Guerra nas Estrelas

Vinte e cinco de maio de 1977: o dia em que a ficção científica ganhou respeitabilidade. Guerra nas Estrelas estreava em 32 cinemas nos EUA, um lançamento tímido para o que viria a ser um dos maiores fenômenos culturais do século. O filme também apresentou ao mundo o nome de George Lucas, que com o sucesso surpreendente desta saga se transformaria numa das personalidades mais influentes da história da cinema. Não demorou para Lucas superar o status de artista de Hollywood e se transformar na própria Hollywood. Ele é tudo o que a capital do cinema aprecia: ousado, criativo, esperto - e bilionário.

Guerra nas Estrelas logo passou a ser exibido em milhares de salas de cinema americanas, preparando terreno para um sucesso comparável mundo afora. O planeta Terra já havia conhecido filmes capazes de provocar comoção generalizada, como ...E o Vento Levou, Psicose ou Tubarão - que, apenas dois anos antes de Guerra nas Estrelas, inaugurara a era das arrasa-quarteirões. Com o lançamento desta ficção científica, porém, além de se consolidar a época das megassucessos, instituiu-se o verão como a temporada dos grandes lançamentos americanos. E, a mais importante, sentiu-se na pele uma sensação que andava rarefeita e que há vinte anos não se repete com a mesmo impacto: o efeito surpresa. Tanto Psicose quanto Tubarão pegaram o espectador de calças curtas com seus ataques de nervos; recentemente, Jurassic Park deixou todos boquiabertos com seus efeitos digitais. Mas nunca houve uma surpresa tão completamente inédita como a provocada por Guerra nas Estrelas, que da obscuridade emergiu forte e glorioso para modificar não só a história do cinema mas também a história do espectador moderno. Afinal, até então poucos davam bola para o gênero ficção científica - quanto mais considerar que este ofereceria ao mundo um dos grandes clássicos do cinema (indicado até ao Oscar de melhor filme).

O próprio Lucas não confiava muito no retorno positivo de seu filme. D que dizer então da febre que ele provocou? Se para ele e toda a sua equipe técnica a repercussão foi uma grata surpresa, é impossível afirmar que Guerra nas Estrelas tenha surgido do acaso. Pelo contrário: poucos filmes foram concebidos de forma tão pensada e tão ambiciosa.

Lucas estreou como diretor em 1967 com uma ficção científica gélida e pessimista, o experimental THX-1138, com Robert Duvall. Sua intenção era fazer Guerra nas Estrelas logo em seguida, com o herói Luke Skwvalker como uma variante mais jovem do personagem de Duvall. O próprio Lucas considera a sua obra um projeto em constante evolução. No final dos anos 60, Luke, numa das versões do roteiro, era uma garota que iria resgatar seu irmão príncipe; outra possibilidade cogitada em meados dos anos 70 foi a de fazer dele um anão, de forma que, quando saísse de seu planeta, todos seriam gigantes em comparação; pensou-se até em usar um elenco exclusivamente japonês. Esses esboços de Guerra nas Estrelas tomaram três anos da vida de Lucas e resultaram numa história tão extensa e ambiciosa que seria inviável realizá-la, por falta de dinheiro e de recursos tecnológicos.

Diante desse fato consumado, Lucas foi fazer Loucuras de Verão (1973), o primeiro filme construído a partir do verdadeiro motivo que o levou a ser um cineasta: a vontade de criar uma nova mitologia. Lucas dirigiu o campeão de bilheteria daquele ano, um filme que custou 750 mil dólares e rendeu mais de 100 milhões, conquistando o público com a sua visão otimista de bons tempos que mal haviam passado. Loucuras de Verão deu um novo sentido para a palavra nostalgia, e definiu a mitologia que caracterizaria toda a obra de Lucas: a valorização das relações humanas, a elegia à amizade e à fidelidade, o resgate do passado para um presente melhor. O sucesso do filme pegou a indústria de surpresa e transformou o nome de Lucas na sensação do momento. Com essa liberdade nas mãos, fruto do dinheiro que gerara com uma obra em si modesta e muito pessoal, Lucas voltou a pensar em Guerra nas Estrelas.

