Arte & Tecnologia


A Arte Eletrônica com Humor

 

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Numa época em que os meios eletrônicos a cada dia ganham mais espaço, a questão da autoria é colocada em crise (novamente) , nos possibilitando a percepção de uma atuação em co-autoria, manifestada na inter-relação entre o idealizador e o meio eletrônico nas suas especificidades (capacidades) tecnológicas, passando pelo pessoal técnico necessário para a operacionalização do trabalho e nos casos de performance ou sistemas interativos, atingindo os performers que atuarão. Num sentido mais amplo, há uma co-operação branda, onde com a "maturidade do ciclo eletrônico, a idéia de produção muda. Produzir não é ordem centrada na figura individual do homem/produtor hegemônico e totalitário." (Laurentiz, 1991: 109)

Segundo o pensamento de Paulo Laurentiz, há uma procura do abrandamento da tecnologia. "Abrandar tecnologia significa, em termos de pensamento operativo, encontrar funções similares entre as organizações sintáticas dos equipamentos (hardware e software) e as forças universais explicitadas no insight. Desta maneira, não há uma interferência interna de uma linguagem sobre as qualidades de outra linguagem . Os discursos se equivalem, gerando sentimentos similares diante do fenômeno em si ou da manifestação cultural produzida." ( Laurentiz, 1991: 113)

A mudança do código de operação, do autográfico para o alográfico, operou no artista uma necessidade de compreensão e de desvinculamento da questão autoral. Instaurada a operação dentro de uma co-autoria, há que se repensar os valores pessoais referentes a criação. Os vídeos se resolvem dentro de um feixe limitado de possibilidades que o sistema eletrônico oferece. É preciso aprender a dialogar com esse sistema. É preciso romper com o individualismo criativo, comum entre os artistas que criam no universo artesanal. Com freqüência levamos para o meio eletrônico a mesma forma de operar, não respeitamos as "mensagens dos meios" ( McLuhan, 1972), e queremos impor-lhes aquele procedimento (artesanal). Embora aproveitando as capacidades do equipamento, freqüentemente os utilizamos como matéria que serve para efetuar uma espécie de "pintura". É um modo de agir que superestima o comportamento do equipamento, enquanto matéria, e subestima as possibilidades criativas em co-autoria. Ou, como poderia dizer Paulo Laurentiz, não "abranda tecnologia".(1991)

Estar trabalhando em co-autoria com o meio eletrônico requer um pensamento que perpassa por uma nova conceituação do ser diante da tecnologia, se é que assim o podemos situar.

Perceber que as tecnologias juntamente com todo o resto dos artifícios de que se utiliza o homem para atuar no mundo são o que resulta no que é o ser humano hoje. "Somos todos naturais e artificiais ao mesmo tempo. É uma bobagem a discussão sobre as tecnologias. Tudo o que o homem põe a mão é um artifício". Tecnologia é inseparável de cultura que é inseparável do ser biológico. Todos são fatores de um mesmo ecossistema, com modos sempre similares de auto-organização e submissão às leis de luta pela permanência.

O ser tecnológico, entretanto, facilita suas ações no mundo através de lançar mão da tecnologia, naturalmente. Opera os signos da sua natureza como opera os signos da cultura tecnológica : em acordo com as capacidades intrínsecas e especiais do seu próprio ser. Não há uma luta dicotômica entre essas partes, porque não há partes, e sim uma conjunção de eventos, um sinergismo. Como diria Couchot , a associação do homem e da máquina leva a uma realização superior, "a um prolongamento da nossa humanidade".

Ocorre que encontramos artistas de mídia eletrônica trabalhando ou à favor da tecnologia, ou a seu contra-fluxo. Podemos perceber atuadores nos dois sentidos bem como nos seus intermezzos. Seria prudente observar-se que, nem tanto integrados, nem tanto apocalípticos ( ECO, 1970), os artistas permanecem reproduzindo signos, que podem estar aliados às novas tecnologias de modo a prometer-nos um questionamento que está ainda muito aquém de ser configurado plenamente, quiçá respondido.

