a casa abandonada, de daniel gomes e fabiano moreira

 

Este hiperconto é uma primeira experiência que procura explorar as possibilidades de interação do meio eletrônico. Ele se compõe de quinze pequenos trechos que podem ser lidos em dez combinações diferentes e constituem cinco eixos principais, cada um com um final distinto. Assim, através de escolhas simples ao final de cada trecho, o leitor pode influenciar o rumo que a narrativa irá tomar, determinando seu desfecho.

 

 

 

Dentro da noite escura, sob um céu negro e impreciso, iluminada pelo amarelo vacilante de um antigo poste, uma casa abandonada, plantada no centro de um vasto terreno, chama sua atenção. Sem motivo aparente, a não ser uma sensação vaga de desconforto e uma leve excitação de sua mente cansada, você observa os vidros quebrados das janelas - como a boca desdentada de um velho negro - enquanto seus dedos brincam com o ferrolho do pequeno portão, que num movimento casual de sua mão esquerda cai sobre a poeira do chão. Um curto e sinuoso caminho de pedras trespassa o jardim seco e descuidado, levando-o até a soleira da porta. Há muitos anos atrás poderia-se admirar os entalhes e afrescos deste portal ainda imponente, mas totalmente desfigurado. A imagem do velho negro volta a sua mente, agora numa expressão severa, fechada como a antiga porta a sua frente. Com um sorriso nervoso você se aproxima e estende a mão, gira a maçaneta enferrujada e ouve o ranger das dobradiças. Olhando para a escuridão interior, que lentamente se suaviza devido a dilatação de sua pupila - ou talvez por algum outro artifício, pois as paredes parecem refletir uma luz pálida como o luar -, você ouve um ruído, duvidoso e sombrio, vindo de algum cômodo no fundo da sala a sua frente. Tomado por um impulso você avança alguns passos em direção ao centro do salão principal, mas, repentinamente, suas pernas estacam. Um pressentimento faz com que você olhe para trás e veja a porta por onde entrou e por onde deveria sair...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lá fora, através da porta escancarada, você vê a mesma luz amarelada iluminar um carro que passa pela rua deserta, lentamente, seus olhos começam a perceber que a sala não está completamente vazia, ainda restam alguns móveis perto da porta e objetos que resistiram aos saques e assaltos que ocorreram durante os anos de abandono, provavelmente pelo estado em que se encontram. A impressão de luminosidade das paredes parece ter sido causada pelo simples fato de estas ainda conservarem uma certa brancura. Olhando ao redor, com cuidado, você nota que não há nada de estranho neste salão e tenta então descobrir de onde teria vindo o ruído que o atraiu. Confiante, você grita "olá", suspeitando que algum desabrigado tenha escolhido este lugar como refúgio da noite fria, e espera em vão por uma resposta. Certamente o barulho foi causado por algum animal, talvez um gato perseguindo seu rato, ou mesmo pelo vento a bater as janelas soltas. Testando o interruptor você encontra o resultado esperado, não há luz. Então, enquanto você apalpa o bolso de sua calça, pensando em acender o isqueiro para poder explorar melhor o lugar, inadvertidamente você percebe uma luminosidade avermelhada através do friso de uma porta lateral...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Procurando entender o que está fazendo, ou seja, porque motivo você decidiu entrar numa casa abandonada, você observa a rua deserta, as construções comerciais do outro lado da calçada e percebe que já deve ser quase meia-noite. O céu está fechado e a noite fria, certamente não é hora para explorar casas abandonadas e sim voltar para seu apartamento, preparar um sanduíche e comê-lo enquanto vê televisão. Porém, isto não lhe atrai muito, e creio que você tenha suas razões. Ainda indeciso sobre o que fazer você começa a ouvir vozes vindas do segundo andar, parece um pequeno grupo de pessoas conversando, mas não se pode distinguir as palavras. Talvez um bando de mendigos tenha invadido o lugar para fugirem da noite fria, ou talvez haja algo mais misterioso escondido entre as antigas paredes desta casa. Neste momento você tem duas opções claras, subir as escadas e descobrir o que há no segundo andar ou parar com este jogo de adolescentes e retomar seu caminho para casa...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Tremendo, sua mão encontra o isqueiro, tira-o do bolso e acende, depois de sete tentativas. Uma chama fraca e azulada tenta inutilmente iluminar o salão. Com os olhos fixos na porta lateral, você não percebe que, apesar do vento uivante que entra pela porta principal, a chama se mantém reta, intacta, sem sofrer o menor tremor. Mais preocupado com o crescente brilho atrás da porta, você avança em sua direção, lento como uma tartaruga, mas ruidoso como um elefante, pois cada passo seu parece despedaçar todo o piso sob seus pés, soando como as gargalhadas do preto velho em sua mente. Aterrorizado, você parece caminhar anos até alcançar a porta lateral e perceber que as gargalhadas não estão apenas em sua mente, mas também vêm do segundo andar da casa abandonada...