5. Conclusão

Faça Você Mesmo


    Em seu livro Os meios de comunicação como extensão do homem Marshall Mcluhan faz uma elaborada descrição da evolução tecnológica desde o início da escrita até o século XX. Toda a tecnologia nasce em função da necessidade humana de expandir seus sentidos. Os instrumentos de caça deixaram o ser humano com mais tempo para desenvolver outras sentidos. O desenvolvimento da fala e da escrita foram conseqüências naturais dessa conquista de tempo. Gutenberg ao desenvolver a tipografia deu a sociedade humana a capacidade de multiplicar-se. Até a descoberta da máquina de impressão as sociedades eram extremamente orais e tribalizadas. Assim como os conquistadores e os impérios, como maior exemplo, o Império Romano, irradiavam cultura e informação, faltava-lhes a rapidez na informação. O desenvolvimento dos transportes aliado a capacidade informativa nos trouxe a imprensa, a fotografia, o cinema, o rádio, a televisão e, por fim, o computador.

    A literatura oral foi impressa, a pintura realista foi fotografada, o cinema roubou-nos a literatura, o rádio recriou a imaginação, a televisão absorveu nossa mente e o computador veio para libertar a informação. Os meios de comunicação são interdependentes enquanto extensões de nossos sentidos. E o computador, enquanto máquina no auxílio de resoluções matemáticas ou no processamento de dados, não era nada mais que um aliado na liberação de outros sentidos. Com o aumento da capacidade de armazenamento e a velocidade de resposta do computador foi gerada por uma maior necessidade de informação. Essa necessidade de informação veio a explodir com o advento da Internet. A capacidade de armazenamento do computador aliado a velocidade das conexões por cabo e satélite elevam a Internet ao meio de comunicação mais interativo jamais criado pela mente humana.

    No início a informação na Internet foi muito mais utilizada em função do poder de arquivar dados do computador. Páginas cheias de informações, sem nenhum atrativo visual, animado ou sonoro. O crescente aumento de velocidade e eficiência dos chips de computador fez com que a Internet pudesse ser utilizada como um meio de transmissão não só de textos, como também de músicas, de imagens, de animação. Todos os outros meios começaram a atuar na Internet. A rádio atua na Internet. A televisão. O jornal. A Internet concorre diretamente com a capacidade informativa da imprensa escrita e televisiva. Não é necessário pensarmos muito para descobrirmos a razão que fez com que os grandes jornais impressos transformassem-se em grandes portais de informação e a televisão embrenhe-se na transmissão ao vivo via Internet. Assim como podemos navegar pela rede enquanto ouvimos no computador nossa rádio preferida. O usuário da Internet qualifica suas informações. Ele é o editor de seu próprio jornal.

    Em páginas de busca como o Altavista (www.altavista.com) quando digita-se uma palavra-chave, ao recebermos o retorno a página seguinte já vem com banners relacionados ao assunto que queremos obter informação. Assim também o usuário da Internet seleciona o que quer ler. E com um enorme acréscimo em relação aos outros meios. Ele além de ser seu próprio editor é muito mais que um reles receptor. Ele também é um emissor. Daí a grande revolução nas relações pessoais e informacionais provocadas pelo e-mail.

    O fanzine, por sua vez, nasceu da fragmentação da sociedade industrializada. A tecnologia abriu o leque de interesses dos consumidores de informação. Assim como a rotativa revolucionou o mercado editorial e jornalístico, a popularização do uso das copiadoras foi como a rotativa substituindo a caixa de tipos dos antigos jornais. Tornou acessível a qualquer pessoa multiplicar seus escritos. Mas ainda existia um empecilho para essa libertação do fanzineiro: a distribuição. Esse obstáculo foi ultrapassado com a Internet. A facilidade tanto de receber como de emitir mensagens e estas serem recebidas e lidas quase instantaneamente em qualquer lugar do planeta equiparou o pequeno fanzine ao grande jornal.

    O fanzine por e-mail tem um poder de persuasão muito maior que o do grande jornal. O fanzineiro escreve de uma maneira informal, quase íntimo do leitor. Não precisa-se muito para estabelecer uma óbvia ligação entre o e-zine e a literatura. A leitura do e-zine é uma atividade solitária. O e-zine, como a Internet, liberta nossos sentidos reprimidos pela televisão, jornal e rádio. Tanto é assim que grande parte dos e-zines destinam-se a discutir sobre literatura, cinema e música.