Mas o cineasta voltou também a enfrentar um velho impasse: como levar à tela uma história tão extensa, com direito a prólogos e vários períodos históricos? Ele acabou optando por desenvolver bem uma parte da trama, deixando os prés e os pós para outras continuações, caso o filme fizesse sucesso e a Fox lhe permitisse continuar a saga. Santa modéstia!

Foi só o filme ser lançado para Lucas logo dar o formato final a seu épico espacial, o de três trilogias sucessivas - o que o mundo estava fazendo filas para ver então era a primeira parte da trilogia do meio.

Lucas sempre soube o que quis de Guerra nas Estrelas. Uma de suas prioridades era devolver à ficção científica o caráter rocambolesco e inocente das aventuras dos anos 50, distanciando-se do cerebralismo (que ele muito admirava) de 2001 - Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Ele quis fazê-lo, porém, com imagens de incrível qualidade, desenvolvendo noções de movimento espacial exploradas pela primeira vez no próprio 2001.

No começo dos anos 70, o cineasta abandonou a Zoetrope, a produtora independente de seu então protetor Francis Ford Coppola, que ajudara a fundar. Coppola co-produzira THX-1138 e Loucuras de Verão, e a saída de Lucas o deixou melindrado. Lucas, porém, pretendia fundar sua própria produtora. Era a gênese da Lucasfilm. Com Guerra nas Estrelas como seu projeto de estimação, Lucas teve a genial idéia de reunir jovens fãs de cinema, engenheiros desocupados e especialistas em efeitos especiais para, juntos, formarem a Industrial Light & Magic [IL&M), em1975. Com essa empresa de livre experimentação tecnológica, Lucas pretendia propiciar a realização das fantásticas cenas que imaginava para o seu filme.

Ele investiu pesado também na criação de uma nova mitologia, bolando uma história que devolveu a adrenalina fútil e deliciosa ao gênero, ao mesmo tempo em que lhe emprestou uma densidade e profundidade incomuns na categoria. Lucas soltou as portas de sua imaginação e reuniu, num mesmo caldeirão, referências de todo o seu passado nos cinemas e diante da TV, cunhando o primeiro épico pop da história.

Além de dar vazão a assuntos de seu interesse, como o esoterismo da Força, a arqueologia e a antropologia, Lucas homenageou suas influências cinematográficas. Para compor a imagem de Luke Skywalker no árido planeta Tatooine, ele imaginou uma vestimenta semelhante à dos samurais. Desses (bons) filmes de artes marciais, ele ainda buscou a fantástica inspiração para os sabres de luz, armas que se transformaram num dos gadgets de maior sucesso do filme. Dos faroestes, a suprema mitologia americana, Lucas usou uma cena de Rastros de Ódio, de John Ford, para marcar o retorno de Luke à fazenda destruída de seus tios. Nos velhos filmes de guerra e nos ataques aéreos da Segunda Guerra, ele encontrou a movimentação ideal para as naves rebeldes no excelente clímax na Estrela da Morte. As relações entre as personagens denotam heranças das sagas do rei Arthur. Por fim, o cineasta reverencia um de seus mestres, Akira Kurosawa, citando o filme A Fortaleza Escondida, no qual dois personagens secundários narram a história (o que acontece aqui com os andróides C-3PO e R2-D2).

Misturando essas idéias, Lucas criou uma diversão que não desrespeita a inteligência. Ele abusa de sua mitologia "básica" (o Bem contra o Mal, a importância da amizade) e defende a tese de que, para um bom filme, o crucial é um roteiro concebido com rigor. Esse sempre foi o maior cuidado de Lucas: encontrar a forma perfeita para o roteiro final.

Com as fundações lançadas, Lucas voltou-se para a IL&M. É Dennis Muren, um dos principais técnicos da empresa, quem explica algumas das decisivas inovações trazidas pelo filme - e que justificaram o grau de estupefação do público. Muren diz que sua preocupação em Guerra nas Estrelas não foi a evolução tecnológica em si mas o aperfeiçoamento da "dinâmica do movimento". O que a IL&M fez não foi necessariamente criar a partir do zero mas desenvolver técnicas já existentes.