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Atraído por este novo e assombroso som você olha para a escada ao fundo do salão no mesmo momento em que a porta lateral, que está bem a sua frente, se abre levemente, deixando escapar o cheiro de algo sendo queimado. Confuso e num estado além do terror completo, você olha em todas as direções, vendo a cada momento a porta lateral, a escada ao fundo do salão, a parede estranhamente clara e a porta principal escancarada, como um bêbado que pensa que as coisas giram ao seu redor. Desequilibrado, você fecha os olhos por um instante, tentando se recuperar e reencontrar a realidade, mas quando os abre novamente tem a certeza de que está sonhando, o mais horrível e inimaginável dos pesadelos se mostra, a porta lateral está completamente aberta...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Lentamente, você caminha em direção a escada no fundo do salão principal. Seus passos são cuidadosos, procurando fazer o mínimo de barulho possível, temeroso de que os desconhecidos percebam sua chegada. A cada passo as palavras ficam mas claras e, quando você coloca o pé esquerdo sobre o primeiro degrau da longa e antiga escadaria, elas se transformam numa estrondosa gargalhada, que lhe causa uma desagradável sensação de deja vu. Mais uma vez você para e procura aguçar seus sentidos, não há luz alguma além daquela que entra pela porta da rua, mas seus olhos já se acostumaram com a escuridão e conseguem vislumbrar os degraus a sua frente. Um leve cheiro de queimado parece vir lá de fora, trazido por uma suave e quente brisa. As gargalhadas cessam e algumas palavras chegam ao seu ouvido, soltas e esparsas, permitindo apenas presumir que a conversa lá em cima é sobre esta casa e assombrações, ou sonhos. Você estava certo, é apenas uma brincadeira tola de adolescentes e o melhor é ir para casa, mesmo que uma certa curiosidade pelo que possa haver lá em cima ainda persista...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Você sobe as escadas, decidido a dar um fim neste mistério, e percebe que um grupo de pessoas conversa calorosamente em um quarto ao fim do corredor. Aproximando-se calmamente, tanto para se controlar como para evitar ser percebido, você começa a entender claramente aquilo que está sendo dito, apesar de ocorrerem várias conversações em paralelo. Cada uma delas parece tratar de um assunto diferente, enquanto alguém parece tentar estabelecer alguma ordem, insistindo que há algo de estranho acontecendo naquele lugar, outros discutem alguma brincadeira que provavelmente foi a causa das gargalhadas. Disposto a se mostrar e descobrir quem são aquelas pessoas e o que está acontecendo dentro do quarto, você vai até a porta, que está aberta...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Através da porta você vê um quarto comum, muito parecido com o seu próprio quarto, mas o que lhe chama a atenção de imediato é que um fogo cálido se alastra rapidamente por todo o cômodo, queimando cortinas, tapetes, quadros, móveis ou seja lá o que for que exista em seu quarto. Você se vê deitado na cama, cercado pelas chamas e confuso sobre o que aconteceu. Descobre então que também o corredor começa a ser invadido pelo incêndio e corre em direção a porta que leva para fora deste inferno.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dando meia volta você percebe como foi tolo entrar naquela casa. Mesmo sabendo que sua vida precisa de um pouco mais de aventura, pois o cotidiano começa a alimentar uma grande angústia em sua alma, explorar casas abandonadas não é um passamento digno de uma pessoa como você. Melhor seria voltar a buscar seus sonhos, retomar as esquecidas leituras do passado e talvez até mesmo arriscar mais uma vez com a literatura. Você sempre quis ser um escritor, chegou mesmo a enviar contos para alguns concursos e publicar textos em sites na internet. Até mesmo um romance você tentou escrever, mas as dificuldades e as outras obrigações e distrações não permitiram a dedicação necessária. Agora você poderia encontrar algum tempo para fazê-lo, talvez começando esta noite mesmo a compor algo. Enquanto você caminha para seu apartamento algumas idéias começam a se formar em sua mente, uma história fragmentária e repleta de escolhas, quem sabe um suspense inspirado nesta breve aventura pessoal...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

