanholas, continuaram a tratar dessa fronteira com o Brasil, herdeiro das portuguesas. Mas aqueles três países também tinham litígios de fronteira entre si.

Durante o período colonial, as já referidas Missões de Mainas tinham ficado sob a jurisdição da Audiência de Quito. Seria de se esperar, por conseguinte, que as terras das ditas Missões viessem a se integrar ao atual Equador. Entretanto, em 1802, às vésperas da independência dos países sul-americanos, o governo espanhol, atendendo a uma sugestão de Francisco Requena, passou a administração das Missões de Mainas para Lima, sede do Vice-Reino do Peru. Isso enfraqueceu bastante as pretensões equatorianas sobre um território administrado desde então pelo Peru. Não obstante, o Equador assinou um tratado condicional de limites com o Brasil, reconhecendo a linha que liga a foz do Javari à foz do Apapóris (afluente do Japurá), tangente a Tabatinga, como limite, caso viesse levar a melhor na disputa com o Peru e a Colômbia.

Por outro lado, os abusos, trabalhos forçados, torturas e massacres, promovidos pela empresa de extração de borracha do peruano Julio Arana, no rio Putumayo (cujo baixo curso é o Içá), de que foram vítimas, entre outros, os índios uitotos, provocaram reação da Colômbia, que reivindicava essas terras como suas.

Devido a essas disputas, a região foi palco de choques armados. Houve uma breve guerra entre a Colômbia e o Peru, de 1932 a 1933, que terminou com um protocolo em 1934 e finalmente o reconhecimento, em 1938, do tratado que já haviam assinado em 1922, que concedia um prolongamento à Colômbia até o alto Amazonas, o chamado Trapézio de Letícia. E houve a guerra entre Equador e Peru, em 1941, sustada pelo Protocolo do Rio de Janeiro de 1942. Brasil e Colômbia, em 1928, concordaram em reconhecer como sua fronteira a linha foz do Javari/foz do Apapóris, após longa demora, mas sem beligerância.

Os indígenas da região foram certamente envolvidos pelos referidos conflitos armados, seja recrutados como soldados, seja como guias e carregadores, seja ainda como afetados pela movimentação de tropas. Os indígenas de hoje muito provavelmente ouviram de seus pais e avós sobre sua participação nesses acontecimentos e devem ter alguma coisa a contar sobre eles.

Vale a pena lembrar que o General Candido Mariano da Silva Rondon [34] foi nomeado delegado brasileiro e presidente da comissão mista criada de acordo com a Liga das Nações para velar pela execução do protocolo de 1934, que punha fim aos combates entre Colômbia e Peru, até o acordo final que viria a ocorrer em 1938. E assim Rondon permanece em Letícia, durante quatro anos, já septuagenário e afetado por glaucoma, moléstia que viria a inutilizar um dos seus olhos.

Sabendo-se da importância do trabalho de Rondon para a renovação da política indigenista brasileira e para a criação do Serviço de Proteção aos Índios em 1910, órgão cuja atuação acompanhou ao longo de sua vida, seria o caso de se procurar saber se ele aproveitou sua presença em Letícia para desenvolver algum tipo de atuação junto aos índios que estavam mais próximos, entre outros os ticunas.

Notas

1 — Relação que escreveu Fr. Gaspar de Carvajal, frade da ordem de S. Domingos de Guzman, do novo descobrimento do famoso rio grande que descobriu por imensa ventura o Capitão Francisco de Orellana desde a sua nascente até sair no mar, com cincoenta homens que trouxe consigo e se lançou à sua aventura pelo dito rio, e pelo nome do capitão que o descobriu se chamou Rio de Orellana. O zoólogo C. de Mello-Leitão, que tinha grande interesse pelos textos dos cronistas, foi o primeiro a publicar em português a Relação de Carvajal. Ela está no volume 203 da coleção Brasiliana, Descobrimentos do Rio das Amazonas (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941, pp. 11-79), que inclui mais duas crônicas do século seguinte. Mello-Leitão traduziu todas três do espanhol e fez anotações. Hoje existe mais uma tradução do texto de Carvajal, por Adja Durão, com introdução e notas de Guillermo Giucci, edição bilíngüe publicada em São Paulo pela Embaixada da Espanha e a editora Scritta em 1992. [Voltar ao texto].