Em primeiro lugar, a equipe de Muren buscou refinar o processo de fotografia em blue screen. Essa técnica faz com que atores, naves em miniatura e demais objetos sejam filmados à frente de um grande fundo azul, que depois é substituído por outras imagens - cenários estáticos, paisagens reais ou um conjunto de elementos em movimento previamente registrado em película. Com a sobreposição de pessoas e objetos a esse fundo "em separado", cria-se a perfeita ilusão de que ambos convivem na mesma cena. A técnica foi decisiva, por exemplo, para Luke Skywalker circular no planeta Tatooine com seu carro flutuante (o landspeeder).

A principal inovação, porém, é o que Muren define como "motion control". Sua equipe desenvolveu câmeras com rotação pré-programada, algumas delas instaladas nas naves em miniatura, outras à distância. A minuciosamente calculada combinação de movimentos das naves e das câmeras se traduz numa dinâmica impressionante, e os diversos objetos se deslocam com fluidez e credibilidade. Com diferenças sutis de deslocamento a cada tomada, as miniaturas podem ser inseridas numa cena em escala real com absoluta perfeição. O "motion control" responde por uma das aberturas mais marcantes das últimas décadas, a literal invasão, em toda a extensão da tela, do gigantesco destróier imperial, num movimento lento se comparado às rotas aceleradas de naves menores à frente ou ao fundo.

Muren gaba-se também de ter suplantado limitações com recursos até simples, mas que provocaram um efeito avassalador nas telas grandes: por exemplo, a entrada da nave millennium falcon no hiperespaço, no qual as estrelas se transformam em fachos de luz até a nave desaparecer. Outro recurso quase simples e que respondeu por um dos momentos revolucionários do filme é o que resulta na excitante perseguição final nas trincheiras da Estrela da Morte. Para dar uma noção de vertigem, o fundo foi registrado com uma velocidade cinco vezes maior do que a das próprias naves, distorcendo a imagem e levando o espectador ao torpor. Estava inaugurado o cinema das sensações.

Apesar desses avanços, Dennis Muren ficou insatisfeito com o resultado final, assim como Lucas. A equipe teve de eliminar cenas por falta de tempo para elaborá-las (como o encontro de Jabba e Han Solo, recuperada na versão restaurada) e não pôde explorar bem a tridimensionalidade do espaço. Uma comparação que explica essas limitações é a cena em que se vê a Millennium Falcon, através de seus vidros dianteiros, atravessando os destroços do planeta Alderaan. Segundo Muren, parecem meras pedras jogadas contra as câmeras. Compare com o vôo da mesma nave, em o Império Contra-Ataca, atravessando uma nuvem de asteróides - aí sim existe tridimensionalidade.

Mas a insatisfação dos especialistas é o regozijo dos leigos. A platéia não notou ou não ligou para esses "defeitos" - ela queria, isso sim, fazer parte de um fenômeno emergente. Depois do Vietnã, de Watergate e em pleno governo Jimmy Carter, George Lucas conseguiu reintroduzir um entusiasmo que estava prestes a se extinguir na América. Ele combinou velocidade, ação e efeitos especiais com conteúdo e alma. É testosterona zen. A trilha sonora marcial e imponente de John Williams, por sua vez, ajudou a embalar os sonhos de toda uma geração.

Assim que o filme zarpou para a fama, Lucas anunciou que Guerra nas Estrelas fazia parte de um grande conjunto de histórias. O público, então, se pôs ávido a esperar três longos anos por O Império Contra-Ataca. Nesse meio-tempo, o culto e os fãs proliferaram. Algumas idéias de Lucas, como os créditos em perspectiva, passaram ao rol dos clichês do cinema. O mais importante, porém, é a sensação compartilhada pelos espectadores do mundo todo: eles contribuíram para fazer deste o filme mais popular da história, e só o fato de poder vê-lo ou revê-lo, em tela grande ou não, já é dividir a vitória com Lucas. Afinal, nunca a Força se manifestou com tanta intensidade.

Christian Petermann
SET Edição Especial, 1997


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