    Os e-zines pesquisados caracterizam-se por estarem divididos nestes três grupos: e-zines sobre música, literatura ou cinema. Ou os três temas mesclados. O fanzineiro libertado da paulada informativa dos telejornais, da mesmice modorrenta das rádios e da impessoalidade burocrática dos comentaristas da imprensa escrita, volta-se a contemplação de formas musicais desconhecidas, vejamos a implosão causada no mercado fonográfico pelo programa Napster, de trocas de músicas pelos usuários da rede, e das músicas em formato MP3, de tamanho reduzido e fácil armazenagem e reprodução nos computadores do final da década de 1990. Volta-se a leitura de clássicos da literatura, de poesias. Volta-se a escrever longas cartas discutindo os mais variados assuntos. Resta-lhe o tempo necessário para abandonar a saga interminável dos seriados e novelas televisivos e deleitar-se em salas de cinema abrindo a mente para o mundo dos sonhos da tela grande. A Internet liberta os sentidos aprisionados que nos falava Mcluhan. E o e-zine é a expressão máxima dessa libertação. Os chats e os grupos de discussão são atrelados a portais e com regras específicas. Os e-zines não têm regras. Não respeitam os "crimes" da Internet tais como spam e outros. Em recente artigo publicado em Carta Capital, Gianni Carta nos mostra o interesse dos governos em ceifar essa liberdade. Através de mecanismos de armazenagem de dados os organismos de defesa da segurança nacional e de espionagem podem saber com quem estamos conectados, que páginas lemos e com quem nos comunicamos. Ao mesmo tempo, o pesquisador inglês Richard Barbrook chama a cultura da Internet de Cybercomunismo. Ou cultura do "faça você mesmo". Ele admite, ao contrário do texto de Carta, que não existe maneira de controlar a Internet o tempo inteiro. A Internet é diferenciada pela velocidade de informação. Enquanto um fanzine impresso demoraria dias ou meses para levar uma informação e poucas pessoas dispõem da aparelhagem necessária para transmitirem mensagens por rádio, mesmo que piratas, no congestionado meio da banda de rádio, os fanzineiros virtuais têm o a seu favor a velocidade de emissão e distribuição e encadeamento e poder de irradiação necessários para transmitirem informação muito mais rápido que os meios de comunicação de massa. O sucesso de um filme lançado pela Internet, A bruxa de Blair, não foi por acaso. O meio intimista da Internet tem um poder de influenciar só comparável a leitura de um clássico à meia luz ao pé da cama. Também é desnecessário dizer que o mesmo poder de emissão informativa pode ser utilizado de forma destrutiva. E mais desnecessário ainda dizer-se que a Internet é anárquica e ingovernável. A diferença entre as revoluções tecnológicas anteriores é que a velocidade em que se dá está ultrapassa a própria capacidade dos órgãos controladores de anteciparem problemas que venham a alterar o modo de vida vigente.

    Quanto ao perfil do público leitor de e-zines é óbvia a massacrante maioria de jovens na faixa dos 16 aos 25 anos e que sentiram-se em sua grande parte influenciados a escreverem e a lerem mais. Soubesse-se antes do poder de liberação de outros sentidos que a expansão de um sentido antes aprisionado tem, esta pesquisa se estenderia a descobrir a influência dos e-zines nos campos do cinema e da música. Mas como os e-zines ainda não têm a facilidade tecnológica de emitir sons e transmitir imagens em movimentos, conclui-se apenas sobre o seu poder de multiplicação.

    Conforme a pesquisa, aproximadamente um em cada cinco leitores de e-zine sentiu-se influenciado a fazer seu próprio e-zine. Não foi questionado se o e-zine foi ou não feito, editado ou emitido. Apenas foi aferido o estímulo que o meio e-zine provoca em seus receptores. Foi considerado este estímulo muito mais que satisfatório. Levando-se em conta o poder de irradiação dos e-zines, e isso é claramente notado por quem conhece o meio, mesmo que somente um em cada vinte leitores de e-zine editasse seu próprio e-zine, especulando-se, por baixo, um número estimado de 300 leitores efetivos, já que não dispõe-se dos dados necessários para saber-se qual o percentual de assinantes de e-zines que lêem o e-zine. Nessa nossa especulação tem-se o cálculo de um e-zine gerando 15 novos e-zines e estes 15 e-zines gerando 225 e-zines, dentro de um universo de mais de 50.000 leitores. Essa especulação não científica, mas empiricamente válida, e não é aqui que vai se discutir se a ciência deriva do conhecimento pré-determinado ou da teorização posterior de um assunto ainda não estudado em profundidade, serve para exemplificar o poder multiplicador e democrático do e-zine. A democracia da Internet ultrapassa as barreiras da representatividade. Na Internet o usuário utiliza seu e-mail como seu próprio meio de comunicação. Não necessita da seção de cartas do jornal. Não telefona para a rádio. O e-zine é a expressão máxima da individualidade expandida. Como os beats que drogavam-se para expandir a mente, além das portas da percepção de Blake e Huxley, ainda sem o controle do Grande Irmão de Orwell, o "olho que tudo vê" ainda não vê tudo.