2 — "História indígena do alto e médio Amazonas: séculos XVI a XVIII", nas pp. 175-196 do volume organizado por Manuela Carneiro da Cunha História dos Índios no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras/FAPESP/SMC, 1992). Republicado como capítulo 2 (pp. 37-73) de O Povo das Águas: Ensaios de Etno-história Amazônica (Petrópolis: Vozes, 1996), em que o autor reúne vários de seus artigos. [Voltar ao texto].

3 — C. de Mello-Leitão incluiu no seu já referido volume, nas pp. 125-294, a crônica que o Padre Acuña escreveu, com o título Novo Descobrimento do Grande Rio das Amazonas. A Embaixada da Espanha no Brasil publicou mais recentemente uma edição bilíngüe (espanhol e português): Novo Descobrimento do Rio Amazonas, edição, tradução e notas de Antonio Esteves, Montevidéu: Oltaver, 1994. As transcrições que aqui apresentamos foram tiradas desta última edição. [Voltar ao texto].

4 — Sua crônica, Descobrimento do Rio das Amazonas e suas Dilatadas Províncias, também foi incluída no já referido volume de C. de Mello-Leitão (pp. 81-124). [Voltar ao texto].

5 — O capítulo 2 é a "História indígena do alto e médio Amazonas: Séculos XVI a XVIII", já referida em nota anterior, que foi publicada originalmente em 1992. O capítulo 3 é "Sociedade e poder na várzea amazônica" (pp. 75-90), um trabalho publicado originalmente em inglês dois anos depois, em 1994. [Voltar ao texto].

6 — "O Diário do Padre Samuel Fritz", na verdade apenas uma parte dele, foi publicado em português na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1918 (pp. 353-397 do tomo 81, correspondente ao ano de 1917), com introdução e notas de Rodolfo Garcia. Essa é a edição aqui utilizada. O mesmo texto foi novamente publicado nas pp. 64-122 do volume O Diário do Padre Samuel Fritz, organizado por Renan Freitas Pinto (Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2006), que inclui vários comentários, inclusive a introdução e as notas de Rodolfo Garcia (pp. 12-62). [Voltar ao texto].

7 — Noticias Auténticas del famoso rio Marañon y mission apostolica de la Compañia de Jesús de la provincia de Quito en los dilatados bosques de dicho rio, escritas de 1730 a 1738 por um missionário jesuíta, provavelmente o italiano Paulo Maroni. Foram publicadas integralmente por D. Marcos Jimenez de la Espada no Boletin de la Sociedad Geográfica, de Madrid, tomos 26 a 33, de 1889 a 1892. [Voltar ao texto].

8 — Los Nativos Invisibles: Notas sobre la historia y realidad actual de los Cocamilla del río Huallaga, Peru (Lima: Centro Amazónico de Antropología y Aplicación Práctica, 1981). [Voltar ao texto].

9 — Essa legislação está transcrita nas pp. 106-125 do livro de José Oscar Beozzo, Leis e Regimentos das Missões — Política Indigenista no Brasil (São Paulo: Loyola, 1983). [Voltar ao texto].

10 — Referência a essa Carta Régia no já citado trabalho de Antonio Porro, "História Indígena do Alto e Médio Amazonas — Séculos XVI a XVIII". [Voltar ao texto].

11 — Na p. 48 de seu livro A Amazônia que os Portugueses Revelaram (MEC, Serviço de Documentação), publicado, a julgar pela data do prefácio, em 1956. [Voltar ao texto].

12 — Essa referência à produção das Missões de Mainas é tirada do já referido livro de Anthony Stocks. [Voltar ao texto].

13 — Traduzida para o português, sua Viagem na América Meridional descendo o Rio das Amazonas tem duas edições, uma pela editora Pan-Americana (Rio de Janeiro, 1944) e outra pelo Senado Federal (Brasília, 2000). Aqui utilizamos esta última. [Voltar ao texto].

14 — Muito do que aqui se resume sobre os tratados de limites do século XVIII foi tomado do Capítulo X do livro de J. Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial (1500-1800), 4ª edição, revista anotada e prefaciada por José Honório Rodrigues (Sociedade Capistrano de Abreu, Livraria Briguiet, 1954). [Voltar ao texto].

15 — Um resumo dessas leis pode ser encontrado na comunicação que Expedito Arnaud fez no grupo de trabalho História Indígena e do Indigenismo no Encontro Anual da ANPOCS de 1986, com o título: "A legislação sobre os índios do Grão Pará e Maranhão nos séculos XVII e XVIII". [Voltar ao texto].