A imagem do velho negro ainda persiste em sua mente, enquanto você se senta em frente ao papel em branco e brinca com a tampa da caneta. Por algum estranho motivo você associa o velho a uma antiga lenda sobre incendiários, uma daquelas histórias urbanas sobre mendigos sendo queimados por um grupo de adolescentes que misteriosamente são encontrados carbonizados em suas camas intactas. Você bem que poderia unir estas coisas, a casa abandonada, o velho sem dentes e o fogo, resta descobrir como fazê-lo. Não seria uma história muito criativa, mas se as palavras pelo menos voltassem a fluir, se a tinta marcasse o papel, já seria um bom começo, seu retorno a vida!

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caminhando em direção a porta principal você percebe a infantilidade da situação e como se deixou levar pelas aparências e ilusões de uma mente cansada. Não havia nada de estranho ou misterioso na casa que você acaba de deixar. Depois de andar alguns quarteirões ruma ao seu apartamento, o cotidiano começa a ocupar novamente seus pensamentos, lembrando-lhe de suas obrigações do dia seguinte, do aniversário de uma amiga dentro de alguns dias, da mulher que você ama, com quem inevitavelmente deverá reatar laços aparentemente partidos. Com os olhos distraídos, seu pé direito chuta desastradamente alguma coisa no caminho. Você cai numa caixa de areia, num parquinho de brinquedos precários e públicos, poucas árvores e quase nenhuma luz. Você se vira para ver no que tropeçou. Parece um saco jogado no chão, mas você mal consegue ver, então estende sua mão e o toca de leve. Você sente o tecido de um vestido, uma pele gelada e áspera, um sapatinho preso num pequenino pé, duro como uma estátua. Chocado, você percebe que trata-se de uma criança morta...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Acendendo a chama de seu isqueiro e observando com mais atenção, você nota que a criança parece ter sido assassinada, possivelmente a poucas horas. Seus olhos estão arregalados e vítreos, seus lábios parecem ter congelado um grito desesperado no tempo. O corpo se encontra em perfeito estado com exceção apenas das costas da vítima, onde pode-se perceber uma série de mordidas que provavelmente pertencem a mandíbulas humanas, embora a força e a violência imprimidas contra a infante tivessem sido suficientes para deixar transparecer algumas vértebras. Assustado e enojado com a cena, você se levanta cambaleante, vaga desesperado pelos arredores e encontra um pequeno revolver jogado perto de um arbusto, bem ao lado de um quepe de policial. Você guarda a arma consigo, olha para os lados e decide voltar pra casa...

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Retomando seu caminho, você ouve um ruído vindo detrás de uma árvore. Um policial morto mantém estendida sua mão, num gesto desesperado e inexplicavelmente congelado. Uma névoa fétida e um coral de palavras ancestrais se manifesta há uns 20 metros de você, próximo ao escorregador. Você caminha pelo jardim, mais confiante por ter uma arma, adentrando a escuridão rumo ao escorregador e aos outros brinquedos enferrujados da praça. Os sons e o odor não mudam de intensidade na medida em que você se aproxima. Porém, no próximo momento, parece que esses sons estão aos poucos se aproximando de você, tornando-se ensurdecedores, como dezenas de furadeiras ligadas, como trezentas vozes coléricas, como o silêncio abissal dos mares. Um toque levemente úmido e gélido agarra seu braço esquerdo em meio á escuridão. Você decide usar a arma antes que seja tarde, mas seus tiros são caóticos, sua mão treme, sua mira jamais foi boa. Rapidamente você desperdiça as balas no vulto que o havia tocado na escuridão. Ao analisar com mais calma você nota que acabara de acertar o outro policial que fazia o turno desta noite na pracinha. Com os olhos arregalados de loucura, você nota que o corpo da criança não mais está jogado sobre a areia. Um vulto pequeno, de dentes alvos e olhos sérios se aproxima com velocidade. Você tenta atingi-la com sua arma, mas suas balas acabaram. Ela nem mesmo chegou a tocá-lo, porém seu coração infelizmente é fraco demais. Você está morto.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Você foge para casa em meio a névoa. Chegando lá, esbaforido, você tranca a porta, acende todas as luzes, liga a televisão e fuma igual um desgraçado, enquanto se entope de whisky. Tenta esquecer tudo aquilo assistindo a um programa ridículo de entrevistas na televisão e não demora a adormecer. Em meio a escuridão da madrugada, ao som de pegadas cuidadosas de um sapato pequenino a estalar sobre o taco do chão do seu quarto, você acorda. Como sua namorada tem a chave da casa você permanece de olhos fechados e aguarda até que ela se aproxime de você. Fingindo um ronco espontâneo você se vira para o lado da porta e aguarda mais alguns instantes no silêncio escuro do quarto. Um estalar molhadinho nos lábios lhe arrepia todos os cabelos do corpo. Com as mãos você busca abraçá-la, mas seus braços nada encontram. O telefone toca e, sem pensar, você atende. É Marina, sua namorada. Você mal consegue dizer alô e começa a sentir um formigamento em seu peito. Um cheiro de criança infesta o quarto. Você tenta chorar, mas só consegue rir... interminavelmente.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Em momentos como estes, diante do inexplicável, do indescritível, do inominável, a coluna vertebral contém algo muito mais eficaz que o crânio humano, pois a mente não está tão bem preparada para estas situações como a medula, que rapidamente e sem hesitação alguma ordena que suas pernas o levem, desesperadamente, para longe daquela visão. Elas obedecem, e quando a mente consegue formular um primeiro pensamento, você já está virando a esquina, certo de nunca voltar aquela casa abandonada, nem mesmo de passar por aquela rua deserta, e principalmente de que nunca mais irá se aventurar desta maneira, pois, além de tudo, este tipo de aventura não serve nem mesmo para ser contada numa mesa de bar, visto que o mais curioso e interessante dela é exatamente a visão do indescritível, e como a própria palavra diz, o indescritível não pode ser narrado.