    O e-zine é um meio de comunicação. Individualmente cada e-zine tem um pequeno público. Em conjunto, os e-zines fazem parte daquilo que se convencionou chamar Cybercultura. Uma cultura diversificada, entrelaçada e independente. Um grande público, com idéias diferenciadas e ramificado em várias pequenas culturas, não pesquisado, não procurado. A Cybercultura, indiferente aos órgãos tradicionais de controle e divulgação de informação, é a cultura da autogestão. E a expressão que melhor traduz essa autogestão é "faça você mesmo".

    Não que este estudo deixe-se levar por sonhos e utopias. Nada mais certo após a libertação de sentidos gerada por uma nova tecnologia que a posterior repressão. O que altera, neste caso, a repressão é a rapidez, a velocidade de resposta dos agentes controladores. Não se chegará ao ponto de afirmar-se, como Pierre Lévy e Richard Barbrook afirmam, um que caminhamos para a democracia mundial sem líderes, e outro, para o Cybercomunismo.

    É certo que as fronteiras não serão mais como antes. Assim como também como o confronto de culturas pode gerar medo de perder a identidade e o ódio mútuo. Como uma extensão do homem, a Internet sofre de todos os males do homem. Como todos os outros meios, a Internet, apesar do medo quase medieval das pessoas que ainda não se libertaram dos antigos meios têm da Internet, é um meio neutro. Com a escrita, uma notícia demorava anos para sair da Europa e chegar ao interior da América. Com a televisão e os satélites, e a Guerra do Golfo foi a apoteose da guerra ao vivo, sabemos quase instantaneamente o que está acontecendo do outro lado do planeta. Com a Internet não só sabe-se quase tudo em tempo real, como também escolhe-se o que se quer saber e, além disso, emita-se opiniões quase ao mesmo tempo. O "faça você mesmo" aliou-se ao "aqui e agora". Uma comunidade de hackers que nunca se viram pode combinar um ataque em massa a um portal da Internet. Pessoas solitárias conseguem namorados virtuais. Reputações podem ser arranhadas em poucos minutos.

    Como falava Negroponte, em 1995, "na Internet, as crianças vão ler e escrever para se comunicar, e não apenas para completar algum exercício abstrato e artificial". O e-zine termina em si mesmo. Encerra-se como meio de comunicação. Quando um e-zine ultrapassa sua condição primordial pode ter o mesmo destino de um fanzine que ultrapassasse suas fronteiras de público. Os fanzines que atingiram essa situação transformaram-se em revistas, caso da Rolling Stone (EUA), The Face (Inglaterra) e Trip (Brasil), em programas televisivos, como o Casseta e Planeta, advindo dos fanzines universitários Casseta Popular e Planeta Diário, ou mesmo desembarcarem no meio literário.

    Os leitores de e-zine estimulados a escrever sentem essa necessidade de comunicação. Ao ler e ver outras pessoas lançando suas próprias idéias e textos na Internet ele participa desse momento e assume a condição daquele que escreveu. A propaganda é necessariamente psicológica. Essa transferência de sentimentos que o e-zine faz equivale-se a leitura de um livro ou a assistir um filme de cinema. Todo o processo de feitura e emissão de um e-zine se dá de uma maneira estritamente pessoal e solitária. Na frente de telas de computadores, compenetrados em pensamentos e devaneios, os leitores vacinam-se contra os impedimentos que o mundo real coloca em seus caminhos. Essa libertação se dá tanto na forma de poesia, literatura e música, como também na forma de pornografia, violência, racismo e ideologia. Subverte a perspectiva de sociedade. Escrevemos para nós mesmos aquilo que todos lêem. Os estímulos da propaganda comercial não se dirigem nesse mesmo sentido? Não estimulam a competição? Estimular o ter sobre o ser? Não. Estimulam o ser. O ter é subvertido dentro do ser. Nós não temos automóveis. Nós somos automóveis. O automóvel incorpora-se a nossa personalidade. Então? O leitor do e-zine incorpora personalidades. Sente-se individualmente livre e, ao mesmo tempo, parte de uma sociedade. Estimula-se o simplesmente ser fluindo em textos e imagens. Uma catarse de egos reprimidos por outros meios de comunicação e libertados no mundo virtual da Internet. Para o leitor de e-zine a Internet transforma-se. É outro mundo onde ele, mesmo que preso a sua capacidade de expressar-se escrevendo ou desenhando, pode fazer o que quiser. A Internet, ao contrário de outros meios, e similar ao cinema, a literatura e ao rádio, não transporta o mundo dos sonhos da propaganda para a vida real. A Internert carrega o mundo real. Libera o mundo real. Não conhecem-se possíveis estudos anteriores, mas, ao contrário do que possam pensar aqueles que não vivenciam o mundo virtual, a Internet é um meio altamente politizado. Uma geração de jovens que interessa-se em ler, escrever, fazer cinema e música. A Internet como qualquer outro meio também pode transforma-se em um perigoso meio de alienação, mas muito mais restrito. A liberdade de ação que ela proporciona desestimula a passividade. A pessoa acostumada a passividade vicia-se em participar. Retira seus personagens do baú da consciência. Assim como acontece com as expressões artísticas, a Internet é o desaguadouro de problemas psicossociais.