16 — Há cópia fac-similar desse famoso Diretório nas pp. 129-167 do livro de José Oscar Beozzo, referido em nota anterior e também nas últimas páginas do livro de Rita Heloisa de Almeida, O Diretório dos Índios — Um projeto de "civilização" no Brasil do século XVIII (Brasília: Editora da UnB, 1997). [Voltar ao texto].

17 — Vale lembrar que praticamente durante todo o período colonial a possessão portuguesa na América era constituída por esses dois Estados, administrados separadamente um do outro. Poucos anos após ter início a conquista da Amazônia, que começou com a expulsão dos franceses do Maranhão em 1615, Portugal a separou do Brasil, e os dois Estados só vieram a se reunir quase duzentos anos depois, em 1816, quando o Brasil se tornou Reino Unido a Portugal e Algarves. [Voltar ao texto].

18 — Índios da Amazônia: De maioria a minoria (1750-1850), de Carlos Araújo Moreira Neto, Petrópolis: Vozes, 1988. Na página seguinte às da tabela, Carlos Moreira Neto indica os três trabalhos do ouvidor, que são 1) o diário da viagem que fez pela capitania nos anos de 1774 e 1775; 2) um apêndice deste diário; e 3) a relação geográfica do rio Branco. Moreira Neto dá as referências das edições originais desses trabalhos e informa que foram reunidos e reeditados no volume As Viagens do Ouvidor Sampaio pela Associação Comercial do Amazonas, Manaus, 1985. Informa ainda Moreira Neto que a tabela que ele reproduz foi tirada do referido apêndice. [Voltar ao texto].

19 — Aqui estamos usando o volume Viagem Filosófica pelas Capitanias do Grão Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (Memórias, Antropologia), em que os antropólogos Eduardo Galvão e Carlos Moreira Neto reuniram os textos de Alexandre Rodrigues Ferreira relativos aos indígenas, fazendo-lhes uma introdução, volume este prefaciado pelo zoólogo José Candido de Melo Carvalho e publicado pelo Conselho Federal de Cultura em 1974. [Voltar ao texto].

20 — O triste destino das coleções e manuscritos de Alexandre Rodrigues Ferreira constam das pp. 171-173 do texto "Explorações Científicas", de Olivério Mário Oliveira Pinto, publicado como Capítulo V do Livro Terceiro do 2° volume do Tomo I da História Geral da Civilização Brasileira, dirigida por Sérgio Buarque de Holanda (São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1960, pp. 161-174). [Voltar ao texto].

21 — Aqui está sendo usada a edição Corografia Brasília ou Relação Histórico-Geográfica do Reino do Brasil, do Padre Manuel Aires de Casal, prefaciada por Mario Guimarães Ferri, Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1976. [Voltar ao texto].

22 — Esse livro foi traduzido do alemão para o português e publicado pelo Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1938. Usamos aqui a 3ª edição da tradução, Viagem pelo Brasil, publicada em São Paulo em 1976 pelas Edições Melhoramentos, em colaboração com o já referido Instituto e em convênio com o Instituto Nacional do Livro. [Voltar ao texto].

23 — A tradução de seu livro aqui utilizada, Um Naturalista no Rio Amazonas (Belo Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1979), se baseia numa edição inglesa de 1876 e foi feita por Regina Regis Junqueira. Existe uma outra tradução para o português, feita por Cândido de Mello-Leitão, publicada nos volumes 237 e 237-A da coleção Brasiliana (São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944). Vale notar que esta contém "Uma apreciação" com que Charles Darwin prefacia o livro de Bates, que aquela não incluiu. [Voltar ao texto].

24 — Sobre a "Comissão Científica", Egon Schaden e João Baptista Borges Pereira dão uma breve notícia na p. 434 do capítulo VI, "Exploração Antropológica", que escreveram para a História Geral da Civilização Brasileira, dirigida por Sérgio Buarque de Holanda, em seu Tomo II, 3° volume, Livro Terceiro, São Paulo, 1967, pp. 425-443. Também a ela se refere Josué Montello na sua "Introdução" ao volume Gonçalves Dias na Amazônia — Relatórios e Diário de Viagem ao Rio Negro, publicado pela Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, 2002, pp. ix-xxxii. [Voltar ao texto].