Todavia, perscrutando nas tangibilidades possíveis das malhas semióticas que vão sendo produzidas e jogadas para o mundo, já podemos perceber um certo " maneirismo" de uma determinada forma de atuação que por ser resquício dos pioneiros é difícil se desvincular, mas que entretanto nos aturde com sentimentos por demais aflorados nos anos 60 e 70. Trata-se de uma certa anti-mídia, que vê nos meios apenas uma possibilidade semântica de manifestação artística obrigatoriamente "panfletária", radical porém subjetiva, que visa incutir altos propósitos de uma arte guerreira, utópica. Os paladinos desse modo de produção de sentido agarram-se à estatutos estabelecidos ou esgotados e ainda hoje nos trazem conteúdos tristes, cavernosos, políticos ou simplesmente utópicos.

Para o meio eletrônico, como a evolução sintática foi absurdamente acelerada em função da computação, era natural que novas formas de expressão estéticas surgissem a partir desse novo sistema não entrando aqui nenhum filtro qualitativo.

Particularizando o problema, citaria minha atividade em vídeo, onde procuro produzir ilusões espaciais virtuais, recriando movimentos e visando propor soluções plásticas bem humoradas que aludem ao onírico por não poderem ser obtidas naturalmente em um espaço real, devido a esbarrarem nos meus limites corporais. O computador representa para o meio vídeo atualmente, o limite máximo e a partir dele novos modos de expressão estética são possíveis. Então, uma atuação performática em vídeo, como é o meu caso, já não necessita compreender mutilações, agressões, ou centralização nas questões mito-corpóreas como foi no início da video-arte.

Assim aquelas experiências em vídeo dos anos 70 estariam no princípio de um quadro evolutivo (em função tanto da melhor compreensão técnica do sistema pelo artista quanto pelo crescimento tecnológico explícito) cujas mais recentes manifestações aliariam computer graphics e/ou sistemas interativos

 

"Enfim, o próprio computador , no seu processo evolutivo, foi gradativamente humanizando-se, perdendo suas feições de máquina, ganhando novas camadas técnicas para as interfaces fluídas e complementares com os sentidos e o cérebro humano até o ponto de podermos hoje falar num processo de co-evolução entre o homem e os agenciamentos informáticos capazes de criar um novo tipo de coletividade, não mais estritamente humana, mas híbrida, pós-humana, cujas fronteiras estão em permanente redefinição. É justamente esse novo ecossistema sensório-cognitivo que está lançando novas bases para se repensar a robótica não mais como máquinas que trabalham para o homem, mas como a emergência de um novo tipo de humanidade"(Santaella, 1997, p.40).

Não é preciso concordar-se em número e grau com as palavras de Santaella para percebermos as mudanças sociais instauradas pelos avanços tecnológicos. Daí porque a falta de sentido em permanecer numa luta panfletária contra as tecnologias no conteúdo semântico dos trabalhos em arte eletrônica. Essa luta fez sentido em um período muito especial do surgimento da video-arte. Atualmente, entretanto, com todas as possibilidades de imersão, de navegação em hipermídias, de comunicação quase instantânea via Internet, deixa de fazer sentido uma arte que se utilize da mídia eletrônica para negá-la.

Ainda, milhares de possibilidades de expressão estão latentes no meio eletrônico, e me parece que ele não seja a mensagem como via de regra, como queria McLuhan (1972).

Acredito que uma arte menos introspecta nos é permitida senão conduzida, pelas questões colocadas anteriormente a respeito da autoria, já que, desse modo, o subjetivo é por assim dizer "coletivizado".

E o humor passa a ser, se não foi sempre assim, uma forma de expressão possível e capaz de contribuir para uma sociedade menos niilista.

 

Rosangella Leote

 

Versão do texto integral em inglês publicado nos anais do VI Congresso Internacional de Semiótica, Guadalajara- México, 1997.

 

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