    Fazer você mesmo equivale a ser você mesmo. Ao fazermos nós próprios, tramsformano-nos em nós mesmos. Não somos mais automóveis. Não somos famílias felizes nos comerciais de margarina. Somos nós mesmos, com todos os defeitos e problemas. Aquilo que a propaganda se utiliza para vender produtos ou idéias, a substituição do ser por um ideal de vida, simbolizado num produto ou idéia, o "faça você mesmo" se utiliza para transformar o receptor em emissor e eliminar ou diminuir a influência até mesmo dos intermediários desses sonhos: os comunicadores. Na medida em que todos tornam-se comunicadores, estes, ou aqueles que queiram continuar lucrando e acumulando capital, não interessando aqui, para nós, para quais fins, sentirão, e alguns já sentem, como veremos a seguir, a necessidade vital de infiltrarem-se subliminarmente no meio. A Internet, o e-mail, o e-zine, podem se tornar campos ideais para a o estímulo inconsciente de modos de vida. Modos de vida esses, é claro, condizentes com aquilo que quer vender-se.

    Stephen Duncombe, em seu texto Do-it-yourself, Nike style, relata as experiências do fanzine no mundo dos negócios. Os fanzineiros Jimmy "Stank" Smith e John "Doc" Jay, editores do fanzine sobre basquete U Don't Stop, pregam autenticidade. Essa é grande questão do faça você mesmo. Autenticidade. Não coincidentemente ambos trabalham na área de criação da empresa publicitária Wieden & Kennedy, criadora da campanha, não estranhamente semelhante ao lema fanzineiro, Just do it!, da marca de artigos esportivos Nike. Jimmy Smith admite que esta é uma maneira de fazer-se ouvir pelo seu público. Tornar o produto autêntico, por semelhança, em relação aos ideais do consumidor.

    Duncombe nos apresenta um informe especial da revista Business Week sobre as novas estratégias de marketing, onde os anunciantes intentam esconder sua origem empresarial. Conforme a revista "a idéia de disfarçar-se com uma aura de divertida conotação individual como forma de conectar-se aos jovens consumidores que anseiam produtos autênticos, singulares e feitos à mão, tem um grande exemplo na feição de fanzines pelas próprias empresas." Segundo o bibliógrafo de fanzines Chris Dodge, existem dezenas desses tipos de fanzines. Janine Lopiano-Misdom e Joanne De Luca, autoras do livro Street trends: How today's alternative cultures are creating tomorrow's mainstream markets, corroboram em seu livro essa idéia que a cultura underground, fanzineira e anarquista, é "o grão que movimenta o moinho do marketing".39 Os "alternativos", por assim dizer, trabalham gratuitamente para empresas de pesquisa de mercado. Basta aos profissionais da área incentivarem, por sua própria imobilidade, a criação de novas idéias e produtos.

    Ainda falta, conduto, um estudo significativo relacionando a cultura do "faça você mesmo" com a Internet. Pois a Internet oferece, o que antes era impossível, a possibilidade de distribuição instantânea de idéias. Não é preciso explicar, logo, o porquê dos controles que começam a se impor na Internet sobre emissão de mensagens em massa e outros impeditivos que atrapalhem a iniciativa individual. Mas, assim como os movimentos libertários trabalharam sem cobrar para se transformarem em cultura de massa, o desenvolvimento tecnológico trabalha a favor das vanguardas, justo que os meios de comunicação adaptam-se lentamente a processos cada vez mais velozes de mudança de comportamento. O e-zine é apenas um pequeno exemplo de uma grande revolução cultural que estamos vivenciando, sem notarmos conscientemente, que poderá destruir muitos dos antigos valores e ideários que permeiam no meio acadêmico da comunicação. Por fim, e concluindo essa explanação por demais curta para a complexidade do assunto, tomamos a singela decisão de transmitir esta mensagem final a cada um dos leitores deste trabalho: faça você mesmo!