25 — Usamos aqui o "Relatório apresentado por Antônio Gonçalves Dias", incluído nas pp. 7-25 do volume Gonçalves Dias na Amazônia, já referido na nota anterior, que a Academia Brasileira de Letras transcreveu da compilação Relatorio[s] da Presidencia da Provincia do Amazonas desde sua creação até a proclamação da Republica mandados colleccionar pelo Governador Coronel Silverio José Nery e novamente publicados por ordem do Coronel Antonio Constantino Nery, vol. II (1858-1862), Rio de Janeiro: Typ. do Jornal do Comercio, 1906, pp. 551-565. Esse relatório era o anexo n° 1 da fala que o presidente da província do Amazonas, Manoel Clementino Carneiro da Cunha, dirigiu à Assembléia Provincial em 3 de maio de 1861. Certamente é o mesmo Relatório: Visita às escolas públicas de primeiras letras das freguesias do Solimões, publicado em 1861 pela Tipografia de Francisco José da Silva Ramos, em Manaus, conforme indica Josué Montello na p. xiv de sua "Introdução", já referida na nota anterior. [Voltar ao texto].

26 — Com base nessas anotações, Louis Agassiz e sua esposa Elizabeth Cary Agassiz publicaram um livro, posteriormente traduzido para o português por Edgar Süssekind de Mendonça com o título Viagem ao Brasil (1865-1866), São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938 (Coleção Brasiliana, vol. 95). [Voltar ao texto].

27 — "O escravo do naturalista", artigo de Ildeu de Castro Moreira em Ciência Hoje, vol. 31, n° 184, pp. 40-48 (Rio de Janeiro: SBPC, 2002). O volume organizado por Maria Helena P.T. Machado, Brazil through the Eyes of William James: Letters, diaries, and drawings, 1865-1866, em edição bilíngue, inglês e português (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 2006) traz outros desenhos de James. [Voltar ao texto].

28 — The Tukuna, de Curt Nimuendaju. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 1952 (Publications in American Archeology and Ethnology, 45). Este livro foi traduzido do português para o inglês por William D. Hohenthal. Apesar a existência da versão em português, redigida pelo próprio Nimuendaju, ela nunca foi publicada. [Voltar ao texto].

29 — Sobre a formação, expansão, decadência e uso literário dessa língua há o excelente livro de José Ribamar Bessa Freire, Rio Babel: A história das línguas na Amazônia, Rio de Janeiro: Atlântica e EdUerj, 2004. [Voltar ao texto].

30 — Nas pp. 136 ss. de Panoramas Amazônicos: VI — Benjamin Constant, de Anisio Jobim (Manaus: Departamento Estadual de Imprensa e Propaganda, 1943). [Voltar ao texto].

31 — A maioria das informações aqui presentes sobre a borracha foram extraídas do livro de Roberto Santos História Econômica da Amazônia (1800-1920) (São Paulo: T.A. Queiroz, 1980). Outro texto consultado foi a Geografía Económica de Clarence Jones e Gordon Darkenwald (México: Fondo de Cultura Económica, 1955), nas suas pp. 84-85 e 187-195. Também foi consultado o verbete "Rubber", de Laurence Mernagh, na Macropædia da Encyclopædia Britannica, edição de 1980. [Voltar ao texto].

32 — O Turista Aprendiz é o título que Mário de Andrade escolheu para apresentar sua viagem à Amazônia. Suas anotações de 1927, ele as editou em 1942. Ele fez também uma viagem ao Nordeste em 1928 e 1929, mas não chegou a editá-las. O volume O Turista Aprendiz, que reúne tanto o diário referente à Amazônia quanto o referente ao Nordeste, teve seu texto estabelecido por Telê Porto Ancona Lopez, que lhe fez a introdução e as notas. Aqui se usa a sua segunda edição (São Paulo: Duas Cidades, 1983). [Voltar ao texto].

33 — O capuchinho Frei Fidelis de Alviano escreveu pelo menos dois trabalhos sobre os índios ticunas: "Notas etnograficas sôbre os ticunas do alto Solimões" (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 180, pp. 5-34, 1943) e "Gramática, dicionário, verbos e frases e vocabulário prático da língua dos índios ticunas" (Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, vol. 183, pp. 3-194, 1944). [Voltar ao texto].

34 — Essa informação foi tirada do texto de Darcy Ribeiro, "A obra indigenista de Rondon", divulgado em 1958 nos Cadernos de Cultura do MEC e republicado nas pp. 131-158 do volume que reúne trabalhos do mesmo autor, Uirá sai à procura de Deus — Ensaios de Etnologia e Indigenismo (Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974). A presença de Rondon em Letícia é focalizada nas pp. 153-154 dessa republicação. [Voltar ao texto].
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